terça-feira, 26 de março de 2024

O governo, os militares - que se acham a elite dona do Brasil - e o golpe de 1964 em artigo do sociólogo Jessé Souza

 

Uma sociedade, assim como um indivíduo, só aprende pela lembrança do que ocorreu. E não pelo esquecimento


O governo, os militares e o golpe de 1964



O governo Lula abdicou de qualquer referência ao golpe de Estado militar de 1964 no dia 31 de março. Desistiu também do museu da repressão como existe em diversos países que sofreram processos semelhantes. O debate que muitos colocam é sobre a alternativa entre um suposto pragmatismo racional de conciliar com os militares e a denúncia da covardia do governo.

Para mim, a questão é um pouco mais complexa. Afinal, não são os militares que mandam no país. Quem manda no país é uma associação entre elite global comandada pelos Estados Unidos e, como sócio menor, a elite periférica brasileira que cobra seu quinhão para oprimir o próprio povo.

Este é o arranjo do imperialismo “soft” americano para todo o Sul global: uma autonomia tutelada. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, este é o arranjo que define e explica todas as vicissitudes da sociedade brasileira. Os donos do acordo nunca foram os militares, nem na ditadura militar.

No golpe de 1964 os militares cumpriram apenas sua missão secular verdadeira que é sujar as mãos de sangue em nome dos interesses mais mesquinhos da elite. Obviamente, cobram seu preço pelo trabalho sujo que é o de auferir privilégios individuais e corporativos. O valor das forças armadas é, portanto, meramente instrumental, elas estão sempre a serviço armado da vontade de alguém.

Para se ter um golpe de Estado no Brasil são necessárias duas condições prévias: o apoio americano, que faltou a Bolsonaro, e por conta disso seu golpe fracassou; e a necessidade da elite de retirar algum líder popular do Estado — cuja apropriação privada é a verdadeira mamata da elite — por denúncias duvidosas, empacotadas pela grande imprensa, propriedade privada desta mesma elite. Para isso, sequer é necessária a presença militar como o golpe de 2016 nos mostrou.

Esse fato prova, precisamente, a enorme importância de se debater o golpe de 64. Não apenas a denúncia do autoritarismo e violência militares, mas da violência maior que é o saque recorrente e multifacetado da riqueza popular em nome de uma meia dúzia de endinheirados. Este debate teria a possibilidade de denunciar toda a opressão social secular brasileira e a quem ela serve. É isso que o povo não sabe e precisa urgentemente saber.

Em um contexto de hegemonia das ideias neoliberais e fascistas seria ainda mais necessário se fazer este contraponto. Reconstruir, recontar e relembrar o passado que condiciona nosso presente. Uma sociedade, assim como um indivíduo, só aprende pela lembrança. E não pelo esquecimento. A história está cheia desses ensinamentos.

Um deles eu acompanhei de perto: a desnazificação da Alemanha. Apenas reconhecendo a culpa no holocausto e outros crimes, com seu debate constante na esfera pública, foi possível para os alemães se autocriticarem e se transformarem em um dos povos mais democráticos de hoje. Por que não podemos criticar e lembrar do “nosso holocausto” de opressão, abandono e miséria patrocinados pela nossa elite do saque? A mudança é possível, mas ela exige não só coragem, mas também inteligência, cuja falta marca muitas das ações deste governo.

A crítica mais coerente aos militares seria a denúncia de sua “função latente” de cão de guarda dos interesses elitistas, sob o disfarce de sua “função manifesta”, mas nunca cumprida, de obedecer à Constituição e ao poder civil. Era este o verdadeiro debate que interessaria aos que lutam pela democracia no nosso país. De uma tacada se retiraria a legitimidade dos militares e se denunciaria quem os comanda de fato. Renunciar a isso não é apenas covardia. É também uma completa ignorância acerca de como funciona a sociedade brasileira e quais são as suas prioridades.

Parece existir uma completa ausência de quadros competentes neste governo para lhes proporcionar um guia de ação e uma orientação prática. Parece que tudo é improviso e reação imediata ao contexto. Um governo reativo e passivo muito longe do que sonhávamos. E vale a máxima: sem adequada compreensão e inteligência do contexto social maior o comportamento prático vai ser sempre confuso e ineficaz. É o que temos para hoje.

Estrutura da milícia armada foi montada na ditadura militar, afirma o maior pesquisador do tema

 


Grupos milicianos nasceram dos esquadrões de extermínio criados pela ditadura para perseguir políticos 

Do ICL Notícias:


Estrutura da milícia foi montada na ditadura, diz maior pesquisador do tema



Por Heloisa Villela e Chico Alves

“A ditadura construiu isso”, disse o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da UFRRJ e pesquisador que se dedica a entender o surgimento e o crescimento das milícias brasileiras, especialmente as que atuam na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, há mais de 30 anos. Esses grupos armados e poderosos foram responsáveis pela morte da vereadora Marielle Franco. Segundo o professor José Cláudio, autor do livro “Dos Barões ao extermínio: uma história de violência na Baixada Fluminense”, as milícias nasceram a partir dos grupos de extermínio da ditadura militar, criados, em um primeiro momento, para perseguir políticos que se opunham ao regime. Mas logo os militares se deram conta do potencial de lucro e de poder que conquistariam controlando os territórios. O sociólogo recebeu os jornalistas Chico Alves e Heloisa Villela para conversar sobre a história e o domínio das milícias no Rio de Janeiro.

ICL Notícias — As milícias no Rio estão no centro da disputa fundiária e essa expansão nos territórios tem legitimação política e jurídica há anos.

José Cláudio Souza Alves — Esse é um projeto que deu certo, funciona, é secular desde que o Brasil é Brasil. Você montou essa estrutura de poder, só que ela tem agora características nossas, próprias. Acho que a partir do golpe de 64, ou seja, há 60 anos, se montou essa estrutura e ela vem evoluindo, ela vem avançando. O caso Marielle é uma espécie de umbral. Ele abre uma porta, uma janela, e te diz: olha esse negócio funciona, esse negócio dá certo. Aí não deu certo para os Brazão, o Rivaldo, porque houve uma determinação política que conseguiu revelar a estrutura toda.

Mas pela dimensão que é no Brasil como um todo, e eu estudo a Baixada, o Rio de Janeiro, mas com certeza tenho muitas informações de outros estados e outros conflitos que se desenrolam da mesma forma, essa estrutura é dominante no Brasil. Ela é a grande estrutura. Você tem, no caso do Brasil, terras para um monte de serviços urbanos. Você vai fazer uma urbanização miliciana. O tráfico é uma estrutura mais frágil. Normalmente são mortos e presos e vão se articular com a estrutura miliciana. São grupos armados que ficam por muito tempo no território, que vão gerar estruturas de poder muito eficientes, totalitárias, e você não consegue escapar dessa estrutura. Dá grana pra muita gente. E se fosse só grana… é grana e voto.

Esse é um ano eleitoral. Pra tocar numa estrutura dessa em um ano eleitoral. É fácil você pegar um caso emblemático como Marielle (fácil em termos) e trazê-lo à luz, identificar os culpados e condená-los. Mas quando vai em uma dimensão tão ampla como essa, com várias gerações, com voto, com grana, uma estrutura de poder consolidada há 60 anos, você está em outro cenário. Você tem disposição de fato para enfrentar essa estrutura? Você vai sobreviver? Vai enfrentar essa estrutura de poder que tem muitos votos e vai passar pela assembleia legislativa do estado, governo do estado, prefeituras, vai passar por câmara de vereadores…

Em 64 a gente não tinha fuzis nos morros. Em 85, quando termina a ditadura, a gente tem fuzil, várias armas vazadas dos quartéis. Isso, pra mim, é muito importante frisar. Como a ditadura propiciou esse crescimento?

