terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Ruan de Souza Gabriel: Emma Bovary, proviciana, consumista, egoísta, é meu país



Assim como a personagem de Flaubert, o Brasil tenta se adequar a uma narrativa que não combina com ele

Emma Bovary sempre despertou em mim sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo que ria das trapalhadas românticas dessa provinciana consumista e embriagada de leituras açucaradas, eu admirava sua coragem lunática. 

Emma negava sua realidade medíocre e, meio desajeitada, esforçava-se para transformá-la no enredo de um romance heroico. Talvez Emma sofresse de uma espécie de miopia, como se aquela garoa triste que não permitia ao eu lírico de Mário de Andrade enxergar a desigualdade paulistana também cobrisse a paisagem da Normandia, impedindo Emma de distinguir o possível do delírio. Ou talvez fosse tudo uma questão de gênero – literário, no caso. Se o narrador flaubertiano não fosse tão silencioso e imparcial, ele decerto poderia avisar Emma de que ela protagonizava um romance realista crítico à vulgaridade burguesa e não um romance romântico com cavalheiros valentes, mocinhas suspirosas e final feliz. Com essa informação, Emma talvez resistisse melhor à mediocridade cotidiana em vez de se abrigar numa fantasia romântica, ideológica, pobre e conservadora.

O filósofo francês Jules Gaultier definiu bovarismo como “o poder conferido ao homem de conceber-se diferente do que é”. Num livro de ensaios recente, Bovarismo brasileiro (Boitempo), a psicanalista Maria Rita Kehl argumenta que povos e nações não estão imunes à doença nervosa de Emma Bovary. O Brasil, aliás, é um caso gravíssimo de bovarismo. Com um pé na psicanálise e outro na literatura, Kehl diagnostica um punhado de manifestações do bovarismo brasileiro: a mania nacional de querer ser outro – europeu, civilizado – sem jamais reconhecer e/ou contornar os obstáculos que frustram nosso desenvolvimento. Kehl identifica até um personagem bovarista na literatura brasileira: o Rubião, de Quincas Borba, de Machado de Assis. Rubião é um professor de província (alô, Barbacena), que depois de herdar uma fortuna segue para o Rio de Janeiro, onde tenta pateticamente ser um gentleman tropical – ser outro. Em vez de aproveitar a sorte financeira para construir uma vida autêntica, que fosse sua, Rubião copia o modelo de sociabilidade que imperava na corte de Dom Pedro II – um modelo de sociabilidade, aliás, importado da Europa e que nunca se encaixou bem nos trópicos escravocratas.

Emma Bovary queria viver os luxos da aristocracia e ser disputada por cavalheiros corajosos e gentis. Sonhava repetir em sua vida os enredos folhetinescos que lera na adolescência. Mas Emma não era como as personagens daqueles livros açucarados. Não era filha da nobreza (seu pai era um pequeníssimo proprietário de terras), vivia longe de Paris e era casada com um médico pouco talentoso, a quem nenhuma princesa honrada se entregaria. Emma jamais viveria como uma mocinha folhetinesca porque era apenas uma senhora de classe média, com cultura e orçamento limitados. O bovarismo, lembra Kehl, acomete em especial aqueles cujos recursos financeiros não correspondem a seus delírios e sonhos.

Um dos sintomas do bovarismo é esconder as condições sociais que separam um sujeito (ou uma nação) da realização de seus projetos românticos (ou liberais/emancipatórios). Em nações periféricas, como o Brasil, o bovarismo aparece como desejo de se modernizar tomando como referências as revoluções industrial e liberal europeias. A única opção do sul subdesenvolvido é seguir os passos das nações ricas do norte, ainda que a realidade nos trópicos seja outra e não faça sentido replicar aqui um receituário que deu certo lá fora em condições muito específicas. “O bovarismo dos países periféricos não favorece sua modernização”, escreveu Kehl. “Pelo contrário, sempre inibiu e obscureceu a busca de caminhos próprios, emancipatórios, capazes de resolver as contradições próprias de sua posição no cenário internacional”. O esforço de se adequar narrativas europeias não resultou em avanços sociais por aqui e ainda impediu que se pensasse em soluções originais para nossos impasses.

Ideias propagadas por livros franceses – como liberdade, igualdade e fraternidade – não resistiram à força da escravidão, da obscena concentração fundiária, do autoritarismo e à apropriação do Estado brasileiro por elites retrógradas. O atraso venceu as ideias emancipatórias porque as ideias emancipatórias pouco fizeram para combater o atraso. As elites pensantes brasileiras, pequenas Emmas Bovarys verde-amarelas, embriagaram-se de ideias emancipatórias, mas falharam em usá-las para enfrentar as configurações sociais que impossibilitavam a realização de nobres aspirações, como a democracia, a República e a justiça social. “A ‘crença mágica no poder das ideias’, cuja importação deveria projetar-nos no cenário da modernidade sem exigir a alteração das nossas práticas sociais, teve o efeito de alimentar o permanente desinteresse das elites cultas pelas questões públicas, permitindo a manutenção de privilégios e de um estilo de dominação pré-modernos”, escreveu Kehl.Se o bovarismo nos coloca ideais inatingíveis e nos proíbe de buscar saídas alternativas, mais condizentes com a realidade, por que é tão difícil nos curar dessa neurose? Talvez porque encarar a realidade é difícil e até assustador. O bovarismo verde-amarelo nos poupa do Brasil real, que é violento, autoritário e de uma desigualdade aviltante. O bovarismo nos oferece a narrativa do país do futuro, o Brasil como uma epopeia épica ou romance fantástico, delirante, mas charmoso e promissor. E mais: nos assegura de que o final será feliz se nos esforçarmos para cumprir um roteiro, que muda de acordo com os tempos e as preferências ideológicas – integração total ao capitalismo globalizado, revolução em duas etapas (primeiro burguesa e nacionalista, depois operário-camponesa).

O Brasil parece um bocado com Emma nos últimos capítulos de Madame Bovary: desesperado, afundado em dívidas, sem entender direito como chegou aqui. Talvez o antídoto ao bovarismo – entendido como conceber-se outro – seja não desviar os olhos do real, por mais horrendo que ele seja, procurar as possibilidades que ele apresenta e engajar-se nelas. Como o eu lírico de Mário de Andrade, precisamos afastar a garoa de nossos olhos. E, quem sabe, dar um pouco mais de crédito a nossas próprias ideias, desistir de nos adequar a gêneros literários que são estranhos à sintaxe do nosso português. Emma Bovary não precisava transformar sua vida num romance romântico fora de moda. E nós tampouco precisamos.

Ruan de Souza Gabriel

Fonte: Revista Época, reeditado também no Contexto Livre

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