Em um outro artigo, mencionei que há décadas as igrejas evangélicas, principalmente as neopentecostais, preparam o terreno para a ascensão de ideias fascistas no Brasil, ao propagar um fundamentalismo cristão baseado na desvalorização ou demonização de certos grupos sociais, como os LGBTs, praticantes de religiões de matriz africana ou indígena, mulheres, feministas e “comunistas”. Acrescente-se a estes grupos os dependentes químicos, inclusive do álcool, cujo uso é proibido ou bastante restringido entre os fiéis.
Mas como as igrejas evangélicas conseguiram tamanha adesão popular, entrando em espaços propícios à esquerda, inclusive à religiosidade de esquerda, como foi a Teologia da Libertação, nascida no seio do catolicismo?
Mas como as igrejas evangélicas conseguiram tamanha adesão popular, entrando em espaços propícios à esquerda, inclusive à religiosidade de esquerda, como foi a Teologia da Libertação, nascida no seio do catolicismo?
O novo indivíduo e a fé evangélica
Não ser uma fé alinhada com as ideias de esquerda foi justamente que proporcionou o sucesso da fé evangélica. O capitalismo não é apenas um sistema econômico que explora os trabalhadores. Ele desenvolve o que Marx chamava de ideologia, que é um sistema de ideias e crenças que justifica esta exploração.
Eu iria mais longe e afirmaria que o capitalismo, mais que ter uma ideologia (parte de sua superestrutura) é uma cultura, no sentido antropológico do termo. Uma cultura inédita na história da humanidade, na qual as pessoas alienam seu poder criativo a uma forma social abstrata chamada capital. O capital tem leis objetivas e rigorosas, mas profundamente estranhas ao que nas culturas anteriores se identificava como humano.
O objetivo principal do capital, o de multiplicar-se indefinidamente através do lucro, é simplesmente desumano. As pessoas que nascem sob o regime capitalista podem não notar, mas o principal objetivo de sua vida é o de trabalhar para reproduzir uma riqueza abstrata que, concretamente, jamais lhe servirá. Por isto, Marx, em certos momentos, diz que, por trás da subjetividade burguesa, o que impera de fato é o sujeito automático, que é o próprio capital comandando, a partir do inconsciente, as ações humanas.
Num regime capitalista plenamente estabelecido, o sujeito automático assume então a hegemonia da subjetividade dos indivíduos que passam a pensar e agir para o capital, tanto individualmente quanto coletivamente.
O Brasil das décadas de 70 e 80 é um país majoritariamente urbano e plenamente capitalista, mesmo nas pequenas cidades do interior. Alguns argumentam que o capitalismo nunca foi pleno no país, carente, por exemplo, de uma forte burguesia industrial. Eu responderia que, com a urbanização maciça e desordenada das décadas de 60 e 70, promovida pelo desenvolvimentismo da ditadura militar, o processo capitalista se completou no país, na forma de um capitalismo de estado de direita.
A população ativa da década de 1980 já está completamente desenraizada da cultura rural, que até meados do século XX preservava fortes características arcaicas e não capitalistas, como, por exemplo, a quase inexistência de trabalho abstrato. A partir da década de 1980, o trabalho abstrato, mesmo que precário (como os de ambulante, pedreiro, garçom e doméstica) passa a prevalecer, alterando todo um modo de vida cotidiano, mas também a subjetividade profunda dos indivíduos, que passa a coincidir com o sujeito automático (capital).
A nova crença dos evangélicos pentecostais, continuadores da tradição protestante da ética do trabalho, do individualismo, da racionalidade (instrumental) e da disciplina pessoal, vem de encontro com esta nova subjetividade capitalista, que se torna hegemônica a partir da década de 1980. Por outro lado, apesar do sucesso momentâneo da Teologia da Libertação, suas ideias comunitárias, baseadas na solidariedade e na crítica ao individualismo exacerbado, estão muito mais vinculadas ao Brasil rural que fica para trás.
