As tentativas da Direita em desqualificar a esquerda por meio de
uma mídia tendenciosa
Da Carta Maior
Fonte: Luis Nassiff
Online
Texto de Francisco Fonseca
(*)
Embora já surrada,
a questão do “fim das ideologias”, assim como do “fim da história”, reaparecem
de tempos em tempos, abertamente ou de forma subliminar. Trata-se de uma
questão internacional, mas com contornos específicos no Brasil.
Há, de certa forma,
uma espécie de “ideologia da não ideologia”, isto é, a tentativa permanente,
aguçada em períodos pré-eleitorais e eleitorais, dos setores liberais e
conservadores desqualificarem, por estratégias diversas, os pressupostos,
objetivos e formas de atuação dos grupos à esquerda.
Mesmo que os
aspectos concretos quanto à forma de atuar dos grupos sociais – à esquerda, ao
centro e à direita no espectro – dependa de um conjunto de circunstâncias
históricas, tais como o contexto internacional, a correlação de forças numa
dada sociedade, o grau de organização e mobilização das forças sociais, o papel
das instituições políticas, os padrões do modelo de acumulação, entre outras
variáveis, há elementos essencialmente definidores do significado de esquerda e
direita.
Vejamos, de forma
panorâmica e sem a pretensão de esgotar suas características, alguns desses
elementos essenciais quanto à atualidade da esquerda.
Primariamente, diz
respeito ao tema da igualdade: política e social. O pensamento à esquerda –
concretizado em governos – tem como objetivo central a diminuição das
desigualdades e, num plano de longo prazo, sua eliminação. Em termos da agenda governamental,
esse pressuposto implica: ampliação do gasto social (medido em relação ao PIB);
busca pela universalização de direitos, mas contemporaneamente combinada com
focalização aos grupos mais vulneráveis; descrença no “mercado livre”, panaceia
vendida pelo liberalismo, uma vez que se apoia o direcionamento dos agentes
econômicos, e sobretudo o reconhecimento das assimetrias entre os detentores do
capital e da força de trabalho, reconhecimento que se transforma em políticas
de apoio aos trabalhadores via políticas públicas; apoio às formas de
participação popular, como conferências nacionais, audiências públicas, entre
diversas outras; como decorrência, o estímulo ao chamado “controle social”, em
que cidadãos organizados em suas comunidades são partícipes ativos dos
processos de implementação e monitoramento de políticas públicas, caso do
exitoso Programa Bolsa Família; a questão crucial da aceitação dos conflitos
como legítimos, cuja consequência é a negociação e não a repressão policial.
Por fim, do ponto de vista das relações internacionais, a busca por autonomia
perante as potências mundiais e suas instituições, em que o tema da soberania
ganha relevo, e conduz, claramente, a uma visão de mundo à esquerda, em clara
contraposição com a chamada direita, tradicionalmente associada às potências
hegemônicas.
Seu pressuposto
fundamental é a ordem, resultante da rejeição e aversão aos conflitos,
sobretudo de classe, que permanecem revestidos majoritariamente como “conflito
distributivo”. Daí o discurso clássico da direita ter na violência do Estado,
por meio do “endurecimento das penas”, da brutalidade policial, da
“criminalização” dos movimentos sociais, entre tantas outras formas, uma de
suas características marcantes. Tal violência, destituída de controles
democráticos, volta-se à proteção da propriedade e à “harmonia entre as
classes” (mesmo que se negue sua existência).
Afinal, o
pressuposto do pensamento liberal/conservador é justamente a “ideologia do
mérito”, revestida de “meritocracia”, em que os indivíduos – independentemente
de suas condições coletivas históricas – devem competir, sobressaindo-se os
“melhores”. Daí o clássico mote do jornal O Estado de S. Paulo, de certa forma
compartilhado por toda a grande mídia, de que as elites são constituídas pelos
“melhores e mais capazes, venham de onde vierem”. Do ponto de vista
internacional, a aceitação da “ordem mundial” tal como dada e ao papel
subalterno conferido ao Brasil pela “divisão internacional do trabalho” fez e
faz parte do conservadorismo liberal encarnado na perspectiva da direita.
Keynes, mesmo não
sendo um intelectual de esquerda, já havia chamado a atenção, num profético
artigo publicado em 1926, intitulado “The end of laissez faire”, a respeito dos
efeitos nocivos da competição sem regras e da falácia da “mão invisível do
mercado”, ambientes em que a ideologia do mérito prospera. Trata-se de
pressupostos intrínsecos ao pensamento conservador e liberal, que conflui
vigorosamente à direita no espectro.
