sábado, 11 de dezembro de 2010

A Aposta no pensar diferente



Rubem Alves


Recontei uma estória para crianças e adultos com o título O pintassilgo e as rãs. Está no livrinho Estórias de bichos (Loyola). É sobre um punhado de rãs que viviam dentro de um buraco fundo. Haviam nascido lá, nada conheciam sobre o mundo de fora. Pensavam que seu buraco escuro e malcheiroso era o universo. E estavam muito felizes. Até que um pintassilgo entrou lá dentro e começou a trinar canções sobre o maravilhoso mundo de fora. As canções do pintassilgo provocaram um rebuliço. Os poetas sempre provocam rebuliços. A paz do mundo das rãs foi perturbada pelas as idéias novas. As rãs românticas acreditaram, começaram a sonhar e a fazer planos para sair do buraco. As rãs realistas, ao contrário, disseram que o pintassilgo era um mentiroso que desejava enganar as rãs com promessas falsas de um mundo diferente.

Escrevi um livrinho com o título O que é religião?. Nele eu me pus a perguntar a sociólogos, psicólogos e filósofos: “O que é religião?“. Eu desejava ouvir o que eles têm a dizer, mesmo sendo diferente daquilo que penso. Nietzsche dizia que a maneira mais fácil de corromper um jovem é ensiná-lo a respeitar mais as pessoas que pensam igual a nós, que as pessoas que pensam diferente. Os que pensam diferente são aqueles que estão vendo o mundo por um ângulo diferente do nosso. Sabendo que há uma forma diferente de ver as coisas começamos a ficar desconfiados de que, talvez, estejamos dentro do poço das rãs...

As Igrejas sempre tiveram e têm horror aos pintassilgos. Os pintassilgos, elas os chamam de “hereges“. E, como você sabe da história, milhares de pintassilgos hereges foram torrados em fogueiras, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É preciso ter muito cuidado com rãs que moram em buracos fundos.

Algumas das pessoas a quem fiz a pergunta “O que é religião?“ me disseram que a religião é uma louca que balbucia coisas sem nexo, produtora de ilusões, serva dos poderosos, traficante de cocaína. Outros, ao contrário, afirmaram que sem a religião o mundo humano não poderia existir e que, quando deciframos seus símbolos, contemplamos a nossa imagem refletida num espelho. Para estes a religião é um sonho da alma humana... E todos os sonhos dizem a verdade.

Mas aqui preciso revelar que só fiz a pergunta a pessoas que não frequentavam os lugares sagrados, que só os observavam à distância, e que não acreditavam na sua fala...

Aí eu me perguntei se não seria necessário ouvir o próprio canto da religião. É certo que há uma religião que é como o coaxar de rãs. Mas há uma outra que é como o canto do pintassilgo... Quem sabe o pintassilgo tem razão? Quem sabe o universo é mais bonito e misterioso que os limites do poço em que vivemos? Sobre o que fala a religião?

É necessário que não nos deixemos confundir pela exuberância dos símbolos e gestos, vindos de longe e de perto, de outrora e de agora, porque o tema da canção é sempre o mesmo. Variações sobre um tema dado. A religião fala sobre o sentido da vida. Ela declara que vale a pena viver. Que é possível ser feliz e sorrir. E o que todas elas propõem é nada mais que uma série de receitas para a felicidade. Aqui se encontra a razão por que as pessoas continuam a ser fascinadas pela religião, a despeito de toda a crítica que lhe faz a ciência. A ciência nos coloca num mundo glacial e mecânico, matematicamente preciso e tecnicamente manipulável, mas vazio de significações humanas e indiferente ao nosso amor. Bem dizia Max Weber que a dura lição que aprendemos da ciência é que o sentido da vida não pode ser encontrado ao fim da análise científica, por mais completa que seja. E nos descobrimos expulsos do paraíso, ainda com os restos do fruto do conhecimento em nossas mãos...