Eu vou parafrasear o Darcy Ribeiro que dizia, sobre a educação, que não existia crise na educação e sim um projeto que deu certo. Não existe crise na segurança pública. Existe uma estrutura que deu certo. Ela funciona. E ela funciona porque dá muito dinheiro e muito poder a muita gente. A ditadura soube disso. A ditadura construiu isso. Primeiramente em uma tentativa de pegar os grupos políticos que eram inimigos, a contra insurgência. Esse era o projeto inicial.

Então o que eu estudo aqui na Baixada Fluminense são os grupos de extermínio que começam a se desenvolver após 1967, quando dão as características da PM como auxiliar, repressiva, cooperando com o regime militar, daí eles dão o salto. Eles deixaram de visar somente uma estrutura política de oposição e resolveram controlar territórios mesmo, em uma estratégia de eliminação sumária. Os militares.

Então eram grupos de extermínio que no princípio tinham um viés político?

Inicialmente houve um viés político de controle dessa oposição que foi a partir de cassações de prefeitos, vereadores, todos que tinham vínculos com partidos considerados de oposição, e isso naquele momento que ainda ia criar o bipartidarismo. Depois que criou o bipartidarismo, todos os envolvidos com o MDB também passaram a sofrer cassações, perseguições políticas… Eles controlaram isso durante um tempo, com o Castelo Branco. Depois eles se deram conta de que isso era muito limitado e queriam muito mais eficiência. Prender e torturar guerrilheiros e grupos clandestinos armados ou não também era uma coisa limitada. Não era suficiente para controlar o que eles queriam controlar.

No caso da Baixada, e isso vale para o Brasil como um todo, os grupos de extermínio começam a operar o miúdo. As situações vulneráveis de segurança pública que o Brasil era cheio de problemas, como hoje. Não há emprego, não há renda, não há sobrevivência e o mundo do crime é uma alternativa. Sempre foi. Esse universo virou o grande universo dos grupos de extermínio. Esses caras começam a angariar poder. Mas muito poder. Como funciona o esquema? A estrutura policial, o aparelho policial, é que vai matar, os empresários e comerciantes que depositaram apoio na ditadura vão financiar esse controle, essa matança, e para fechar toda essa estrutura, o regime autoritário militar dava suporte político.

Vários casos que foram identificados na Baixada de policiais que mataram, que executaram pessoas, que chegaram inclusive a tribunal do júri, os militares iam em peso para os tribunais desses julgamentos para dar apoio explícito aos policiais.

Então estamos vendo uma linha do tempo com o mesmo pensamento que se reproduziu durante o governo Bolsonaro de “bandido bom é bandido morto”, porém esse sistema vem operando desde então. Ele só foi enaltecido no governo Bolsonaro.

Potencializou, mas ele sempre existiu. E eu não vejo que agora ele esteja refluindo, mesmo com o governo Lula. Não vejo sinal de que vá refluir, não vejo vontade política. Uma coisa é você identificar os assassinos da morte de uma vereadora e aí tem que dar os parabéns, tem que comemorar. Outra coisa é perceber as dimensões todas que eu vejo o tempo todo aqui na Baixada e no Brasil como um todo.

As eleições vão chegar daqui a pouco e essa estrutura toda funciona para a eleição. Você vai ganhar muito voto, muito dinheiro, você tem controle territorial dessas áreas. Você está disposto a confrontar essa estrutura? Eu não vejo isso. Porque se quer fazer um consenso, um acordo. Porque se faz com os militares que são os autores dessa estrutura toda porque é deles que vem.

“Ah, estão enfrentando o 8 de janeiro”. Beleza, vai prender meia dúzia de generais. Mas você continua tutelado pelos militares, se subordinando aos interesses deles. Você vai continuar nesse projeto? Não vai confrontar? Para confrontar milícia no Rio, Rota em São Paulo, você vai ter que bater de frente com governadores, com deputados estaduais, porque eles estão envolvidos nessa estrutura, eles têm representantes… Antigamente eu só via matadores vereadores aqui na Baixada. No máximo chegavam a prefeito. Hoje esses caras estão em todos os lugares. São deputados federais, são deputados estaduais. É uma estrutura que tem crescido, que tem se desenvolvido.

Agora a insegurança miliciana se espalhou pela Baixada Fluminense. É inimaginável para quem não é do Rio a diferença que faz juntar a Zona Oeste do Rio, que já é grande, com a Baixada. É um negócio gigantesco! E nos últimos 10 anos me parece que avançou muito. Pode-se dizer que é fenômeno recente?

Nem é tão recente. A UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) faz esse processo de migração, e quando vão para a Baixada, as milícias vão para o mesmo movimento. Eu costumo chamar o Comando Vermelho de um bioindicador. Crime-indicador. Onde o Comando Vermelho se estabelece a milícia vai estabelecer disputa ali também, porque sabe que tem mercado, tem grana, tem tráfico, tem interesses ali.

O Terceiro Comando Puro é menor, vai fazer parceria em grande parte com a milícia. Hoje mudou um pouco isso porque a milícia da Zona Oeste tem feito parcerias com o Comando Vermelho em comunidades mais na Zona Oeste do Rio e não na Baixada. Isso está se reconfigurando. Mas essa estratégia dos grupos armados de disputar territórios e avançar nesses territórios já ocorre a algum tempo. E a chacina lá atrás, da Baixada, 29 mortos, lá em 2005, ainda não era esse momento. Era uma disputa de grupos de extermínio. Mas quando você vai para o início dos anos 2000, principalmente depois da UPP, aí você tem exatamente o que você falou. A milícia se espalhou, ela cresce e vai disputando com o tráfico e esses grupos começam a estabelecer relações entre si e com a estrutura policial. Isso não está isolado.

A estrutura de segurança pública ela é toda permeada por esse interesse de grupos armados. O estado vai negociar o monopólio da violência e a sua soberania a partir desses grupos armados e com isso se constrói o que muitos vão chamar de governança criminal. Você começa a estabelecer um conjunto de ações que vão controlar aquelas populações a partir do crime. Se um grupo armado fica 30 anos em um determinado lugar, como é o caso em vários lugares aqui da Baixada, esquece. São eles que vão controlar tudo ali. Vão dar status, poder, resolução de conflitos, vão dar grana, vão dar voto. Eles passam a gerenciar aquele território. Os Brazão são isso.

A Marielle morre porque ela e as lideranças do PSOL não foram capazes de perceber a evolução dos Brazão. O que eles atingiram na CPI das milícias em 2008, 10 anos antes da morte de Marielle, não eram os Brazão que 10 anos depois mandaram assassinar ela. Por quê? Houve uma evolução dessa estrutura toda. Eles tinham muito mais poder, muito mais dinheiro. Dominavam territórios com vários mecanismos de ganhos e muito mais apoio. Eles cresceram. Começaram a comprar estrutura policial, estão dentro da estrutura política, foram crescendo. Eles talvez não esperassem que houvesse uma repercussão e uma mudança na estrutura política, como houve, e acabou atingindo eles. Mas a Marielle e o PSOL não foram capazes de perceber o risco que estavam correndo ao se confrontar com essa estrutura que é muito mais poderosa. Se não puder controlar, eles matam.