Portanto, a fé evangélica, ancorada desde suas raízes protestantes europeias na cultura capitalista, se torna muito mais adequada à psique do novo indivíduo brasileiro, urbano e que ganha a vida com seu trabalho abstrato. Psique regida, agora, pela batuta inconsciente do sujeito automático, ou seja, pelo capital; e que se torna refratária a qualquer crítica “de esquerda” ao sistema, pois a negação do sistema implicaria na negação de sua própria subjetividade, ou seja, seria um questionamento da identidade do indivíduo enquanto homo economicus, circunscrito na e pela sociedade capitalista. Por outro lado, a crença evangélica, ao afirmar a cultura do capital, reforça essa identidade individual.
A miséria e a reestruturação da psique
Não é necessária muita observação para constatar que, individualmente, a fé evangélica é responsável por numerosas reestruturações psíquicas extremamente benéficas para o indivíduo e seu círculo familiar.
O impacto destes verdadeiros renascimentos espirituais é maior ainda em ambientes sociais degradados pela miséria, como periferias, favelas e pequenas cidades. Em tais ambientes, nos quais vivem boa parte da população brasileira, os indivíduos e as famílias vivem numa perigosa proximidade com o crime (principalmente os jovens do sexo masculino) a prostituição (as mulheres jovens) e a dependência química, seja de drogas ilícitas ou do álcool. O trabalho precário ou o desemprego, a ausência de estado, a humilhação diária e o individualismo “salve-se quem puder” próprio do capitalismo tornam a miséria urbana um verdadeiro inferno, social e psicológico.
Mas os indivíduos que sofrem neste inferno são, como os demais membros da sociedade capitalista, guiados pelo sujeito automático do capital e se tornam refratários à crítica ao sistema (mesmo que limitada) que a esquerda costuma oferecer, bem como à medidas de caráter coletivista, como priorização do transporte público em substituição ao automóvel, por exemplo. O que eles desejam é terem chance de se tornar, com estudo e trabalho duro, pessoas de classe média ou, simplesmente, pessoas de bem. Trata-se portanto, dos desejos de um sujeito liberal, perfeitamente conformado à cultura capitalista. Registre-se que o grande sucesso do PT e de Lula nos anos 2000 se deveu ao fato de que esta “ralé” ascendeu socialmente, mesmo que de forma precária, realizando estes sonhos de consumo individualistas, como comprar automóvel, frequentar shoppings, viajar de avião etc.
É a estes indivíduos desesperados e desamparados, mergulhados na favela sem fim das classes populares, cuja psique é formada pelo sujeito automático, que a fé evangélica vem socorrer, com sua promessa de salvação, não em outra vida, como na fé católica, mas ainda nesta e de forma rápida e efetiva.
A conversão, de fato, disciplina e organiza a psique do brasileiro pobre e miserável, que se protege da dependência química, da criminalidade e da prostituição que rondam suas frágeis famílias num ambiente social degradante. Ao se converter, muitos passam da condição de “malandros”, “viciados” ou “perdidos” para a de pessoas de bom senso, comedidas e educadas. Maus pais passam a dar atenção aos filhos, maus maridos passam a respeitar suas parceiras, brigões se amansam, criminosos se contentam com o ganho modesto do trabalho duro e muitas vezes precário.
Não se pode negar que, para muitíssimos casos, a conversão evangélica proporciona à pessoa um verdadeiro renascimento, a partir do qual sua vida psíquica e familiar se torna muito melhor. Como consequência, o indivíduo se insere melhor também no mercado de trabalho, tornando-se mais produtivo. Mesmo nas durezas do trabalho precário e do desemprego, comuns às populações pobres, sua resignação e disciplina financeira, decorrentes de sua maior força psíquica, ajudam-no a enfrentar os percalços, mitigando seu sofrimento e de sua família.