O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia, e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando. Valerá a pena viver? A gravidade da pergunta se revela na gravidade da resposta. Porque não é raro vermos pessoas mergulhadas nos abismos da loucura, ou optarem voluntariamente pelo abismo do suicídio por terem obtido uma resposta negativa. Outras pessoas, como observou Camus, se deixam matar por idéias ou ilusões que lhes dão razões para viver: boas razões para viver são também boas razões para morrer.

Mas o que é isto, o sentido da vida?

O sentido da vida é algo que se experimenta emocionalmente, sem que se saiba explicar ou justificar. Não é algo que se construa, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não-preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos donde vem nem para onde vai, e que experimentamos como uma intensificação da vontade de viver a ponto de nos dar coragem para morrer, se necessário for, por aquelas coisas que dão à vida o seu sentido. É uma transformação de nossa visão do mundo, na qual as coisas se integram como em uma melodia, o que nos faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos de um sentimento oceânico - na poética expressão de Romain Rolland - sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno de dimensões cósmicas.

“Ver um mundo em um grão de areia
e um céu numa flor silvestre,
segurar o infinito na palma da mão
e a eternidade em uma hora” (Blake).

O sentido da vida é um sentimento.

Se a pretensão da religião terminasse aqui, tudo estaria bem. Porque não há leis que nos proíbam de sentir o que quisermos. O escândalo começa quando a religião ousa transformar tal sentimento, interior e subjetivo, numa hipótese acerca do universo. Podemos entender as razões por que o homem religioso não pode se satisfazer com o pássaro empalhado. A religião diz: “O universo inteiro faz sentido”. Ao que a ciência retruca: “As pessoas religiosas sentem e pensam que o universo inteiro faz sentido“. Aquela afirmação sagrada que ecoava de universo em universo, reverberando em eternidades e infinitos, a ciência aprisiona dentro do poço pequeno e escuro da subjetividade e da sociedade: ilusão, ideologia. O sentido da vida é destruído. Que poderá restar da alegria das rãs, se o “lá fora“ que o pintassilgo cantou não existir?

Afirmar que a vida tem sentido é propor a fantástica hipótese de que o universo vibra com nossos sentimentos, sofre a dor dos torturados, chora a lágrima dos abandonados, sorri com as crianças que brincam... Tudo está ligado. Convicção de que, por detrás das coisas visíveis, há um rosto invisível que sorri, presença amiga, braços que abraçam, como na famosa tela de Salvador Dalí. E é esta crença que explica os sacrifícios que se oferecem nos altares e as preces que se balbuciam na solidão.

É possível que tais imagens jamais tenham passado pela sua cabeça e que você se sinta perdido em meio às metáforas de que a experiência religiosa lança mão. Lembrei-me de um diálogo, dos mais belos e profundos já produzidos pela literatura, em que lvan Karamazov argumenta com seu irmão Alioscha, invocando a memória de um menininho, castigado pelos pais por haver molhado a cama, e trancado num quartinho escuro e frio, fora de casa, na noite gelada. Ele fala das mãozinhas, batendo na porta, pedindo para sair, lágrimas rolando pela face torcida pelo medo. Que razões, no universo inteiro, poderiam ser invocadas para explicar e justificar aquela dor? A gente sente que aqui se encontra algo profundamente errado, eternamente errado, errado sempre, sem atenuantes, do princípio dos mundos até o seu fim. E sentimos igual quando pensamos nos torturados, nos executados, nos que morrem de fome, nos escravizados, nos que terminaram seus dias em campos de concentração, na vida animal que é destruída pela ganância, nas armas, na velhice abandonada... Poderíamos ir multiplicando os casos, sem fim...

Que razões trazemos conosco que nos compelem a dizer “não“ a tais atos? Serão nossos sentimentos apenas? Mas, se assim for, que poderemos alegar quando também o carrasco, também o torturador, também os que fazem armas e guerra invocarem seus sentimentos como garantia de suas ações? Também eles sentem... Ainda permanecem humanos...

Não, nossos julgamentos éticos não descansam apenas em nossos sentimentos. É verdade que nos valemos deles.