Foi quase um enfrentamento ingênuo?

Eu estava na Câmara dos Vereadores no dia do enterro. Eu fui pra lá. E vi vários conhecidos. E perguntava a vários conhecidos: ninguém foi capaz de perceber isso? E todos eles disseram que não. Não havia nenhuma denúncia… Mas eles não eram uns carinhas quaisquer. Havia um ambiente ali que acho que ela não teve noção do que estava enfrentando.

Levando em conta a evolução desses grupos de extermínio, desde a ditadura militar, olhando pra frente, teremos o que, a situação de El Salvador? Das Filipinas?

Talvez o México… Eu acho que temos nosso próprio modelo. Ninguém vai nos repetir e não vamos copiar ninguém. O pessoal fala em máfia. Eu digo não. Máfia é família, é pré-estado italiano. Tem outra estrutura. Uma estrutura familiar. Secular. Não dá para comparar milícia com máfia. Mas é grupo de extermínio e milícia com estrutura armada dentro do estado que passa a estabelecer controle territorial em parceria com outros grupos armados. Esse é um modelo muito nosso. Talvez possamos nos equiparar em número de mortos com alguns países. Mas no México a população se organizou para se proteger. Aqui não, as populações atingidas são destruídas. Não tem suporte, apoio, não se organizam, não temos a construção social e cultural do México.

O que se diz é que os Brazão não têm uma milícia. Estão associados. É isso? Eles não são líderes? Essa investigação teria chegado aos mandantes do crime e aí se diz que é a milícia. Se são os Brazão, então são milicianos…

Eles se servem dos serviços dos milicianos. Os bicheiros do Rio de Janeiro todos se servem dos serviços de milicianos e policiais militares, ou grupos de extermínio em uma fase anterior.

Eles se servem da estrutura da milícia e dão legitimidade política e jurídica para essas violências. É isso?

A gente está focado no crime, no assassinato de Marielle, mas a coisa mais dura e mais difícil é o que não é crime e não é Marielle. As dimensões não criminais disso tudo. Há estruturas que passam por legalizações dentro da estrutura das prefeituras, do governo de estado, prestadores de serviços, organizações sociais, na área da saúde… Por exemplo: você quer fazer uma obra em uma prefeitura. Você abre licitação como a legislação exige. Aí tem lá o primeiro, o segundo, o terceiro colocado. O primeiro vai tentar assumir, mas o quarto vai e diz que ele é quem manda naquela região. O cara tenta ir pra lá fazer a obra e percebe que não vai conseguir. É ameaçado, não tem gente pra trabalhar pra ele, sofre acidentes que não são acidentes… O segundo também etc. e o quarto vai assumir. Isso já me foi relatado várias vezes aqui na Baixada. É uma estratégia “legal”, aparentemente legal. Ninguém vai denunciar.

 

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Da Rádio BandNews FM:




BOLSONARO "É UM COVARDE E TRAIDOR" | Jornal da Cultura analisa ida covarde de BOLSONARO à embaixada da Hungria

 

Do Jornalista TV Cultura:

Imagens obtidas pelo New York Times mostram que Jair Bolsonaro chegou na embaixada da Hungria na segunda-feira de carnaval. O ex-presidente estaria fora dos limites da Polícia Federal, porque embaixadas são consideradas território estrangeiro pela lei internacional e qualquer ordem de prisão precisaria do aval das autoridades húngaras. Para o Jornal da Cultura, Wilson Moherdaui e Juliana Inhasz analisaram essa viagem de Bolsonaro. O jornalista criticou duramente o ex-presidente. Segundo Moherdaui, Bolsonaro produz prova contra ele mesmo.



Reinaldo Azavedo: Se Bolsonaro não queria fugir, foi para a embaixada da Hungria para festa do pijama?

 

Da Rádio BandNews FM:




segunda-feira, 25 de março de 2024

A espiritualidade natural, a ética, o cuidado: como evitar o fim do mundo, por Leonardo Boff

 

Atualmente se confrontam dois paradigmas: o do poder e o do cuidado


Do ICL Notícias:



A crise de nosso modo de viver neste único planeta envolve a todos, até as nações imperiais. Quem diria que está havendo uma severa erosão dos valores democráticos dos Estados Unidos? O sonho original americano, repetem seus melhores, “implicava um novo mundo no qual o povo vivia livre para realizar seus sonhos, no interior de um ambiente social que gerava cidadãos esclarecidos, responsáveis e comprometidos, com uma apaixonada preocupação com a dignidade e os direitos individuais e dos outros na perspectiva do bem comum”. Evidentemente esse era o sonho da população, não dos órgãos governamentais e do aparato militar de segurança que buscavam e ainda buscam, por todos os meios, mesmo bélicos, o monopólio do poder mundial. Aqui era e é outro o sonho.

O que está ocorrendo a partir dos anos 60, diz-nos Steven Rockefeller, da família dos bilionários Rockefellers, um dos idealizadores da Carta da Terra, de opção budista, uma das pessoas mais dialogáveis com quem pude conviver nos trabalhos da redação da referida Carta, constata que a atual juventude, esqueceu os referidos valores, vive centrada no próprio eu, deprecia seu próprio país e perdeu o sentido da solidariedade. Conclui dizendo: “A América é uma nação à procura de sua própria alma” (Spiritual Democracy and our Schools, N. York, 2022, p.15).

O que se diz dos Estados Unidos vale praticamente para todos ou os principais países, mesmo para o nosso, já que estamos todos interdependentes e reféns da cultura do capital, acumulador, materialista, consumista, excludente e insensível ao destino das maiorias pobres. Como professor e pedagogo, Steven Rockefeller escreveu o referido livro “para renovar o espírito americano através da educação desde a mais tenra infância”.

Maneja três categorias com as quais me identifico e com elas tenho trabalhado há anos, em vista de um novo paradigma e de um outro estilo de educação: a espiritualidade, a ética e o cuidado da Casa Comum.

Steven vê a espiritualidade como uma dimensão essencial do ser humano com o mesmo direito de cidadania que o corpo, a inteligência, a vontade, a psique. Por isso é natural. Não se há de identificar a espiritualidade com a religião, embora possa haver inter-relações entre elas. A espiritualidade natural é inata. Dela nascem as religiões como canalizações culturais deste dado originário.

Como nos tem mostrado, diz Steven, a filosofia, a psicologia do profundo e as neurociências, a “espiritualidade é uma capacidade inata no ser humano que, quando alimentada e desenvolvida, gera um modo de ser feito de relações consigo mesmo e com o mundo, promove a liberdade pessoal, o bem-estar, e o florescimento do bem coletivo” (p.10). A espiritualidade natural coloca as questões inadiáveis do ser humano: por que estamos neste mundo, o que nos espera para além desta vida e a percepção de uma Suprema Realidade. Ela se expressa pelo amor incondicional, pela reverência face ao Universo, pela solidariedade, pelo cuidado com tudo o que existe e vive e pela compaixão por quem sofre.

