Ou seja, transferimos a relação mercantil que perpassa a nossa sociedade capitalista para a relação com o mundo espiritual.
Conexões – espiritualidade, política e educação
Dinheiro é compatível com espiritualidade?
por Dora Incontri
Diariamente, assistimos no Brasil, ao crescimento e ao domínio de um certo neopentecostalismo, que tem expressão bizarra, explorando a fé do povo, com pastores se enriquecendo desmedidamente. São os Malafaias e Edir Macedos da vida que arrancam o dízimo dos mais pobres (e muitas vezes mais do que o dízimo) e fazem um comércio descarado da fé. E traem o próprio espírito da Reforma, que nasceu como oposição ao mercado das chamadas indulgências, que a Igreja católica praticava então.
Mas por que as pessoas aderem acriticamente a essa sangria de suas tão suadas finanças e em que medida o manejo do dinheiro é incompatível ou não com uma prática religiosa? Há diversas camadas neste tema. Primeiro, é preciso que se diga que não há nenhuma conexão aceitável e necessária para o seguidor de qualquer tradição espiritual entre o acesso ao transcendente e o dinheiro. Seja a relação com Deus, deuses, Espíritos, Orixás, Buda… nenhuma das entidades que podem povoar o mundo espiritual precisa de dinheiro e toda graça do Alto deve ser gratuita, e por isso mesmo se chama graça.
O problema são os intermediários, os que querem cobrar pedágio para o contato com o sagrado. E o problema dos adeptos é que seguem muitas vezes em suas práticas espirituais, a receita da barganha. Acham (e os intermediários fazem questão de enfatizar isso) que um pequeno investimento pode render o retorno de um milagre financeiro ou a saúde restituída ou mesmo um emprego. Trata-se de um pensamento mágico. As barganhas podem ser de outra ordem: promessas, por exemplo, de subir escadarias ferindo os joelhos (como se Deus ou os santos tivessem uma espécie de sadismo de verem os devotos ralados, sofrendo); votos de qualquer espécie – geralmente que impliquem sacrifício pessoal; cumprimento de certos rituais ou orações em troca de graças concedidas. Ou seja, transferimos a relação mercantil que perpassa a nossa sociedade capitalista para a relação com o mundo espiritual. Ou queremos pagar pela graça ou nos esforçamos através do autoflagelo, para recebê-la, como nos matamos para ter um salário no final do mês. Está claro que essa é uma abordagem muito mais materialista e utilitarista da prática religiosa, do que elevada e espiritual. Queremos submeter a divindade aos nossos caprichos, na base da barganha. Por isso mesmo, os intermediários se aproveitam e estimulam mesmo esse comércio religioso, para lucrar com os dividendos, que certamente não chegam a qualquer divindade.
A missão real e profunda das diversas formas de espiritualidade é tornar o ser humano melhor, despertando nele valores de fraternidade e amor, compaixão e paz. E entre os valores mais apregoados aos quatro ventos espirituais, do budismo ao cristianismo, do hinduísmo ao espiritismo, da umbanda ao islamismo, está o do desprendimento material, da abnegação do interesse pessoal, justamente para maior partilha dos bens, para a prática da caridade e da solidariedade, pois o que caracteriza qualquer filosofia religiosa é de que estamos aqui de passagem e que do mundo nada se leva.
Há, porém, outra questão que toca mais vivamente a nossa realidade no Brasil. Em países com melhor distribuição de renda e menos desigualdade, Edir e Malafaia não fariam tanto sucesso. Porque essa exploração desenfreada da fé também se instala onde falta perspectiva de vida digna, onde falta educação crítica, onde falta uma organização social que garanta o que os fiéis vão esperar que Jesus lhes traga.
Posto tudo isso, vemo-nos, porém, na contingência, por mais espiritualizados que pretendamos ser, de lidar com essa coisa onipresente em nosso mundo, que é o dinheiro, enquanto não conseguirmos desmercantilizar a vida na Terra com a abolição do sistema capitalista. Não há possibilidade de organizarmos uma comunidade, seja religiosa, política, cultural, sem financiarmos de alguma forma a sobrevivência da iniciativa. Então, há que se ter ainda mais a virtude do desprendimento, para que possamos gerir o dinheiro necessário, com transparência, abnegação – na maioria das vezes com sacrifício, porque se estamos numa proposta de transformação real de consciências e de mudança do mundo e não de anestésico do espírito crítico, tudo se torna mais difícil. E isso vale para um órgão de mídia independente, um centro de divulgação de propostas de esquerda, uma editora comprometida com ideias alternativas ou uma associação de práticas espirituais, com verdadeiro espírito de comunidade e fé. Mas é esse fermento de idealismo, engajamento e esperança que pode nos garantir a superação de um mundo em que até Deus é vendido no mercado.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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