Mas verdade é também que invocamos o universo inteiro como testemunha e garantia de nossa causa. Vibra com o infinito a voz do coração. Cremos que o universo possui um coração humano, uma vocação para o amor, uma preferência pela felicidade e pela liberdade - tal como nós. Assim, anunciar que a vida tem sentido é proclamar que o universo é nosso irmão. E é esta realidade, âncora de sentimentos, que recebe o nome de Deus.

A religião cuidou, com carinho especial, de erigir casas aos deuses e casas para os mortos, templos e sepulcros. Nenhum outro ser existe neste mundo que, como nós, erga súplicas aos céus e enterre, com símbolos, os seus mortos. E isso não é acidental. Porque a morte é aquela presença que, vez por outra, roça em nós o seu dedo e nos pergunta:

“Apesar de mim, crês ainda que a vida faz sentido?“

Como afirmar o sentido da vida perante a morte? Que consolo oferecer ao pai, diante do filho morto? Dizer que a vida foi curta, mas bela? Como consolar aquele que se descobriu enfermo para morrer e vê os risos e carinhos cada vez mais distantes? E os milhões que morrem injustamente: Treblinka, Hiroshima, Biafra?

Tudo tão diferente de uma sonata de Mozart: curta, perfeita. Em vinte minutos, tudo o que deveria ter sido dito o foi. O acorde final nada interrompe, completa apenas.

Como afirmar o sentido da vida perante o absurdo da existência representado de maneira exemplar pela morte que reduz a nada tudo o que o amor construiu e esperou?

“Aquilo que é finito para o entendimento é nada para o coração“ (Feuerbach). Eis o problema. “De um lado, a estrela eterna, e do outro a vaga incerta...“ (Cecília Meireles). O sentido da vida se dependura no sentido da morte. E é assim que a religião entrega aos deuses os seus mortos, em esperança... Entre as casas dos deuses e as dos mortos brilha a esperança da vida eterna para que os homens se reconciliem com a morte e sejam libertados para viver. Quando a morte é transformada em amiga, não é mais necessário lutar contra ela. E não será verdade que toda a nossa vida é uma luta surda para empurrar para longe os horizontes “aproximados e sem recurso“? A sociedade é um bando de homens que caminham, lutando, em direção à morte inevitável.

Pense no que você faria se lhe fosse dito que lhe restam três meses de vida. Depois do pânico inicial... Suas rotinas diárias, as coisas que você considera importantes, inadiáveis, pelas quais sacrifica o ócio, a meditação, o brinquedo... A leitura de jornais, os canhotos dos talões de cheque, os documentos para o IR, os ressentimentos conjugais, os rancores profissionais, a pós-graduação, as perspectivas da carreira... Tudo isso encolheria até quase desaparecer. E o presente ganharia uma presença que nunca teve antes. Ver e saborear cada momento; são os últimos: o quadro, esquecido na parede; o cheiro de jasmim; o canto de um pássaro, em algum lugar; o barulho dos grilos, enquanto o sono não vem; a gritaria das crianças; os salpicos da água fria, perto da fonte... Talvez você até criasse coragem para tirar os sapatos e entrar na água... Que importaria o espanto das pessoas sólidas?

Talvez encontremos aqui as razões por que a sociedade oculta e dissimula a morte, tornando-a até mesmo assunto proibido para conversação. A consciência da morte tem o poder de libertar, e isso subverte as lealdades, valores e respeitos de que a ordem social depende. Colocando os sepulcros nas mãos dos deuses, a religião obriga a inimiga a se transformar em irmã... Livres para morrer, os homens estariam livres para viver.

Mas o sentido da vida não é um fato. Num mundo ainda sob o signo da morte, em que os valores mais altos são crucificados e a brutalidade triunfa, é ilusão proclamar a harmonia com o universo, como realidade presente. A experiência religiosa, assim, depende de um futuro. Ela se nutre de horizontes utópicos que os olhos não viram e que só podem ser contemplados pela magia da imaginação. Deus e o sentido da vida são ausências, realidades por que se anseia, dádivas da esperança. De fato, talvez seja esta a grande marca da religião: a esperança. E talvez possamos afirmar, com Ernest Bloch: “Onde está a esperança, ali também está a religião“.

(Transparências da eternidade, Verus, 2002)

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