Os tambores rufaram quando Dom Quixote parou diante do cadafalso, armado em frente ao edifício do Itaú Cultural. Magro como uma vassoura, o Cavaleiro da Triste Figura vestia o camisolão branco dos condenados, tinha os pés descalços e as mãos amarradas nas costas.
Na entrada do prédio, 170 artistas (poetas, romancistas, músicos, pintores, escultores, cantores e performers, entre outros) aglomeravam-se em respeitoso silêncio. Entre eles, vários nomes conhecidos, alguns de muito sucesso na televisão.
Nas janelas dos andares superiores, também convidados especialmente para a cerimônia, debruçavam-se ministros, juízes de instâncias superiores, procuradores, deputados federais, senadores, agiotas-banqueiros e operadores de bolsas de valores.
Diante do cadafalso, 666 meninas vestidas de rosa e saias abaixo do joelho empunhavam bíblias e agitavam bandeirinhas do Brasil. Imediatamente atrás delas, 666 meninos vestidos de azul suavam carregando fuzis, submetralhadores e escopetas.
Fora das correntes de isolamento, controladas por soldados armados, enorme multidão de basbaques se acotovelava ansiosa e fremente.
Dom Quixote olhou para cima e seu proeminente gogó subiu e desceu. Olhou para a direita, e lá estava Sancho Pança, seu fiel escudeiro, também de mãos amarradas nas costas, suando como um peba. Olhou para a esquerda – e quem era que estava lá?
Antes que abrisse a boca de susto, viu que se aproximava velozmente um blindado do exército, do qual desceu um Juiz-Togado-de-Alto-Coturno, paramentado que nem um agente funerário, que desceu solene, ladeado por dois praças armados, caminhou sem pressa e parou diante do cadafalso.
A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR
– Digníssimos senhores ministros e jurisconsultos, nobilíssimos deputados e senadores, distintíssimos senhores banqueiros e financistas, caros artistas convidados, meninos e meninas, senhores e senhoras – principiou ele o Discurso de Condenação, depois de tirar do bolso algumas folha de papel amassado. – Estamos reunidos para dar seguimento à limpeza que o governo iniciou recentemente, e que hoje contempla um dos mais notórios e perversos inimigos da pátria: Dom Quixote.
Sancho, que ouvia com interesse o discurso, não gostou nem um pouco. Então ele não era ninguém? Não era a ele que o Cavaleiro da Triste Figura recorria em busca de conselhos, dicas e sugestões? Por que não era citado?
Irritado com a interrupção silenciosa de Sancho, o Juiz-Togado-de-Alto-Coturno olhou feio para o gorducho, pigarreou com força e continuou:
– Não satisfeito em conspurcar a mente de seus compatriotas há quatrocentos anos, teve esse infeliz a ousadia de, na Nova Ordem de Extrema Direita que se instalou no Brasil, destinada a uniformizar corações e mentes, teve a ousadia, repito, de tentar introduzir entre nossos jovens a maligna tentação do sonho, da fantasia e da esperança.
Aplausos prolongados.
– Obrigado – agradeceu ele, modestamente. – Nosso objetivo, como sabem, é extirpar para sempre essas perniciosas sementes. Nunca mais será permitido a artistas, negros, feministas, minorias e ativistas de movimentos sociais buscarem a diversidade, o direito de ser diferente e de pensar diferente. Pelo contrário: nosso objetivo é o da linearidade mais absoluta. Como prova, ali estão 170 artistas portadores da boa nova, criadores do Realismo Extremista Brasileiro, cujas obras são divulgadas apenas depois de análise rigorosa e minuciosa copidescagem.
Novos e delirantes aplausos, diante dos quais os 170 artistas integrantes do Realismo Extremista Brasileiro se curvaram em agradecimento.
À DIREITA, VOLVER!
– Como amostra – prosseguiu o eloquente orador –, o coral de crianças entoará o início do Hino Oficial da Uniformidade, também conhecido pela sigla HINOFU.
Não se sabe de onde, surgiu um maestro, cujas dragonas sugeriam um tenente do exército, que se pôs a frente da criançada, ergueu a batuta e comandou o coral.
Entoado por vozes estridentes e patrióticas, sobem aos ares os versos iniciais do HINOFU:
Duzentos milhões em delírio
Pra frente, Brasil, do meu coração...
Toda violência é um colírio
Que inunda meus olhos
De pura emoção!
De repente é aquela corrente pra frente
Parece que todo o Brasil
Perdeu a razão...
O entusiasmo foi geral e contagiante.
Do alto do Itaú Cultural começaram a chover moedas de 17 reais, cunhadas especialmente para a ocasião, que a multidão em êxtase disputou a socos e pontapés, resultando em 170 mortos e 1700 feridos que foram atendidos ali mesmo, antes da remoção dos defuntos para o necrotério e dos sobreviventes para o Pronto Socorro.
Sebastião Nunes
No GGN
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