Albert Hirschman,
num primoroso livro sobre o pensamento conservador e liberal – encarnado na
direita não nazista –, intitulado a “Retórica da Intransigência: perversidade,
futilidade, ameaça” (publicado no Brasil pela Cia. das Lestras em 1992),
demonstra detalhadamente os argumentos esgrimidos ao longo de dois séculos
contrários à introdução dos direitos civis, políticos e sociais no mundo
ocidental. São fortemente reativos em sua ânsia por garantir privilégios.
No Brasil não tem
sido diferente, embora nossa direita, sobretudo no século XX, tenha se
caracterizado pela adesão a golpes “clássicos”, e também aos “brancos” (mais
sutis), respectivamente o golpismo civil/militar até 1964, e toda forma de
casuísmo anti-institucional: emenda da reeleição em plena regra que a proibia,
populismo cambial, “engavetadores gerais” da República etc.
Mais ainda, no
marcante momento da Assembleia Constituinte de 1986/87, um sem-número de
críticas ácidas, na perspectiva analisada por Hirschman, foram desferidas
contra a “Constituição Cidadã”. Analisei detalhadamente tais críticas em meu
livro “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda
ultraliberal no Brasil” (Editora Hucitec, 2005), e pude observar quão conservadora,
em plena redemocratização, fora a direita reunida em torno do “Centrão”.
Em outras palavras,
essencialmente falando, como sugerido por Norberto Bobbio, há diferenças
cruciais entre esquerda e direita, ideologias – ou doutrinas, termo mais
correto, pois indica um corpus conceitual e valorativo sistêmico – que
continuam vivas e antagônicas, cujos efeitos governamentais sob seu comando são
sentidos na vida dos cidadãos comuns, notadamente os pobres.
No Brasil, embora
as grandes coalizões partidárias, resultantes, por seu turno, do financiamento
privado legal e ilegal das campanhas e da lógica privatista do sistema político
brasileiro, embaralhem e turvem a posição de ambas as ideologias, isso não
significa que sua vigência seja menor. Ao contrário.
As contradições nos
Governos Lula e Dilma expressam justamente os efeitos nefastos de um sistema
político fundamentalmente protetor das elites, cujas reformas sociais são
sempre incrementais e marginais, como tenho escrito em diversos artigos neste
Portal. Em outras palavras, uma verdadeira “inversão de prioridades”
(orçamento, crédito, infraestrutura, gastos sociais, dívida pública,
universalização de direitos, transparência e participação popular/controle
social etc), capaz de “radicalizar a democracia”, é travada em razão da grande
aliança conservadora: de classes, que se expressa no sistema político.
A sensação de
“geleia geral” do sistema partidário, e mesmo a desilusão perante o Partido dos
Trabalhadores de amplas parcelas da sociedade brasileira não destituem o legado
– reconhecido sistematicamente nas urnas – de que a obra do pensamento à
esquerda está presente nos Governos Lula e Dilma. Apesar de suas imensas
contradições e da ausência de um Projeto de sociedade e nação desses governos,
os pressupostos de esquerda claramente estiveram e estão presentes, a ponto de
as candidaturas oposicionistas dos grandes partidos patinarem em busca de um
discurso capaz de se sobrepor aos notáveis avanços sociais, políticos e
institucionais vivenciados pela sociedade brasileira.
A questão das
concessões de serviços públicos, as parcerias público/privado, a
contratualização de setores da gestão pública e o papel dos agentes privados
nos sistemas universais de direitos sociais não são suficientes para derrogar
os avanços sociais existentes justamente por ter havido pressupostos e
objetivos de esquerda. Trata-se, além do mais, de estratégias e táticas
articuladas ao momento histórico que, embora possam ser derrogadas, não denotam
intrinsecamente traição aos pressupostos de esquerda. Afinal, a diminuição da
desigualdade, a ampliação do gasto social e dos direitos sociais universais,
assim como da participação popular, vicejaram vigorosamente, alterando em
vários sentidos os legados perversos, e convivem contraditoriamente com
políticas conservadoras (forma e conteúdo).
O grande desafio é
ampliar e aprofundar a democracia política e social no país, invertendo e
revertendo prioridades, o que, contudo, somente será realizado por uma política
de esquerda, o que implica o “fim do pacto conservador de classes”. Embora o
momento eleitoral não se preste a isso, uma vez que as regras estão dadas, as
jornadas de junho demonstraram que é possível “ir além” – forma e conteúdo.
Para tanto, novas e outras formas de fazer política precisam ser inventadas e
reformadas, cujo centro – à luz dos pressupostos de esquerda – é a participação
popular, o controle social e a transparência, dado que capazes de
inverter/reverter prioridades e que representam justamente os anátemas da
direita!
(*) O cientista
político Francisco Fonseca, doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP), é professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).
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