Essa compreensão me faz recordar a fala de Michail Gorbachev ao se encerrar a redação da Carta da Terra nos espaços da UNESCO em Paris no ano 2000: “Se quisermos salvar a vida no planeta precisamos de novos valores e de uma outra espiritualidade”. Vale dizer, não são suficientes nossos bens materiais nem a tecnociência. Tudo isso deve vir impregnado dos valores do coração, sede do amor, da afeição, da empatia, da ética, do cuidado e da espiritualidade. Só assim se consegue estabelecer um laço afetivo e solidário para com todos os seres e para com a Terra e assim salvá-los. Todo ser possui um valor em si mesmo, para além do uso humano. A espiritualidade natural nos permite sentir tudo isso, é uma espécie de órgão natural de nossa vida que nenhuma porção de nossa natureza pode desempenhar adequadamente. A física quântica Danah Zohar e seu marido neurólogo, I. Marshall, demonstraram que temos dentro de nós, o que chamaram “o ponto Deus no cérebro”. Toda vez que de forma existencial se abordam temas do Sagrado e do Espiritual verifica-se uma aceleração significativa de neurônios de uma parte do cérebro. É uma espécie de órgão interior pelo qual a espiritualidade natural e inata capta aquela Energia poderosa e amorosa que tudo sustenta e age também em nossa interior. (D. Zohar, O ser quântico, Rio, 1991).

A espiritualidade natural nos remete diretamente à ética, no sentido clássico dos gregos: a Casa (ethos) bem cuidada, agora a Casa Comum, a Terra. O “ethos” busca o bem viver. A “ética”, as formas e maneiras de concretizar o bem viver, pelas virtudes do amor, da justiça, da justa medida, da beleza e demais virtudes consoante o sentir das várias culturas. Desde a mais tenra idade e no processo educacional deve-se desentranhar a espiritualidade natural que sempre vem acolitada pela ética do bem viver.

Hoje, mais do que nunca, se faz urgente o cuidado, entendido, como a essência de todos os viventes, especialmente do ser humano, consoante o mito romano de Higino, explorado pela filosofia e pela antropologia (cf. L. Boff. Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra, Vozes 2023). Deixado por si mesmo, nenhum organismo vivo sobrevive sem o cuidado.

Atualmente se confrontam dois paradigmas: o do poder e o do cuidado. O do poder atual como dominação caracteriza a modernidade. Foi com este poder que se submeteram os povos, muitos feitos escravos, a natureza desapiedadamente explorada, a matéria, a vida e a própria Terra hoje com parca sustentabilidade. O paradigma do cuidado renuncia ao poder como dominação e estabelece uma relação amigável com a natureza e respeita a Terra como a Grande Mãe e Gaia. Atualmente, com a devastação no modo da modernidade, impõe-se o paradigma do cuidado se quisermos garantir as condições ecológicas de nossa sobrevivência.

A humanidade se encontra numa encruzilhada: ou segue o caminho do poder que implica uma exploração ilimitada dos recursos naturais a ponto de ter afetado o equilíbrio da Terra, haja vista a mudança climática irreversível; esse caminho pode levar-nos a um armagedom ecológico. Ou segue o caminho do cuidado. A humanidade para, reflete sobre os riscos para sua sobrevivência e então define um rumo mais benevolente, marcado pelo cuidado para com a natureza, de uns para com os outro e com a Terra. Caso contrário, diz a Carta da Terra, “arriscamos a nossa destruição e a da diversidade da vida” (Preâmbulo). Não disse outra coisa o Papa Francisco na Fratelli tutti: “estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva” (n.24).

Se ainda tivermos tempo para esta guinada do nosso destino comum com a Terra, iremos sobreviver e inaugurar outra forma de habitar o planeta, com sentimento de pertença e com a consciência de sermos seus guardiães fiéis.

A educação possui essa missão messiânica de desentranhar, desde a nascença, a espiritualidade natural, a ética da Terra e o cuidado pela criação. Por esse caminho haverá salvação.

sábado, 23 de março de 2024

sexta-feira, 22 de março de 2024

Lygia Jobim: ‘O 8 de Janeiro é consequência direta da impunidade dos golpistas de 64’

 

Do Canal ICL:



O Agronegócio contra a Água. Artigo do jornalista britânico George Monbiot

 

Modelo agrícola consome 90% da água no planeta e se expandirá 50% até 2050. Rios começam a secar e aquíferos dão sinais de esgotamento. Saída: impedir o abuso das fontes em nome do lucro, e rever a dieta consumista do Ocidente

Seca na Amazônia. Foto: Bruno Kelly/REUTERS

Por George Monbiot, no Guardian | Tradução: Antonio Martins

Há uma falha no plano. Não pequena: é um buraco do tamanho da Terra em nossos cálculos. Para acompanhar a demanda global por alimentos, a produção agrícola precisa crescer pelo menos 50% até 2050. Em princípio, se nada mais mudar, isso é viável, principalmente graças às melhorias na criação de cultivos e técnicas agrícolas. Mas tudo mais vai mudar. Mesmo que deixemos de lado todos os outros problemas – impactos do calor, degradação do solo, doenças epidêmicas de plantas aceleradas pela perda de diversidade genética – há um que, sozinho, poderá impedir que a população mundial seja alimentada. Água.

Um artigo publicado em 2017 estimou que, para igualar a produção agrícola à demanda esperada, o uso de água para irrigação teria que aumentar em 146% até meados deste século. Um pequeno problema. A água já está no limite. Em geral, as regiões secas do mundo estão ficando mais secas, em parte devido à redução da chuva; em parte devido à diminuição do fluxo dos rios à medida que o gelo e a neve das montanhas recuam; e em parte devido ao aumento das temperaturas, causando aumento da evaporação e maior transpiração das plantas. Muitas das principais regiões de cultivo do mundo estão agora ameaçadas por “secas rápidas“, nas quais o clima quente e seco retira a umidade do solo a uma velocidade assustadora. Alguns lugares, como o sudoeste dos EUA, agora em seu 24º ano de seca, podem ter mudado permanentemente para um estado mais seco. Os rios não conseguem chegar ao mar, os lagos e aquíferos estão encolhendo, espécies que vivem em água doce estão se extinguindo aproximadamente cinco vezes mais rápido do que as espécies que vivem na terra e grandes cidades estão ameaçadas por um estresse hídrico extremo.

A agricultura já representa 90% do uso de água doce do mundo. Extraímos tanta água do solo que mudamos o eixo de rotação da Terra. A água necessária para atender à crescente demanda por alimentos simplesmente não existe.

Este artigo de 2017 deveria ter feito todos entrarem em pânico. Mas, como de costume, foi ignorado pelos formuladores de políticas e pela mídia. Somente quando o problema chega às suas portas, os europeus reconhecem que há uma crise. Mas, embora haja pânico compreensível pela seca na Catalunha e na Andaluzia, há uma quase total falha, entre os grupos êconômicos e políticos poderosos, em reconhecer que este é apenas um exemplo de um problema global, um problema que deveria estar no topo da agenda política.

Embora as medidas contra a seca tenham desencadeado protestos na Espanha, este está longe de ser o ponto de tensão mais perigoso. A bacia hidrográfica do rio Indo é compartilhada por três potências nucleares – Índia, Paquistão e China – e várias regiões altamente instáveis e divididas, já afligidas pela fome e pela extrema pobreza. Hoje, na estação seca, 95% do fluxo do rio é extraído, principalmente para irrigação. Mas a demanda por água tanto no Paquistão quanto na Índia está crescendo rapidamente. O fornecimento – temporariamente impulsionado pelo derretimento de geleiras no Himalaia e no Hindu Kush – em breve atingirá o pico e depois entrará em declínio.

