O partido mídia e o crime organizado
por
Emiliano José
Algumas análises sobre a velha mídia
brasileira, aquela concentrada em poucas famílias, de natureza monopolista, e
que se pretende dona do discurso e da interpretação sobre o Brasil, pecam por
ingenuidade. Pretendem conhecer sua atuação orientando-se pelos cânones e
técnicas do jornalismo, como se ela se guiasse por isso, como se olhasse os
fatos com honestidade, como se adotasse os critérios de noticiabilidade, como
se recusasse relações promíscuas com suas fontes, como se olhasse os fatos
pelos vários lados, como se recusasse uma visão partidarizada da cobertura.
Essa velha mídia não pode ser
entendida pelos caminhos da teoria do jornalismo, sequer por aquela trilha dos
manuais de redação que ela própria edita, e que se seguida possibilitaria uma
cobertura minimamente honesta. Ela abandonou o jornalismo há muito tempo, e se
dedica a uma atividade partidária incessante. Por partidária se entenda, aqui,
no sentido largo da palavra, uma instância que defende uma política, uma noção
de Brasil, sempre ao lado dos privilégios das classes mais abastadas. Nisso,
ela nunca vacilou ao longo da história e nem cabe recapitular. Portanto, as
clássicas teorias do jornalismo não podem dar conta da atividade de nossa velha
mídia.
Volto ao assunto para tratar da pauta
que envolveu o senador Demóstenes Torres e o chefe de quadrilha Carlinhos
Cachoeira. É possível adotar uma atitude de surpresa diante do acontecido? Ao
menos, no mínimo, pode a revista VEJA declarar-se estupefata diante do que foi
revelado nas últimas horas? Tudo, absolutamente tudo, quanto ao envolvimento de
Carlinhos Cachoeira no mundo do crime era de conhecimento de VEJA. Melhor: era
desse mundo que ela desfrutava ao montar o que lhe interessava para atacar um
projeto político. Quando caiu o senador Demóstenes Torres, caiu a galinha dos
ovos de ouro.
“Esqueçam o Policarpo”. Está certo,
certíssimo, o jornalista Luis Nassif quando propõe que se esqueça o jornalista
Policarpo Júnior que, com os mais de duzentos telefonemas trocados com
Cachoeira, evidenciou uma relação profunda, vá lá, com sua fonte, e se ponha na
frente da cena o, vá lá, editor Roberto Civita.
Este, como se sabe, constitui o
principal dirigente do partido midiático contrário ao projeto político que se
iniciou em 2003, quando Lula assume. Policarpo Júnior apenas e tão somente,
embora sem nenhuma inocência, cumpria ordens de seu chefe. Agora, que será
importante conhecer o conteúdo desses 200 e tantos telefonemas do Policarpo
Júnior com Cachoeira, isso será. Até para saber que grampos foram encomendados
por VEJA ao crime organizado.
Nassif dá uma grande contribuição à
história recente do jornalismo ao fornecer um impressionante elenco de matérias
publicadas por VEJA nos últimos anos, eivadas de suposições, sem qualquer
consistência, trabalhadas em associação com o crime. Civita nunca escondeu a
sua posição contra o PT e seus aliados. É um militante aplicado da
extrema-direita no Brasil, e que se dedica, também, subsidiariamente, a
combater os demais governos reformistas, progressistas e de esquerda da América
Latina.
Importante, como análise política, é
que o resto da mídia sempre embarcou – e com gosto – no roteiro, na pauta, que
a revista VEJA construía. Portava-se, não me canso de dizer, como partido
político. Não adianta escamotear essa realidade da mídia no Brasil. O restante
da velha mídia não queria checar, olhar os fatos com alguma honestidade. Não.
Era só fazer a suíte daquilo que VEJA indicava. Esse era um procedimento usual
dos jornalões e das grandes redes de tevê.
Barack Obama, ao se referir à rede
Fox News, ligada a Rupert Murdoch, chamou-a também de partido político, e
tirou-a de sua agenda de entrevistas. Não é novidade que se conceitue a mídia,
ou grande parte dela, como partido político conservador. Pode lembrar Gramsci
como precursor dessa noção, ou, mais recentemente, Octavio Ianni que a chamava
de Príncipe Eletrônico. No Brasil, inegavelmente, essa condição se escancara. A
velha mídia brasileira sequer disfarça. Despreza, como já se disse, os mais
elementares procedimentos e técnicas do bom jornalismo.
Na decisão da Justiça Federal em
Goiás, ressalta-se, quase que com assombro, os “estreitos contatos da quadrilha
com alguns jornalistas para a divulgação de conteúdo capaz de favorecer os
interesses do crime”. Esses contatos, insista-se, não podem pressupor inocência
por parte da mídia, muito menos da revista VEJA que, como comprovado, privava
da mais absoluta intimidade com o crime organizado por Carlinhos Cachoeira e o
senador Demóstenes Torres dada à identidade de propósitos.