Outro aspecto positivo das igrejas evangélicas é que elas formam efetivamente uma comunidade de “irmãos”, uma grande família na qual uns amparam os outros, psicologicamente, mas também e materialmente. Se algum membro da comunidade passa por dificuldades financeiras ou problemas de saúde, a igreja, sob a liderança do pastor, provê o básico até que o necessitado se restabeleça. Na comunidade evangélica não é raro, inclusive, que o irmão de crença privilegie o outro na hora de contratar um empregado ou se associar como parceiro de trabalho.
Este espírito comunitário é, quase sempre, a única garantia de sobrevivência em caso de desemprego, dificuldades financeiras ou de doenças que venham a acometer as pessoas muito pobres nas periferias das cidades, invisíveis para o estado e para as classes médias e altas. Trata-se, portanto, de um amparo crucial nos momentos de desamparo por que passam quase todos os pobres.
É claro que tal comunidade evangélica difere em muito das comunidades arcaicas do Brasil rural, marcadas pelo compartilhamento da terra, das atividades de cultivo e da colheita. A comunidade evangélica, ao contrário, é marcada pelo apoio através da caridade (como também as rurais) e da preparação (espiritual, mas também técnica) do irmão para o mercado de trabalho. Não se compartilham meios de produção ou ganhos financeiros, mas sim educação espiritual e técnica. Não é raro, por exemplo, que mestres de obras trabalhem apenas com serventes evangélicos, que depois se tornam pedreiros e mestres de obras, assim ocorrendo em várias outras profissões de nível básico ou médio, normalmente precárias, como mecânicos, vidraceiros, marceneiros, serralheiros, vendedores etc.
Como nas comunidades arcaicas, a regra é que os evangélicos nãos questionem os seus fundamentos culturais que, no caso são os do próprio capitalismo, pois é na ética do trabalho (e não apenas no gozo do consumo, que também é louvado) que o indivíduo evangélico é educado desde sua conversão. Ganhar e gastar, mas ganhar de forma honesta e com trabalho duro, para, depois, gozar, como recompensa de Deus, as delícias do consumo de mercadorias, fruto colhido após a semeadura do trabalho duro, da vida reta e justa do bom cristão.
A fé evangélica de caráter pentecostal instaura, então, uma integridade psíquica (no sentido de unidade, autenticidade e inteireza da psique) que a degradação da miséria destruía. Esta integridade individual acaba por se tornar também familiar, na medida em que a transformação de um membro da casa, acaba por levar os outros à conversão. Alargando o círculo, a conversão acaba por atingir grande parte dos bairros pobres, e não só estes, se tornando um fenômeno social de largo alcance, como acontece atualmente no Rio de Janeiro, onde a rígida cultura evangélica já disputa a hegemonia com as culturas tradicionais dos morros e periferias, também comunitárias, mas festivas e com fortes traços anticapitalistas, marcadas pelo samba, malandragem, erotismo e sincretismo religioso.
Na verdade, as comunidades semi-capitalistas, como a dos morros cariocas e as do sertão nordestino, são frágeis diante da hegemonia da cultura capitalista, que se torna referência em termos de valores, modo de vida e técnica. A recusa do trabalho abstrato e a cultura de subsistência não consumista, próprias do sertanejo e do malandro, são desvalorizadas como preguiça e falta da saudável ambição pela prosperidade. Não raro, os jovens destas comunidades são seduzidos pelo aspecto mais prazeroso da cultura capitalista, que é o narcisismo consumista, sem a contraparte da preparação para o consumo de uma vida inteira, marcada pelo estudo e, depois, pelo trabalho disciplinados, próprios dos filhos da classe média. O resultado é a frustração, o sentimento de impotência e inferioridade dos jovens pobres e, muitas vezes, a compensação com o dinheiro “fácil” da criminalidade e da prostituição ou a fuga para a dependência química.