Mesmo sob o cenário climático mais otimista, espera-se que o escoamento das geleiras asiáticas atinja o pico antes da metade do século. Sua massa diminuirá em cerca de 46% até 2100. Alguns analistas veem a competição pela água entre a Índia e o Paquistão como uma das principais causas dos conflitos repetidos em Caxemira. Mas, a menos que seja estabelecido um novo tratado de águas do Indo, levando em conta a queda no fornecimento, essa luta pode ser apenas um prelúdio para algo muito pior.

Existe uma crença generalizada de que esses problemas podem ser resolvidos simplesmente aumentando a eficiência da irrigação: enormes quantidades de água são desperdiçadas na agricultura. Então deixe-me apresentar o paradoxo da eficiência da irrigação. À medida que técnicas melhores garantem que menos água seja necessária para cultivar um determinado volume de culturas, a irrigação torna-se mais barata. Como resultado, atrai mais investimentos, incentiva os agricultores a cultivarem plantas mais sedentas e lucrativas e se expande para uma área maior. Isso é o que aconteceu, por exemplo, na bacia do rio Guadiana, na Espanha, onde um investimento de 600 milhões de euros para reduzir o uso da água, melhorando a eficiência da irrigação, acabou por aumentá-lo.

É possível superar o paradoxo através da regulamentação: leis para limitar tanto o consumo total quanto o individual de água. Mas os governos preferem confiar apenas na tecnologia. Sem medidas políticas e econômicas, isso não funciona. Nem outras soluções tecnológicas provavelmente resolverão o problema.

Os governos estão planejando enormes projetos de engenharia para transportar água de um lugar para outro. Mas a ruptura climática e a crescente demanda asseguram que muitas das regiões doadoras também provavelmente secarão. A água das usinas de dessalinização normalmente custa cinco ou dez vezes mais do que a água do solo ou do céu, e o processo requer grandes quantidades de energia e gera grandes volumes de salmoura tóxica.

Acima de tudo, precisamos mudar nossas dietas. Aqueles que temos escolha alimentar (ou seja, metade mais rica da população mundial) devemos procurar minimizar a pegada hídrica de nossos alimentos. Desculpo-me por insistir nisso, mas esta é mais uma razão para mudar para uma dieta livre de animais, que reduz tanto a demanda total de cultivos quanto, na maioria dos casos, o uso de água.

A demanda de água de certos produtos vegetais, especialmente amêndoas e pistaches na Califórnia, tornou-se um tema importante nas guerras culturais, à medida que influenciadores de direita atacam dietas à base de plantas. Mas, ainda que a irrigação excessiva dessas culturas seja um problema, mais de duas vezes mais água de irrigação é usada na Califórnia para cultivar plantas forrageiras para alimentar o gado, especialmente vacas leiteiras. A demanda de água do leite de vaca é muito maior até do que a pior alternativa (leite de amêndoa), e astronomicamente maior do que as melhores alternativas – como leite de aveia ou soja.

Isso não significa dar passe livre a todos os produtos vegetais: a horticultura pode demandar grandes suprimentos de água. Mesmo dentro de uma dieta à base de plantas, devemos mudar de alguns grãos, vegetais e frutas para outros. Os governos e varejistas deveriam nos ajudar por meio de uma combinação de regras mais rigorosas e rotulagem informativa.

Em vez disso, eles fazem o contrário. No mês passado, a pedido do comissário de agricultura da União Europeia, Janusz Wojciechowski, a Comissão Europeia excluiu de seu novo plano climático o chamado a incentivar fontes de proteína “diversificadas” (livres de animais). A captura regulatória nunca é mais forte do que no setor de alimentos e agricultura.

Eu odeio acrescentar mais uma coisa a você, mas alguém precisacombater o preconceito interminável contra os temas relevantes, na política e na maioria da mídia. Este é mais um dos problemas gigantescos negligenciados. Qualquer um deles pode ser fatal para a paz e a prosperidade em um planeta habitável. De alguma forma, precisamos recuperar nosso foco.

O desumano e destrutivo capitalismo, mais uma vez, em crise existencial segundo o artigo do economista britânico Michael Roberts

 

Governos estão inertes frente ao colapso climático. Endividamento global e fome atingem picos. Enquanto isso, EUA insistem em guerras infinitas para adiar seu declínio. À beira do abismo, sistema é incapaz de forjar saídas ao caos que criou

Imagem: Liana Buszka/Filmsforaction

Por Michael Roberts, originalmente publicado no The next recession blog | Tradução: Eleutério Prado

No início deste ano, escrevi um post sobre o que alguns chamam de “policrise”. O termo indica que o modo de produção capitalista está se defrontando com diversas tensões disruptivas simultâneas: econômica (inflação e recessão); ambiental (clima e pandemia); e geopolítica (guerra e divisões internacionais). Tudo isso começou a acontecer já no início do século XXI.  Palavra da moda na esquerda conectada às novidades, resume, em muitos aspectos, a minha própria descrição das contradições do sistema. Aquilo que designei como “longa depressão” já da década de 2010 está agora atingindo o seu auge.

Como neste mês de outubro as principais agências econômicas internacionais, o FMI e o Banco Mundial, se reúnem em Marraquexe, vale a pena atualizar aquela postagem. É bom verificar o que está a acontecer com as contradições que compõem a policrise do capitalismo.

Comecemos pelo clima e pelo aquecimento global. As temperaturas globais atingiram um novo recorde em setembro; subiram acima do valor histórico por enorme margem. Cientistas do Copernicus Climate Change Service vem dizendo que 2023 está a caminho de ser o ano mais quente já registrado na história. A temperatura média global em setembro foi 1,75°C mais quente do que a média registrada entre 1850-1900, período ainda pré-industrial, após o qual as mudanças climáticas induzidas pelo homem começaram a ocorrer e a produzir efeitos.

O setembro mais quente já registrado segue o agosto mais quente; este, por sua vez, segue o julho mais quente. Ora, o primeiro referido – último observado – foi o mês mais quente já registrado cientificamente. O nível de setembro de 2023 bateu o recorde anterior daquele mês em 0,5ºC, o maior salto de temperatura já visto. Este calor recorde é o resultado dos elevados níveis de contínuas emissões de dióxido de carbono, combinados com uma rápida mudança no maior fenômeno climático natural do planeta, o El Niño. Ora, este “mês extremo” colocou provavelmente este ano de 2023 no topo. Ele está recebendo, assim, a “honra duvidosa”de se posicionar em primeiro lugar como o ano mais quente, com temperaturas cerca de 1,4ºC acima das temperaturas médias pré-industriais.

O mundo está muito longe de enfrentar efetivamente as alterações climáticas. Ao contrário, continua permitindo que um aumento da temperatura média de até 2,6ºC possa ser alcançado. Medidas contrariantes urgentes deveriam estar sendo tomadas – mas não estão. Foi isso o que pediu a organização internacional do comércio, UNCTAD, em seu último relatório sobre a economia global. Os seus técnicos afirmaram que os países precisam ser “mais ambiciosos na ação”; eles precisam, ademais, definir “metas mais ambiciosas” para reduzir as emissões nos 43% exigidos até 2030 e em 60% até 2035 em comparação com os níveis de 2019, a fim de evitar as terríveis consequências de um planeta mais quente.

Isto exigiria uma transformação “radical” dos sistemas econômicos e sociais em todos os setores, incluindo o reforço das energias renováveis, o fim da utilização de todos os combustíveis fósseis, a redução do metano e de outros gases com efeito de estufa, o fim da desflorestação e a melhoria da eficiência energética.

