Diretor da ONG Life After Hate explica como funciona a desconversão de neonazis, supremacistas brancos e outros extremistas.
ANGELA KING tinha 23 anos quando foi presa em 1998 por seu envolvimento em crimes de ódio nos Estados Unidos. Durante a adolescência, ela viveu mergulhada em círculos neonazistas: arranjava briga em bares, andava armada e mostrava tatuagens de suástica, rostos vikings e saudações nazistas. Ela estava convencida de que o ódio contra negros e judeus era o caminho certo para canalizar suas frustrações e usava essa identidade para enfrentar o bullying sofrido na escola.
A realidade que encontrou atrás das grades, no entanto, foi totalmente diferente. Enquanto estava confinada, longe dos amigos skinheads, algumas das poucas pessoas que lhe estenderam a mão foram justamente mulheres negras jamaicanas. King nunca tinha convivido com tantas pessoas de origens diferentes, e aquilo provocou uma mudança profunda no que ela acreditava.
Fora da prisão, três anos depois, estudou sociologia e psicologia na faculdade e começou a dar palestras sobre sua experiência em grupos de ódio. Em um evento contra o extremismo na Irlanda, em 2011, ela conheceu outros ex-membros de grupos de ódio que tinham um blog chamado Life After Hate, onde compartilhavam histórias semelhantes à dela. A partir desse encontro, surgiu a ideia de transformar o blog – A Vida Depois do Ódio, em tradução livre – em uma organização sem fins lucrativos para ajudar mais pessoas a sair dos círculos violentos da extrema direita. “Foi um alívio estar perto de outras pessoas que sabiam o que eu tinha passado na minha vida, que compreendiam as dificuldades e a dor da reconciliação e de ter que reformar a própria identidade, de cima para baixo”, escreveu King em um texto publicado em novembro de 2021, no site da entidade.
Nesses mais de 10 anos, a Life After Hate ajudou milhares de pessoas no processo de desconversão de grupos de ódio. Em 2020 e 2021, o Departamento de Segurança Interna dos EUA concedeu à organização subsídios no valor total de 1,4 milhão de dólares para atender populações prisionais ligadas aos movimentos de supremacia branca e ajudar na implementação do programa ExitUSA, um serviço multidisciplinar lançado em 2018 que oferece apoio personalizado, educação e serviços de referência para as pessoas que desejam deixar o extremismo para trás.
Recentemente, a entidade lançou um guia com dicas práticas para os casos em que alguém próximo é cooptado por grupos de ódio. O manual orienta, por exemplo, a identificar o que o movimento extremista está proporcionando ao indivíduo: aceitação, segurança, amizade? Além disso, o documento explica que é preciso se manter por perto, demonstrar carinho, estar disposto a escutar e não estigmatizar a pessoa que se quer ajudar.
Conversei com Dimitrios Kalantzis, diretor de comunicações da Life After Hate, sobre o trabalho de desconversão – e como ele pode ser aplicado em diferentes realidades. Segundo ele, sempre há uma janela de oportunidade. “Invariavelmente, as pessoas que se envolvem nesses grupos acabam decepcionadas de uma forma ou outra. Nossa maior esperança é encontrar alguém quando está nessa fase de desilusão, identificar a causa e ajudá-lo”. Durante a conversa, Kalantzis também explica como a entidade atua na recuperação de ex-extremistas e fala sobre os desafios de lidar com a articulação de grupos de ódio nas redes sociais.
Confira a entrevista completa:
Intercept – Como começou o trabalho da Life After Hate?
Dimitrios Kalantzis – Atuamos há pouco mais de 10 anos. Fomos fundados por ex-membros de grupos extremistas violentos, quase todos da extrema direita. E o que eles identificaram uma década atrás é que conseguiram se desengajar e se desradicalizar desses grupos de ódio sem uma estrutura de apoio. Quando se conheceram, chegaram à conclusão de que ninguém que quisesse sair de um grupo de ódio deveria fazê-lo sozinho.
Há muitos fatores envolvidos no desengajamento de alguém envolvido em um grupo de ódio, tanto de forma online quanto na vida real – e ainda mais quando é uma combinação dos dois. Às vezes, as pessoas se sentem arrependidas, envergonhadas ou estigmatizadas pelo envolvimento nesses grupos, e isso poderia levá-las a adentrá-los cada vez mais. Uma das nossas ideias é oferecer apoio de quem passou por algo semelhante, assim as experiências dessas pessoas são menos devastadoras e elas sentem que há alguém que entende o que elas passaram.