A fé evangélica se apresenta, então, para reequilibrar a desorganização que o capitalismo causa nas comunidades semi-capitalistas, introduzindo a ética do trabalho de cunho protestante como contraparte necessária ao consumismo, ou seja, o gozo do consumo deve ser precedido e preparado pelo sacrifício do estudo e do trabalho. Como num tratamento de choque, todos os vícios químicos devem ser abolidos, inclusive as drogas legais como tabaco e álcool. A sexualidade, vista como outro vício corporal, deve ser contida no espaço rígido do casamento heterosexual e deve ser severamente controlada nas jovens solteiras, cuja vida sexual, idealmente, se inicia somente após o casamento, num retorno à rigidez patriarcal das sociedades rurais. Os benefícios óbvios de tais rigores é a ausência de dependência química e de prostituição na comunidade evangélica, dois perigos reais que rondam os filhos e filhas das famílias pobres das periferias e que se entrelaçam com a criminalidade urbana, que também não é praticada por jovens evangélicos.
A todos esses rigores corporais, claramente puritanos, se soma o culto da disciplina para o estudo e o trabalho, cujo objetivo é transformar o corpo e a mente do evangélico num trabalhador incansável, pai e mãe de família responsáveis (que reproduzirão nos filhos a ética do trabalho) e consumidores insaciáveis, cujos gozos interdito do corpo se reverterão no gozo consumista, abençoado como prosperidade, recompensa de Deus (ou do capital) aos que trilharam o caminho estreito da salvação. Para trilhar este caminho, o evangélico convertido deve se transformar, de um preguiçoso sem ambição, numa máquina de trabalho e consumo, como já é, há muito tempo, o homo economicus das classes médias tradicionais. Estas, inclusive, incorporadas de longa data no sujeito automático do capital, podem dispensar a rigidez puritana dos evangélicos e se tornarem liberais nos costumes, gozando não apenas os prazeres do consumo, mas também os do corpo.
A integridade psíquica que a fé evangélica promove é, na verdade, uma integração total da psique humana no sujeito automático do capital. Processo que já fora concluído há tempos na Europa pelo protestantismo.
O preço da integridade psíquica: a violência canalizada
Para o indivíduo e famílias das classes populares há claros benefícios na conversão evangélica. A recuperação do pertencimento a uma comunidade, mesmo que seja de mônadas individualistas, é um deles. Mas, principalmente, a reestruturação da psique que, ao se integrar no sujeito automático, se torna íntegra sob a perspectiva cultural do capitalismo, perfazendo uma subjetividade amalgamada na lógica da mercadoria. Ao mesmo tempo que se sacrifica às durezas do trabalho abstrato (o corpo como oferenda de si, na forma da mercadoria-trabalho), o sujeito tem como recompensa o gozo do consumismo (o corpo como fruidor de mercadorias produzidas pelo mesmo trabalho abstrato).
No sujeito capitalista, o sacrifício da produção de mercadorias com a mercadoria-trabalho tem como contraparte inseparável o gozo consumista da fruição das mercadorias, troca mercantil que realiza o capital, multiplicando-o (pelo lucro) e renovando-o para outro ciclo reprodutivo. No ciclo capitalista de produção e consumo, o ser humano funciona como uma espécie de órgão reprodutor do capital, que se utiliza das pessoas para seu objetivo de reprodução ilimitada.
Como bem observou Marx, na cultura capitalista, a forma social capital, inventada pelas pessoas e que se reproduz apenas por meio do trabalho humano, se torna autônoma e passa a impor sua lógica cega e abstrata aos próprios seres humanos que a inventaram e que se tornam escravos de suas coerções. A ética do trabalho da fé evangélica de caráter pentecostal, assim como do protestantismo europeu, funciona como um adestramento das mentalidades na lógica da mercadoria, subordinando a psique humana ao sujeito automático, que é o próprio capital encarnado no humano.