Nada disso está acontecendo numa medida necessária. A organização International Energy Agency (IEA) tem afirmado que a demanda por combustíveis fósseis teria de cair mais de 25% até 2030 e 80% em 2050. E até 2035, as emissões precisariam diminuir 80% nas economias avançadas e 60% nos mercados emergentes e nas economias em desenvolvimento, em comparação com para o nível de 2022.

Mas as atuais contribuições dos países não estão alinhadas com os compromissos de emissões líquidas zero assumidos por eles próprios. E esses compromissos, ademais, não são suficientes para colocar o mundo no caminho de zerar as emissões líquidas até 2050. O nível das emissões consistente com a limitação do aquecimento a 1,5°C. em 2030 está sendo ultrapassado em até 24 bilhões de toneladas.

O financiamento global para a ação climática atingiu cerca de 803 bilhões de dólares anuais para 2019-20, menos de um quinto do investimento anual estimado de 4 bilhões de dólares em tecnologia de energia limpa, necessário para limitar os aumentos de temperatura a 2ºC ou 1,5ºC. Entretanto, os subsídios globais aos combustíveis fósseis atingiram um recorde de 7 biliões de dólares em 2022, estima o FMI. O estudo desse órgão internacional afirma que os subsídios ao carvão, petróleo e gás natural em 2022 foram equivalentes a 7,1% do PIB global. Isto representou mais do que os governos gastaram na educação e dois terços do que foi gasto na saúde.

Na recente reunião do G20, uma das principais ações políticas necessárias para salvar o planeta, nomeadamente o fim da produção de combustíveis fósseis, foi ignorado.  Para ter alguma chance de cumprir a meta de limitação de temperatura de 1,5°C estabelecida pelo Acordo de Paris, reduções acentuadas na produção e uso de todos os combustíveis fósseis… são essenciais e, nesta questão, os líderes do G20 estão em falta na ação”, disse Alden Meyer, associado sênior da E3G, uma consultora climática. Por trás desse fracasso estão os enormes e grotescos lucros obtidos pelos gigantes do petróleo e do gás no período de inflação pós-pandemia. A sua “relutância” em se “despojar” das suas fontes naturais de lucros (ou seja, não os utilizar e não os explorar para obter mais petróleo e gás) não vem a ser surpresa alguma.

Que respostas políticas foram oferecidas pelas empresas e pelos governos para acabar com o aquecimento global? Primeiro, há os ridículos esquemas de “compensações de carbono”. Muitas das maiores empresas do mundo usaram tais “créditos de carbono” em seus “esforços para garantir a sustentabilidade”; assim, esse mercado voluntário, não regulamentado, cresceu e cresceu, tendo chegado agora a 2 bilhões de dólares (1,6 bilhões de libras esterlinas) em 2021. Esse ano, além disso, viu os preços dos créditos de carbono subirem estratosfericamente.

Os créditos de carbono são muitas vezes gerados com base no pressuposto de que vão contribuir para a mitigação das alterações climáticas; exigem em princípio a cessação do desflorestamento tropical, a plantação de árvores e a criação de projetos de energias renováveis ​​nos países em desenvolvimento. As investigações mostram que mais de 90% desses créditos compensatórios relativos à manutenção das florestas tropicais – os quais são os mais utilizados pelas empresas – constituem-se provavelmente em “créditos fantasmas”, os quais não representam reduções genuínas da emissão de carbono na atmosfera.

Há, também, os impostos e as elevações dos preços relativos à emissão de carbono.  Esta solução de mercado para dissuadir a utilização de combustíveis fósseis é a principal plataforma do FMI para resolver o aquecimento global.  Os regimes de fixação de preços da emissão de carbono, na verdade, apenas escondem a realidade. Nada tem bons resultados, ao mesmo tempo em que a indústria dos combustíveis fósseis e as outras grandes multinacionais emissoras de gases com efeito de estufa permanecerem intocadas.

Seria preciso que essas empresas fossem incluídas num plano para a eliminação progressiva dessas emissões, antes que o ponto de viragem – aquele em que o aquecimento global se torna irreversível – venha a ser ultrapassado. Em vez de esperar que o mercado regulado fale e aja para o bem de todos, o que precisamos é de um plano global em que as indústrias de combustíveis fósseis, as instituições financeiras e os principais setores emissores sejam colocados sob a propriedade e controles públicos. 

Faltam dois meses para os países se reunirem em Dubai na cúpula climática COP28 da ONU. Dado que esta conferência internacional sobre o clima está sendo organizada por um importante país produtor de petróleo e gás, não se pode esperar que aí nasça qualquer ação radical em relação aos combustíveis fósseis.

A outra dimensão da policrise é a pobreza e a desigualdade. Em reunião neste mês, o Banco Mundial apresenta um novo relatório sobre a pobreza. Segundo o Banco Mundial, a pobreza global recuou para níveis mais próximos dos anteriores à pandemia, mas isto ainda significa que foram perdidos três anos na luta contra a pobreza. A recuperação também é desigual: embora a pobreza extrema nos países de rendimento médio tenha diminuído, a pobreza nos países mais pobres e nos países afetados por fragilidades, conflitos ou violência ainda é pior do que antes da pandemia.  

Depois de muitas críticas ao seu limiar ridiculamente baixo para a pobreza a nível mundial, o Banco agora tem três níveis. Em 2023, prevê-se que 691 milhões de pessoas (ou 8,6% da população mundial) vivam em “pobreza extrema” (ou seja, aquelas que vivem abaixo de 2,15 dólares/dia), o que é um pouco abaixo do nível anterior ao início da pandemia. Na linha de 3,65 dólares/dia, a taxa de pobreza e o número de pobres são ambos inferiores aos de 2019. No nível mais realista (mas ainda muito baixo) de 6,85 dólares/dia, uma percentagem menor da população global também vive agora abaixo daquele observado antes da pandemia. Mas devido ao crescimento populacional, o número total de pobres que vivem abaixo desta linha ainda é maior do que antes da pandemia. E quando olhamos para os países mais pobres, eles ainda têm taxas de pobreza mais elevadas do que antes, ou seja, não estão reduzindo o “gap” que os separam de uma condição mais satisfatória.

Estas taxas de pobreza são enganosas, como antes já me esforcei para demonstrar. Quase toda a redução registada na pobreza global (seja qual for o nível utilizado) nos últimos 30 anos deve-se ao fato de que a China tirou cerca de 900 milhões de chineses dessa condição. Excluindo a China, a pobreza global não caiu quer em percentagem quer em número absoluto. Na verdade, mesmo incluindo a China, ainda existem 3,65 bilhões de pessoas no planeta abaixo do limiar de pobreza de 6,85 dólares/dia, segundo o Banco Mundial.

Em 2021, a Lloyd’s Register Foundation, numa parceria com o Instituto Gallup, entrevistou 125 mil pessoas em 121 países, perguntando por quanto tempo as pessoas poderiam cobrir as suas necessidades básicas se os seus rendimentos fossem suspensos. O estudo concluiu que um número impressionante de pessoas, ou seja, 2,7 bilhões, só poderiam cobrir as suas necessidades básicas durante um mês ou menos. E, desse número, 946 milhões poderiam sobreviver durante uma semana, no máximo.

A meta da ONU de acabar com a “pobreza” até 2030 é, pois, uma miragem.