Esse episódio, ainda em andamento,
deve muito, do ponto de vista jornalístico, a tantos blogs progressistas, como
o de Luis Nassif (vejam “Esqueçam Policarpo: o chefe é Roberto Civita”); o de
Eduardo Guimarães, Blog da Cidadania (vejam “Leia a espantosa decisão judicial
sobre a Operação Monte Carlo”); o Portal Carta Maior (leiam artigo de Maria
Inês Nassif, “O caso Demóstenes Torres e as raposas no galinheiro”); o Blog do
Jorge Furtado (“Demóstenes, ora veja”), o Vi o Mundo, do Azenha, entre os que
acessei.
Resta, ainda, destacar a revista
CartaCapital que, com matéria de Leandro Fortes, na semana que se iniciou no
dia 2 de abril, furou todas as demais revistas ao evidenciar a captura do
governo de Marconi Perillo pelo crime organizado de Demóstenes Torres e
Carlinhos Cachoeira. Em Goiânia, toda a edição da revista foi comprada aos
lotes por estranhos clientes, ninguém sabe a mando de quem – será que dá para
desconfiar?
A VEJA enfiou a viola no saco. Veio
de “O mistério renovado do Santo Sudário”, tão aplicada que parece ser no
conhecimento dos caminhos do cristianismo, preferindo dar apenas uma chamadinha
na primeira página sobre “Os áudios que complicam Demóstenes” e, internamente,
mostrar uma matéria insossa, sem nenhuma novidade, com a tentativa, também, de
fazer uma vacina para inocentar o editor de Brasília, Policarpo Júnior. Como
podia ela aprofundar o assunto se está metida até o pescoço com Demóstenes
Torres e Carlinhos Cachoeira?
Impunidade do crime jornalístico
Há algumas perguntas que pairam no
ar. O jornalismo pode ser praticado dessa maneira, em associação explícita com
o crime organizado, sem que nada aconteça aos que assim procedem? Por menos do
que isso, a rede de Rupert Murdoch, na Inglaterra, enfrenta problemas sérios
com a Justiça, houve prisões, e seu mais importante semanário, o News of the
World, que tinha 168 anos, e era tão popular quanto desacreditado, fechou.
E aqui? O que se fará? A lei não
prevê nada para uma revista associada havia anos com criminosos de alto
coturno? Creio que se reclamam providências do Ministério Público e, também,
das associações profissionais e sindicais do jornalismo. Conivência com isso,
não dá. Assim, o crime compensaria, como compensou nesse caso durante anos.
Há, ainda, outra questão, e de grande
importância e que a velha mídia ignorou solenemente, e este foi um trabalho
realizado primeiro pelo jornalista Marco Damiani, do Portal 247, e completado,
de modo brilhante, pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, evidenciando a
atuação do crime organizado de Demóstenes Torres e Carlinhos Cachoeira na
construção do que ficou conhecido como Mensalão.
A entrevista com Ernani de Paula
(ex-prefeito de Anápolis) feita por Paulo Henrique Amorim é impressionante. Ele
fora derrubado da Prefeitura numa articulação que envolveu a dupla criminosa, e
agora revela o que sabe, e diz que tudo o que se armou contra o ex-chefe da
Casa Civil do primeiro governo Lula, José Dirceu, e contra o governo Lula,
decorreu da ação consciente e criminosa de Carlinhos Cachoeira, que se insurgia
contra um veto de José Dirceu à assunção de Demóstenes Torres ao cargo de
Secretário Nacional de Justiça do governo, depois que ele se passasse para o
PMDB.
Em qualquer país do mundo que tivesse
um jornalismo minimamente comprometido com critérios de noticiabilidade, ainda
mais diante do possível julgamento do processo denominado Mensalão, ele
entraria fundo no assunto para que as coisas se esclarecessem. Mas, nada.
Silêncio.
É como se a velha mídia tivesse medo
de que a construção da cena midiática em torno do assunto, construção que tem
muito de fantasiosa e é obviamente contaminada por objetivos políticos, pudesse
ser profundamente alterada com tais revelações e, inclusive, ter reflexos no
julgamento que se avizinha. Melhor deixar isso confinado aos “blogs sujos” e às
poucas publicações que se dedicam ao jornalismo. A verdade, no entanto, começa
a surgir. Nós não precisamos mais do que dela, como dizia Gramsci. Insistamos
nela. Se persistirmos, ela se imporá. Apesar do velho partido midiático.
(*) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.
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