O processo de evangelização, como vimos, traz claros benefícios individuais e familiares às pessoas pobres das periferias, por conta da unidade psíquica que promove, mas gera, por outro lado enormes frustrações, que devem ser descarregadas de alguma forma.
A primeira destas frustrações é que a evangelização, embora amenize o problema da exclusão social decorrente da pobreza, não o soluciona. Ao se constituir psicologicamente como sujeito automático, o evangélico torna-se mais preparado e disciplinado para enfrentar o mercado e, em caso de insucesso profissional, pode contar com a ajuda da comunidade evangélica e mesmo com sua psique mais estruturada para se resignar com o fracasso.
Nada disso, no entanto, elimina o fato de que a imensa maioria dos evangélicos pobres continuarão pobres e exercendo trabalhos precários, transitando entre o desemprego, a informalidade, a terceirização e os empregos temporários, todos de baixa remuneração e alta exploração. As tendências do capitalismo tardio financeirizado, em todo o mundo, é a de aumento da desigualdade e da precarização do trabalho.
Os evangélicos (e também as classes médias tradicionais), ao integrarem sua psique ao sujeito automático do capital, perdem a capacidade de criticar o capitalismo, pois tal crítica poria em questão sua própria identidade subjetiva. São auto-interditados, portanto, de questionar o capitalismo, primeiro pela via tradicional das esquerdas, que baseia sua crítica na luta de classes, ou seja, na exploração do trabalho pelo capital, propondo, como solução uma melhor distribuição da renda e da riqueza, por meio da intervenção estatal. São mais incapazes ainda de criticar as categorias básicas do capital que, a partir do sujeito automático, constitui sua própria base psíquica: trabalho, mercadoria e valor/dinheiro são, pelo contrário, absorvidos na crença evangélica e louvados como dádiva da prosperidade. Ressalte-se que, neste aspecto, nem as esquerdas são capazes da crítica categorial do capitalismo, principalmente no que se refere à crítica ao trabalho, tão louvado à esquerda quanto à direita. Apenas alguns artistas e escritores conseguem, de forma intuitiva mas poderosa, criticar a ética do trabalho de fundo protestante.
A frustração da pobreza persistente, se não pode ter sua causa real (que é o próprio capitalismo) revelada e enfrentada, deve ser canalizada para outras pessoas, para um outro. Este outro tem muitas faces, mas que pode genericamente ser designado por corrupto (ou imoral). A fonte do mal passa a ser, então, a corrupção (imoralidade) humana, que pode se dar na esfera do corpo (sexualidade e dependência química), da política, dos negócios ou do crime.
Os corruptos passam a ser a causa da miséria e da degradação social. Os LGBTs, as feministas, os ladrões, traficantes e dependentes químicos acabam por se tornarem responsáveis pela crise da sociedade capitalista, numa inversão em que as vítimas se tornam a causa dos problemas sociais. Mas principalmente a corrupção política passa a ser responsável pela apropriação indébita da riqueza do país que, de outra forma, poderia irrigar o mercado e recompensar dignamente o trabalho duro.
Esta mistificação da corrupção política como causa principal da miséria do povo não se sustenta empiricamente, mas a persistência endêmica da corrupção na sociedade brasileira (na verdade, em todas as sociedades capitalistas) é suficiente para que a política e os políticos profissionais sejam identificados como a fonte dos males sociais do país, não apenas para os evangélicos, mas para a população em geral. É de se destacar que a imagem de homem do povo, tanto de Lula quanto de Bolsonaro se sobreponha a de político, bem como a imagem inicial de Collor como empresário inimigo dos marajás, de Dilma como gerente e a de Fernando Henrique como intelectual, tenham sido relevantes em suas respectivas eleições. São personagens que entraram na política, mas preservando uma certa imagem de pureza em relação à corrupção comumente associada ao meio político.