A fome global ainda está muito acima dos níveis anteriores à pandemia. Estima-se que entre 690 e 783 milhões de pessoas no mundo enfrentaram a fome em 2022. Isto representa 122 milhões de pessoas a mais do que antes da pandemia do covid-19. Prevê-se que quase 600 milhões de pessoas sofrerão de subnutrição crônica em 2030. Portanto, a meta da ONU de fome zero até essa data está muito longe de ser cumprida. Mais de 3,1 bilhões de pessoas no mundo – ou 42% – não tinham condições de pagar uma dieta saudável. Em todo o mundo, em 2022, estimava-se que 148,1 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade (22,3%) sofriam de atraso no crescimento, 45 milhões (6,8%) estavam debilitadas e 37 milhões (5,6%) tinham excesso de peso.

De um total de 2,4 mil milhões de pessoas no mundo que enfrentavam a “insegurança alimentar” em 2022, quase metade (1,1 mil milhões) estavam na Ásia; 37% (868 milhões) estavam em África; 10,5% (248 milhões) viviam na América Latina e no Caribe; e cerca de 4% (90 milhões) estavam na América do Norte e na Europa. Um bilhão de indianos não tem condições de ter uma dieta saudável. Isso é 74% da população. A Índia tem um desempenho ligeiramente melhor que o Paquistão, mas está atrás do Sri Lanka. O número correspondente para a China é de 11%.

E depois há desigualdade de riqueza e de renda. O último relatório do Credit Suisse sobre a riqueza pessoal global mostrou que, em 2022, 1% dos adultos (isto é, 59 milhões de pessoas) possuía 44,5% de toda a riqueza pessoal do mundo, um pouco mais do que antes da pandemia em 2019. No outro extremo da riqueza pirâmide, os 52,5% mais pobres da população mundial (2,8 mil milhões de pessoas) tinham uma riqueza líquida de apenas 1,2%.

A desigualdade de riqueza dentre todos países também não está diminuindo em geral. Veja-se: o coeficiente de Gini (a medida habitual da desigualdade) para a riqueza chegou a valores enormes nos Estados Unidos, ou seja, 85,0 (note-se que se esse número fosse 100, isso significaria que um único adulto possuiria toda a riqueza norte-americana). Na verdade, nos Estados Unidos, todas as medidas de desigualdade registaram uma tendência ascendente desde o início da década de 2000. Por exemplo, a parcela de riqueza do 1% dos adultos mais ricos aumentou de 32,9% em 2000 para 35,1% em 2021 nos Estados Unidos.

A desigualdade de riqueza e renda é a contrapartida de um sistema econômico voltado para o lucro e não para o atendimento das necessidades dos povos. Num relatório da UNCTAD lê-se que “durante o período de elevada volatilidade dos preços desde 2020, algumas grandes empresas de comércio de alimentos obtiveram lucros recordes nos mercados financeiros, mesmo quando os preços dos alimentos dispararam globalmente e milhões de pessoas enfrentaram uma crise de custo de vida”O gráfico abaixo mostra isso de forma iniludível:

Na verdade, a pandemia e o subsequente aumento da inflação deixaram a sua marca nos rendimentos médios dos agregados familiares. Tomemos como exemplo o Reino Unido: nunca na memória das famílias trabalhadoras atuais, elas ficaram tão pobres como agora. De acordo com o grupo de reflexão da Resolution Foundation, “esta legislatura está a caminho de ser, de longe, a pior para os padrões de vida desde a década de 1950. Os rendimentos familiares típicos em idade ativa deverão ser 4% mais baixos em 2024-25 do que eram em 2019-20. Nunca, na memória viva, as famílias ficaram tão mais pobres por causa de um parlamento.”

O vencedor do prêmio Nobel (na verdade, prêmio Riksbank) de economia relativo ao ano de 2015, Angus Deaton lançou um novo livro chamado Economics in America: an immigrant economist explores the land of inequality Nele, ataca o fracasso da economia neoclássica em abordar de alguma forma as questões da pobreza e da desigualdade. Os principais economistas dos EUA ignoram deliberadamente os níveis crescentes de desigualdade e o terrível impacto da pobreza, alegando que este não é uma questão para a Economia (Economics).

Veja-se o que diz neste livro: “os salários reais estagnaram desde 1980, enquanto a produtividade mais do que duplicou e os ricos perderam os lucros. Os 10% mais ricos das famílias dos EUA possuem agora 76% da riqueza. Os 50% mais pobres possuem apenas 1%.” Impôs agora um sistema de luta de classes: “a guerra contra a pobreza tornou-se uma guerra contra os pobres”.

Deaton salienta que uma maior igualdade não será alcançada simplesmente por meio de transferências dos recursos coletados de impostos, ou seja, por meio de pagamentos de assistência social; dificilmente – disse ele – esse tipo de interferência no mercado fará qualquer diferença. Uma melhor resposta, para ele, consistiria na elevação dos gastos do Estado na educação e na criação de empregos para todos.

Deaton se opõe às políticas mais radicais: “Não precisamos de abolir o capitalismo ou nacionalizar seletivamente os meios de produção. Mas precisamos colocar novamente o poder da concorrência ao serviço das classes média e trabalhadora. Existem riscos terríveis pela frente se continuarmos a gerir uma economia organizada para permitir que uma minoria ataque a maioria.”

Mas esse ataque da minoria à maioria não seria na verdade a própria essência das sociedades de classes e do capitalismo moderno em particular? Na minha opinião, a solução política de Deaton é tão utópica quanto aquela que ele critica. Pois ela não aborda o controle e a propriedade dos meios de produção pelo capital; assim como não atenta para o fato de que o trabalho submetido ao capital é o que garante que uma pequena minoria tenha grande parte da riqueza e do rendimento, enquanto a sociedade como um todo não tem o suficiente para satisfazer nem mesmo as necessidades básicas.

A pandemia e o subsequente aumento da inflação e das taxas de juro a nível mundial expuseram muitos dos países mais pobres do mundo no Sul Global ao descumprimento de suas obrigações de dívida com o exterior. Devem bilhões a credores, tanto públicos como privados, que estão no chamado Norte Global. Só conseguem pagar isto cortando serviços e quaisquer despesas para satisfazer as necessidades dos seus cidadãos – e cada vez mais não conseguem pagar.

A dívida global atingiu um novo máximo, de acordo com o Instituto Internacional de Finanças (IIF). A dívida total – abrangendo governos soberanos, empresas e famílias – aumentou 10 biliões de dólares, para cerca de 307 biliões de dólares, nos seis meses até junho, ou seja, 336% do PIB mundial. O Banco Mundial estima que 60 por cento dos países de baixo rendimento estão fortemente endividados e correm um elevado risco de ficarem inadimplentes. Ao mesmo tempo, muitos países de rendimento médio também enfrentam desafios orçamentários significativos.

Os aumentos dos juros por parte dos bancos centrais também provocaram um forte aumento dos custos dos empréstimos. Conforme o FMI, eles podem atualmente atingir o nível de 8%. O peso do pagamento de taxas de juro elevados ao próprio FMI está em processo de crescimento: “Se o pior cenário do FMI, de deterioração das condições econômicas globais, se materializar, a procura de apoio do FMI aumentará ainda mais.”

Portanto, o FMI criou uma armadilha da dívida para o próprio FMI! Na reunião deste mês, essa instituição global alertará que os governos “deveriam tomar medidas urgentes para ajudar a reduzir as vulnerabilidades da dívida e inverter as tendências da dívida de longo prazo”.  Mas como? Não há propostas dos países ricos para amortizar estas dívidas ou mesmo para acabar com as tarifas comerciais e as restrições às exportações dos mercados emergentes; ou, claro, parar a enorme extração de lucros dos países pobres e ricos em recursos por parte de empresas multinacionais.