Como funciona o processo de desradicalização?
Hoje em dia, somos uma equipe multidisciplinar de profissionais, e não apenas ex-extremistas. Cinco anos atrás, lançamos um programa chamado ExitUSA, criado a partir de modelos testados inicialmente na Europa, principalmente na Noruega, na Alemanha e na Suécia. O projeto ajuda a recuperar pessoas utilizando as razões que elas já têm para fazer o desengajamento e dando a preparação necessária para os obstáculos que vêm pela frente. O que fazemos é o gerenciamento de casos.
Para algumas pessoas, isso pode significar indicação de terapia, encaminhamento a um serviço de saúde mental. Também poderia significar conectar as pessoas com programas de oferta de emprego ou dependência química. Para outras, pode significar fazer parte de um grupo de apoio com ex-membros de grupos extremistas, que só querem conversar com alguém que teve uma experiência semelhante, para falar sobre aquilo com que estão lidando. E algumas vezes é uma combinação de mais de uma estratégia. Muitos de nossos clientes se beneficiam dos serviços de gerenciamento de casos por um período aproximado de 12 a 18 meses. Mas a reintegração na sociedade pode levar anos – conheço gente que durou mais de 10 anos nesse processo.
Por que a desradicalização demora tanto em alguns casos?
Existe uma diferença importante entre desengajamento e desradicalização. O primeiro consiste em interromper um comportamento relacionado à sua participação naquele grupo. Se você fosse parte de uma gangue de rua, isso significaria se afastar daquele grupo, não fazer mais parte desse núcleo. No caso de uma imersão online, seria equivalente a cortar o consumo e a disseminação de propaganda. Já a desradicalização é o processo no qual você começa a mudar aquilo em que você acredita sobre esses assuntos. Isso é muito mais complicado e muito mais difícil de avaliar.
O que nós procuramos inicialmente é o desengajamento: como as pessoas chegam lá e se mantêm engajadas. Essa não é uma trajetória linear, como se alguém fosse vencendo etapas até se graduar. É uma série de altos e baixos. E acredito que o ponto forte da nossa organização é que conseguimos abordar essas pessoas sem julgá-las, com compaixão, para que, quando ocorram esses altos e baixos, sejamos capazes de identificá-los e revertê-los, oferecendo a ajuda necessária.
O que leva alguém a fazer parte de grupos de ódio da direita radical?
O indivíduo que foi introduzido no movimento por criação da própria família está em um contexto diferente do de alguém que entrou nesse meio por causa de uma namorada ou um namorado, por exemplo. A ideia geral é identificar o que o movimento proporcionou ao indivíduo e explorar isso de forma a suprir essas mesmas necessidades, sem que isso esteja atrelado ao movimento. Esse é outro ponto importante de entender: os grupos de ódio dão algum benefício, ou aparente benefício, à pessoa envolvida. Por exemplo, algumas pessoas acabam em grupos de ódio porque encontram um sentido para sua vida que até então não tinham experimentado. Poder, status: esses são ingredientes fundamentais para entender o funcionamento desses grupos.
Que tipo de comportamentos uma pessoa apresenta quando está começando a se radicalizar?
Varia muito conforme a pessoa. Tem gente que mergulha em espaços de ódio na internet e, em questão de seis a nove meses, está cometendo atos de violência em massa. Ocorre de forma tão rápida que é quase impossível antecipar. Se houver alguma alteração no círculo de amigos, talvez os pais percebam diferenças no envolvimento com questões políticas. As pessoas ficam imersas em assuntos políticos nos quais antes não tinham interesse, começam a defender posições mais radicais em temas como migração, por exemplo. Também podem ter mais problemas com as autoridades, cometer pequenos delitos para apoiar o movimento.
Outro ponto para ficar atento é um aumento na atividade online, principalmente em espaços fora do mainstream ou completamente bloqueados. Além disso, há o compartilhamento de fontes de “notícias” não verificadas. A imersão total nesses espaços de ódio é um sinal evidente [desse processo].
E como é possível interromper essa conversão?