A conversão evangélica funciona como uma defesa contra a violência social, psíquica e física às quais as populações pobres das periferias são diariamente submetidas, cuja causa principal é a exclusão social promovida pelo capitalismo. Para os membros da comunidade evangélica a crença funciona, de fato, como proteção social e renascimento psíquico. Mas numa perspectiva coletiva, a evangelização das populações pobres, por não resolver o problema da exclusão social, funciona como uma transferência da violência para outros grupos marginalizados da sociedade.
O preconceito evangélico contra as mulheres em geral e as feministas em particular, contra os LGBTs, dependentes químicos e praticantes da umbanda e candomblé se torna um canal de para que as frustrações sociais sejam descarregadas, na forma de ódio social, nestas minorias, já discriminadas de longa data. Some-se a isto, uma intolerância radical contra os criminosos, mesmo os pequenos, os quais burlam a sagrada ética do trabalho.
Estas posições de intolerância se manifestam politicamente, como voto e apoio a políticos linhas-dura e justiceiros, não raro demagogos, dispostos a combater o crime e a corrupção moral e política com leis e ações duríssimas, mesmo às custas do estado de direito. O estado, sob a crescente influência evangélica, se torna paulatinamente menos laico e mais intolerante e desumano, disposto a exercer sua violência institucional contra os que divergem da normalidade heterossexual cristã, do homem trabalhador e cumpridor de seus deveres cívicos e familiares.
Trabalho duro, farra consumista e mal-estar da civilização capitalista
Mesmos os grupos evangélicos bem sucedidos, que nunca conheceram a miséria das periferias e seus perigos da degradação familiar e individual manifestam, não raro, ódio social contra minorias e veem na corrupção política as causas dos males do país. É o mesmo mecanismo de deslocamento observado nos evangélicos pobres, de recusa em ver no capitalismo a causa principal dos problemas sociais, canalizando sua revolta para grupos sociais que funcionam como bodes expiatórios.
Este deslocamento acomete, inclusive, nas classes médias não evangélicas, que debitam na conta da corrupção política a causa maior dos males do país, associando esta corrupção normalmente a governos de esquerda, principalmente petistas. Esta junção convenientemente acoberta seu secular ódio social aos pobres, de origem escravocrata, com o ódio ao corrupto, muito mais justificável (e auto-justificável, pois neste caso a mentira é também para si-mesmo) socialmente.
Mas que motivos teriam as classes médias tradicionais, evangélicas ou não, para canalizar tanto ódio às minorias, aos pobres e aos políticos corruptos, se elas não vivem nem viveram no ambiente violento das periferias? Pode-se argumentar que a violência urbana provocada pela desigualdade capitalista acaba por afetar também as classes médias que, mesmo com suas casas, carros e bairros relativamente bem protegidos, não escapam da sensação de medo que a crescente criminalidade alimenta em todos os cidadãos. Sem dúvida, o medo é um sentimento que se transforma normalmente em ódio e o apoio das classes médias ao endurecimento da repressão policial aos criminosos, às custas, inclusive, dos direitos humanos, tem no medo do crime uma de suas causas.
Mas o ódio social contra as minorias que evangélicos sentem, que se soma ao ódio ao pobre, de fundo escravocrata, sentimento comum nas classes médias, evangélicas ou não, tem provavelmente uma causa mais profunda, que é o mal estar provocado pela integração psíquica ao sujeito automático. Ao se tornar parte do capital, como sujeito automático, o ser humano se torna uma mônada abstrata. O sujeito do direito da democracia e o profissional do mercado de trabalho são construções tão abstratas quanto a forma social capital, distantes da concretude da vida humana. Esta subjetividade abstrata deve subordinar seus desejos às coerções e formas abstratas do capital, cujo “objetivo” principal é a multiplicação infinita de si mesmo.
