Ele trouxe a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e com sua forma única de exercer o papado.
O Papa Francisco e a esperança
por Dora Incontri
Não quero de forma alguma caracterizar esse texto como um tributo que anuncia a morte de uma grande liderança mundial, o Papa Francisco, que de fato apresenta por esses dias um estado delicado de saúde. Ele está internado com pneumonia dupla. Quero, queremos muitos, que consiga superar esse momento, porque precisamos de sua presença no mundo.
É que estou quase terminando a leitura de seu livro Esperança, a autobiografia. Minha apreciação já começa com o título peculiar. Significativo que o subtítulo é a autobiografia, como se sua vida fosse uma nota de rodapé, submetida ao compromisso da esperança, um ensaio constante de esperançar – para usar um verbo caro a Paulo Freire.
É verdade que a vida de Giorgio Bergoglio trouxe por si mesma a esperança de renovação religiosa e política, com seu exemplo, com suas ideias e finalmente com sua forma única, simples e transformadora de exercer o papado. Lembremos que a instituição do papado levou à divisão da Igreja do Ocidente e do Oriente, provocou a ruptura da Reforma protestante e representou ao longo da história um lugar de poder desmedido, de imposições e perseguições, de corrupção e luxúria. O anarquista e espírita Maurice Lachâtre se deu ao trabalho, no século XIX, de escrever milhares de páginas de horrores em seu livro Crimes e história dos Papas.
No início deste século XXI, a Igreja tinha atravessado o retrocesso de Papas conservadores (João Paulo II e Bento XVI), quando surge a figura leve, aberta, amorosa e simples do Papa Francisco, um papa que transpôs os limites da Igreja Católica, para ser amado e admirado por pessoas de outras religiões ou mesmo sem religião. Prova disso é que estou aqui escrevendo esse texto em sua homenagem, sendo espírita kardecista, e, portanto, completamente desconectada da tradição do papado.
Giorgio chegou ao Vaticano e já evocou o que houve de mais luminoso e autenticamente cristão em toda a história da Igreja Católica: Francisco de Assis. Sendo jesuíta, mas tendo adotado o nome de Papa Francisco, (pela primeira vez na história da Igreja) já anunciava que seu compromisso seria de despojamento, de renúncia ao culto pessoal, de conexão com a natureza, de compaixão para com todos os excluídos e de disposição de diálogo com religiosos de todos os matizes e não religiosos de todos os rincões.
Começou por abolir os rituais de submissão pessoal: beija-mão, ajoelhar-se diante dele, tapete vermelho, vestimenta de púrpura, assento em trono, moradia em palácio.… Simplificou tudo, despojou-se de formalismos, como convém a alguém que esteja inspirado pelo exemplo de Francisco de Assis.
Depois, partiu para o diálogo com o mundo. Abriu-se para lideranças religiosas e políticas de todo o planeta, procurando estabelecer vínculos fraternos, cheios de respeito e proposta de cooperação universal, para salvar a Terra, para acabar com a guerra, para proteger os vulneráveis.
A sua história de vida, tão saborosamente retratada nesta Autobiografia, explica muito de sua postura humana e humanista. É de uma família de imigrantes italianos, por todos os lados (aliás como a minha, e essa ressonância produz intensas emoções nesta leitura). As circunstâncias da imigração e as lutas intensas semelhantes na Argentina e no Brasil, nas primeiras décadas do século XX deixaram nele marcas profundas. O interessante que, ao contrário de muitos italianos que já estavam radicados por aqui quando da ascensão do fascismo e, de longe, aderiram entusiasticamente ao Duce, a família de Bergoglio saiu da Itália em oposição a essa tomada de poder pela extrema direita. O menino foi criado de maneira simples, pobre, num catolicismo popular, mas com espírito crítico. Essa sua ascendência fez dele um defensor engajado dos refugiados, dos imigrantes, dos que enfrentam a fuga das guerras, da fome, das violências políticas, com tanta resistência de acolhimento por parte dos países mais ricos.
O que transparece na obra toda em que narra a sua vida é a profunda conexão com o mundo e seus problemas, com o momento histórico e suas tragédias globais. Isso vem também de sua inserção cultural. Leitor de boa literatura, amante da música, ligado ao cinema de arte – ou seja, uma erudição que não é apenas teológica, fechada em fontes religiosas – mostra que a arte é transformadora e formadora de pessoas engajadas no mundo.
Suas duas encíclicas, diretamente inspiradas em Francisco de Assis, Laudato si’ (2015) e Frattelli Tutti (2020) são obras-primas de defesa da vida, da natureza, de todos os povos e pessoas excluídas e marginalizadas. São apelos ao cuidado com o planeta e ao cuidado com o outro. E já no início da Frattelli Tutti, o Papa alude ao seu diálogo com uma liderança muçulmana, o Imã Ahmad Al-Tayyeb, lembrando da visita que Francisco de Assis fez ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em plena vigência das Cruzadas.
A sua atitude de abertura não se manifestou, nestes anos todos, apenas em relação ao diálogo com o outro, mas nas reformas que conseguiu implementar dentro da própria Igreja. Herdeiro da Teologia da Libertação, como bom latino-americano, que enfrentou na Argentina os horrores da ditadura militar, soube trazer temas absolutamente urgentes: o acolhimento aos homossexuais, o combate ao abuso sexual dentro da Igreja, a maior inserção das mulheres – isso tudo apesar da resistência brutal que tem enfrentado dos mais conservadores e dos fundamentalistas, que não faltam em qualquer religião nos dias de hoje.
Mas Francisco afirma em seu livro: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído pelas ruas a uma Igreja asfixiada e doente pela clausura e pela conveniência de se agarrar às próprias certezas”.
Esperemos que suas sementes frutifiquem, que venham outros papas que continuem a sua obra, quando ele se for, e que não assistamos a retrocessos tristes, em consonância com os retrocessos mundiais.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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