Invariavelmente, as pessoas que se envolvem nesses grupos acabam decepcionadas de uma forma ou outra. Nossa maior esperança é encontrar alguém quando está nessa fase de desilusão, identificar a causa, e ajudá-lo. Embora pareça contraintuitivo, uma vez que a violência está tão enraizada nesses grupos, a própria violência [dos grupos] é a melhor oportunidade para se desengajar, para se desiludir, especialmente quando essa violência é perpetrada contra pessoas inocentes.
Dois dos nossos fundadores começaram a deixar os grupos de ódio em 1995, após o atentado de Oklahoma, quando um grupo detonou uma bomba em um edifício federal no centro de Oklahoma e matou dezenas de pessoas, incluindo crianças pequenas que estavam em uma creche no térreo. Foi um momento chocante para o país, porque por muito tempo tínhamos ignorado o radicalismo de extrema direita.
Tivemos a mesma postura enquanto nação até os atos em Charlottesville, 20 anos depois: esse foi o momento em que as pessoas viram na televisão dezenas de homens protestando na rua com tochas, alegando que os judeus não os substituiriam. No dia seguinte, um motorista avançou contra os outros manifestantes [contrários aos supremacistas] e matou uma mulher e deixou outras pessoas feridas. Agora é outro momento-chave para que as pessoas comecem o processo completo de desengajamento.
Outros motivos que levam os membros a sair desses grupos são as brigas internas – as pessoas podem ficar de saco cheio e dizer ‘não quero fazer parte de um grupo que esteja fazendo isso’. No caso das mulheres, podem se sentir motivadas a sair para não criar os filhos naquele ambiente ou por ficarem frustradas com a forte misoginia presente nesses movimentos. São diferentes fatores e todos dependem de situações muito pessoais. As pessoas entram em ciclos de proximidade e afastamento desses grupos por décadas. Nossa esperança é fisgá-las quando estiverem no ciclo de saída para que não voltem mais.
Quando você fala em ‘fisgar’ essas pessoas, isso significa que vocês também vão ativamente atrás dos extremistas?
De forma geral, as pessoas chegam até nós de maneira totalmente voluntária, buscando algum tipo de ajuda. No futuro – e já começamos esse processo –, vamos usar anúncios direcionados na internet. Já estivemos envolvidos em campanhas que usaram a tecnologia do Google Ads para alcançar potenciais indivíduos naquele estado de desilusão. Esse tipo de recurso nos parece muito promissor e certamente vamos seguir explorando essa tática.
Qual é o papel das redes sociais e de teorias da conspiração, como QAnon ou terra plana, na adesão aos grupos de ódio?
Primeiro, elas tornam o conteúdo acessível a um grande número de pessoas. O extremismo é um jogo de pequenas porcentagens. E nada serviu melhor a esse jogo do que as redes sociais. Você pode criar uma rede enorme com pouco ou nenhum custo. Tudo o que você precisa fazer é atrair um bom punhado de pessoas.
O segundo ponto é que as pessoas envolvidas começam a ficar viciadas nesse engajamento. Elas estão constantemente imersas nesses espaços, retornam toda hora para saber qual tipo de impacto tiveram, sem importarem se estão trollando pessoas ou não. E também estão fazendo conexões com outros indivíduos, algo que não deve ser subestimado. Lembro de um pesquisador falando sobre isso há algumas semanas: o consumo de propaganda online, seja por redes sociais ou fóruns, ocorre em um cenário muito íntimo – geralmente em casa. Isso pode fazer alguém sentir que está construindo relações verdadeiras com outras pessoas (por mais que não esteja). É algo que pode trazer uma sensação boa para as pessoas que, de outra forma, se sentiriam fora da sociedade, solitárias ou sem poder.
O que você diria para quem deseja sair de um grupo de ódio ou quer ajudar outra pessoa a sair?
A primeira coisa é saber que você não está sozinho – seja você mesmo o envolvido ou alguém com quem você se preocupa. Há muitas outras pessoas enfrentando os mesmos desafios. Estenda a mão e busque ter a ajuda necessária, mesmo que ela seja apenas suporte emocional para se sentir menos sozinho e menos estigmatizado. Se você é familiar de alguém que passa por isso, faça o seu melhor para proteger a si mesmo e sua família, mas mantenha a porta aberta. Mantenha o relacionamento vivo, porque essa pessoa vai se recuperar. E é mais provável que volte se souber que lhe espera uma comunidade aberta à ideia de que as pessoas podem mudar e que esteja preparada para perdoá-la.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.