A subordinação da concretude da vida humana à dominação abstrata do capital, que se dá com a integralização da psique como sujeito automático, é a causa do mal estar da civilização capitalista, mesmo entre as classes abastadas, cujos sujeitos alienam (no sentido de delegar) suas potências humanas para as forças abstratas do capital, que trabalham pelas costas destes mesmos sujeitos. O resultado de tal sacrifício (de vida) é um imenso sofrimento psíquico, oculto sob a camada de tranquilidade da pessoa de bem, em paz consigo mesma e com a sociedade. Paz de espírito da superfície da psique, conquistada duplamente: com a sensação do dever cumprido por meio do trabalho duro (ganho); e, depois, com o viciante prazer proporcionado pela “merecida” farra consumista (gasto).
O sofrimento interior decorrente da subordinação dos desejos humanos aos do sujeito automático (capital) é inconsciente para a imensa maioria das pessoas, mas ele costuma vir à tona em párias sociais, como alguns doentes mentais, drogados e artistas. Neste últimos, por exemplo, são tolerados delírios anticapitalistas e até comportamentos condenáveis da perspectiva do sujeito automático, como a crítica ao trabalho, ao status quo e ao consumismo, bem como a recusa em trabalhar etc. Mas tais expressões estéticas ou comportamentos desviantes são enquadrados (no sentido de classificados, mas também de emoldurados, ou seja, separados do mundo real) como excentricidades ou rebeldias de artistas que, embora possam provocar prazer estético, não devem ser levadas a sério como expressões da psique coletiva ou críticas sociais.
O sofrimento reprimido se transforma, então, em ressentimento e ódio, que precisam ser direcionados para algum bode expiatório, uma vez que não pode se voltar contra o capitalismo, já que este constitui a identidade do próprio sujeito automático. Uma revolta consciente contra o capitalismo significaria, para a pessoa de bem, um autoquestionamento de suas próprias bases psíquicas, inclusive morais.
Esta frustração reprimida, inerente ao capitalismo e que atravessa todas as classes sociais, inclusive as elites, se torna um perigoso veículo da violência em momentos de crises sistêmicas agudas do capitalismo. Ela é o ovo da serpente dos diversos fascismo latentes sob a fina camada civilizacional do capitalismo e costuma vir à tona como ódio social contra minorias desamparadas, que pode se efetivar, em algumas ocasiões, como violência física: aprisionamento, tortura e assassinato, geralmente em escala massiva.
As classes médias tradicionais do Brasil, cujos indivíduos já estão constituídos como sujeito automático há tempos, carregam desde a Velha República a dinâmica da frustração reprimida que se canaliza para o ódio social, cujo ranço escravocrata faz com que se manifeste como ódio ao pobre.
Os novos evangélicos pentecostais, sejam de classe média ou baixa, recém integrados na psique do sujeito automático apresentam o mesmo mecanismo de frustração interior e necessidade de sua descarga, como sentimento de ódio, em grupos sociais fragilizados. No caso dos evangélicos pobres, há o agravante da frustração inerente à alienação de sua humanidade às abstrações do sujeito automático, comum em todas as classes sociais, se juntar à frustração da condenação à eterna miséria, pois na quadra atual do capitalismo, ascensão social pelo estudo e trabalho será cada vez mais rara.
A transformação do humano numa máquina de trabalhar/ganhar e consumir/gastar aliena as potências humanas para a forma social abstrata do capital, transformando as pessoas em meios para a finalidade última do capitalismo, que é a reprodução do capital. Tal processo de reestruturação psíquica para integração dos indivíduos à cultura capitalista começa com o protestantismo europeu e tem na fé pentecostal sua atualização para o Brasil do século XXI. O problema é que a integração ao sujeito automático proporcinada pela conversão evangélica é profundamante desumanizadora e causa, aos seres humanos, imensos sofrimentos psíquicos que se manifestam, em momentos de crise, como preconceitos, ódios sociais e manifestações de violência de caráter fascista.
Fonte: Jornal GGN
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