Aquecimento global, pobreza e desigualdade globais sem fim, desastre do endividamento, todas essas vertentes da “policrise” do capitalismo no século XXI estão ligadas entre si devido à crise econômica insolúvel e crescente.

O volume de comércio global está agora caindo e do modo mais rápido desde a pandemia. Os volumes de comércio caíram 3,2% em julho em comparação com o mesmo mês do ano passado, a queda mais acentuada desde os primeiros meses da pandemia do coronavírus em agosto de 2020. A reviravolta nos volumes de exportação é ampla; a maior parte dos países do mundo reportam agora que veem uma queda nos volumes de comércio.

A China, o maior exportador mundial de bens, registou uma queda anual de 1,5%; a zona euro, por sua vez, apontou uma contração de 2,5%; nos EUA, ocorreu uma diminuição de 0,6%. O Banco Mundial também informou que a produção industrial mundial caiu 0,1% em comparação com o mês anterior, impulsionada por quedas acentuadas na produção no Japão, na zona euro e no Reino Unido – e tem diminuído ano após ano.

O Banco Mundial acaba de publicar um relatório no qual considera que a Ásia enfrenta uma das piores perspectivas econômicas em meio século. Os anteriormente chamados “tigres asiáticos”, formados pela Coreia, Taiwan, Singapura, Hong Kong etc., deverão expandir-se a taxas mais baixas em cinco décadas, à medida que o protecionismo dos EUA e os níveis crescentes de dívida representam um entrave econômico.

O Banco Mundial previu que o crescimento da China abrandaria para 4,4% em 2024, a taxa mais baixa em décadas, embora ainda mais do dobro da taxa de qualquer economia do G7. A deterioração das previsões reflete também que grande parte da região está a começar a ser afetada pelas novas políticas industriais e comerciais dos EUA ao abrigo da lei de redução da inflação e da lei protetora dos chips e da ciência associada (Inflation Reduction Act and the Chips and Science Act).

O último relatório da UNCTAD sobre a economia mundial considera que a economia mundial estagnou e os riscos durante o próximo ano estão a aumentar. A UNCTAD prevê que “o crescimento hesitante para o período 2022-24 ficará aquém da taxa pré-Covid na maioria das regiões da economia mundial. O peso da dívida está a esmagar demasiados países em desenvolvimento. O serviço da dívida pública externa em relação às receitas do governo aumentou de quase 6% para 16% entre 2010 e 2021.”

Há muito otimismo nos EUA de que a economia alcançará uma “aterragem suave”, ou seja, que a taxa de inflação voltará em breve à taxa-alvo de 2% ao ano sem que o PIB real entre em recessão.  Tenho discutido essa possibilidade. Mesmo que isso venha a acontecer, uma “aterragem suave” não se aplica ao resto das principais economias capitalistas avançadas. A área do euro está se contraindo fortemente. Ademais, países como o Canadá, o Reino Unido e várias economias menores, como a Suécia estão sofrendo; o Japão, por sua vez, está à beira do precipício.

Na verdade, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no seu último relatório, prevê que o crescimento global em 2024 será inferior ao de 2023, caindo de 3% este ano para 2,7% em 2024. Apesar da economia global, nos primeiros seis meses de 2023, estar provando que é “mais resiliente do que o esperado”, as perspectivas de crescimento “permanecem fracas”. O crescimento real do PIB nas economias capitalistas avançadas abrandará de 1,5% este ano para apenas 1,2% em 2024; já o PIB per capita estará próximo da contração.

Os economistas da OCDE consideram que a inflação não regressará tão cedo aos níveis anteriores à pandemia; em consequência, os bancos centrais deverão manter as taxas de juro elevadas. Na verdade, o FMI também apela aos bancos centrais para que continuem a miserável política de elevar os encargos da dívida na “guerra contra a inflação”. No entanto, como argumentei, como a inflação mais elevada advinha de um problema do “lado da oferta”, o aperto monetário do banco central pouco faz para reduzir a inflação e é apenas uma receita para a “recessão”.

E há duas outras vertentes da policrise do século XXI que ainda estão em desenvolvimento. Há o enfraquecimento do domínio dos EUA nos assuntos mundiais. A “globalização” do comércio e das finanças durante os últimos 40 anos sob a hegemonia dos EUA acabou. O gráfico em sequência mostra isso:

A capacidade do capital dos EUA para expandir os recursos produtivos e sustentar a rentabilidade tem diminuído. Isto explica o seu esforço intensificado para estrangular e conter a crescente força econômica da China e assim manter a sua hegemonia na ordem econômica mundial. 

Um estudo recente de Sergio Camera mostrou “uma estagnação prolongada” da taxa de lucro dos EUA no século XXI. A taxa geral de lucro foi de 19,3% na “era de ouro” da supremacia dos EUA nas décadas de 1950 e 1960; mas depois caiu para uma média de 15,4% na década de 1970; a recuperação neoliberal (coincidindo com uma nova onda de globalização) empurrou essa taxa para 16,2% na década de 1990. Mas nas duas décadas deste século a taxa média caiu para apenas 14,3% – um mínimo histórico.

Isso levou a um menor investimento e ao menor crescimento da produtividade nessa década. Por isso, indiquei já na década de 2010 que se estava na presença de uma “longa depressão”. Usando as palavras de Camera, tem-se que a “base econômica dos EUA ficou seriamente debilitada”.  Ora, isso está a enfraquecer a posição hegemônica do capitalismo norte-americano no mundo. Agora há o que é descrito como “fragmentação geopolítica”, isto é, a ascensão de blocos alternativos que tentam romper com o bloco imperialista liderado pelos EUA. A invasão russa da Ucrânia põe em evidência essa “fragmentação” de um modo dramático.

O que o mundo precisa é de cooperação global para superar a policrise do capitalismo. Em vez disso, o capitalismo está se fragmentando; na verdade, ele é inerentemente incapaz de forjar uma unidade internacional que promova um planeamento global. Os custos econômicos desta fragmentação já foram até medidos: devido à contração do comércio, ela será de até 7% do PIB mundial; com a adição da dissociação tecnológica, a perda de produção poderá atingir 8-12% em alguns países.

A longo prazo é a crescente perturbação econômica trazidas pela ascensão da inteligência artificial (IA). Os economistas da Goldman Sachs consideram que se a nova tecnologia de IA cumprisse a sua promessa (o que é duvidoso), isso traria “perturbações significativas” ao mercado de trabalho. O equivalente a 300 milhões de trabalhadores ficariam expostos ao desemprego em tempo integral nas principais economias devido à automatização do trabalho que eles realizam. Calcula-se que cerca de dois terços dos empregos nos EUA e na Europa estão expostos a algum grau de automatização por meio da IA. Chegou-se a essa conclusão com base em dados sobre as tarefas normalmente executadas em milhares de profissões.

A humanidade e o planeta enfrentam uma crise existencial devido ao aquecimento global e às alterações climáticas; mas será que o trabalho humano será substituído por máquinas pensantes mesmo antes que sobrevenha a catástrofe climática, ampliando assim as desigualdades e aumentando a riqueza para os proprietários das máquinas (capital) e a pobreza para os milhares de milhões (trabalho)? A policrise do capitalismo no século XXI apenas começou.