sábado, 11 de abril de 2020

Silêncio de Deus, por Roberto E. Zwetsch


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Hoje estamos irmanados na dor da paixão e do luto de milhares de pessoas que viveram e sofreram a solidão radical, em termos teológicos, o silêncio de Deus.



Silêncio de Deus

por Roberto E. Zwetsch, no GGN

Hoje – 10 de abril de 2020 – é dia de luto e de silêncio segundo a mais antiga tradição cristã. É o dia da paixão e morte de Jesus de Nazaré, nosso Senhor e Salvador. Dia de silêncio e reflexão. De ausência de qualquer fio de esperança ou alegria. Dia das trevas como se proclama ao final da celebração do Tríduo Pascal para a sexta-feira santa. Este dia é tão importante que na tradição do catolicismo romano é o único dia em que os padres não celebram a eucaristia. Definitivamente, é um dia incomparável. 
Quando criança, lembro que este era um dia estranho para nós. Normalmente, feriado era dia de correr, de brincar, de festa. Mas neste feriado tudo era diferente. Em casa, meu pai e minha mãe exigiam silêncio das crianças. Parece que até os cães, gatos e galinhas entendiam. E mesmo as rádios na época mudavam sua programação. Os locutores falavam de forma mais controlada, contrita e as músicas eram orquestradas, algumas rádios com programação escolhida de música clássica com os temas da paixão de Cristo e do evento da cruz.
No mundo da globalização neoliberal, tudo mudou. Não existe mais tempo sagrado ou tempo litúrgico voltado ao silêncio e à reflexão. Tudo é frenético e vertiginoso. As músicas das rádios, TVs e tantos outros aparelhos que hoje estão nas mãos das pessoas em qualquer lugar não respeitam dias, liturgias, credos, memórias. Porque hoje o credo é um só: crescer, ganhar dinheiro, usufruir, buscar prazer sem limite. Claro que este credo é uma ilusão. Mas como todo falso credo, também este encontra seus limites, sua finitude, seu espelho mau. E este acaba de nos deixar estarrecidos e sem fala. Mudos. Hoje estamos de luto. Um luto extraordinário, um luto universal!
Pois, neste 10 de abril de 2020 o mundo e não só o Brasil está de luto. E não apenas porque hoje é o dia da memória da paixão de Jesus, o profeta de Nazaré, o Inocente condenado pelo Império, torturado e morto numa abjeta e maldita Cruz, como milhares de outros que ousaram opor-se à dominação romana de então.
  Não! Hoje é dia de paixão e luto no mundo inteiro porque já foram contaminados mais de 1,5 milhão de pessoas pelo coronavírus Covid-19, das quais 88.338 já morreram, enquanto apenas 328.661 foram curadas. Hoje e pelos próximos dias, meses e quem sabe quanto mais tempo, estaremos de luto permanente e sem dia marcado para acabar. Esta é a nossa paixão. Não apenas a paixão de Cristo, mas a paixão do mundo, a cruz do vírus que atingiu de forma fatal o mundo inteiro, abalando o sistema mundial das mercadorias e do dinheiro que se julgava forte, inexpugnável, sólido, sem limites. O sistema está em frangalhos e todos haveremos de sofrer, e como é sabido, uns mais outros menos. 
Hoje caímos na real, como costumam dizer os jovens em sua linguagem precisa e sem sofisticação. Hoje estamos todos de luto. E quem acha que está fora dessa, desça do ônibus da história, pois seu lugar é em outro mundo. Neste mundo em que vivemos aqui no Brasil, na China, na Europa, no Reino Unido, nos EUA ou no Equador, todos estamos de luto e assim viveremos por meses a fio. Esta é a solidariedade incomum que nos irmana, queiramos ou não. Algo grandioso e incontrolável se abateu sobre nós como uma clava, como uma tempestade, como uma hecatombe, maior do que todas as anteriores guerras ou catástrofes que ceifaram milhões de vidas. A partir deste tempo da nossa paixão, nós, habitantes deste pequeno planeta que gira no espaço sideral, por justiça, deveremos marcar em nossa memória que o dia 10 de abril de 2020 foi um dia em que a morte de Jesus na Cruz deixou de ser apenas um feriado litúrgico cristão. Este dia nos coloca frente à paixão do mundo, à paixão de centenas, de milhares de pessoas, de países inteiros que choram, gritam, clamam porque seus cidadãos, suas pessoas queridas estão mortas e na sua maioria não puderam sequer receber uma despedida humana decente, digna, honrosa. É a morte na sua mais absoluta crueza e sem enfeites.
Porque neste 10 de abril de 2020 as pessoas morrem na mais absoluta solidão. Esta é a experiência que desgraçadamente milhares de pessoas, mais de 80 mil pessoas no mundo, tiveram que sofrer. Só elas podem entender o que o profeta de Nazaré passou, sofreu e pelo qual gritou na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15.34). A tradição cristã dos evangelhos é muito estrita e cuidadosa nas páginas dedicadas à paixão e morte de Jesus. As descrições da crucificação são de uma simplicidade popular que surpreende a qualquer pessoa mais piedosa. As narrativas não enfeitam nem exageram. Limitam-se a descrever da forma mais realista e direta possível. O Evangelho de Marcos, o mais antigo entre os quatro evangelhos, fonte para os demais, no capítulo 15, por exemplo, dedica alguns versículos para narrar a crucificação e a morte de Jesus, menos de uma página. E este é o evento-fonte da narrativa cristã. Que depois se completa, evidentemente, com a narrativa da ressurreição, também ela sucinta e focada justamente no testemunho das mulheres do movimento de Jesus, em especial, Maria Madalena, a mulher de quem Jesus expelira sete demônios, e que se tornou a primeira a ter um encontro com o Ressuscitado. 
Na cruz de sua paixão Jesus gritou em sua língua, o aramaico: Eloí, Eloí, lamá sabactâni, que traduzido quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste? Este é o drama humano do filho de Deus. Ele, que era Deus, sentiu a solidão radical, o total desamparo, a ausência, o silêncio de Deus. Nós como seguidores e seguidoras deste Jesus Libertador talvez nunca vamos entender suficientemente esta experiência do silêncio de Deus, a não ser que enfrentemos – como as pessoas que hoje sofrem moribundas nas UTIs dos hospitais e que se encontram à beira da morte – esta solidão impossível de explicar, a solidão e o silêncio de Deus
É procurando me colocar na pele dessas pessoas que fico a pensar que este tempo da paixão de Cristo de abril de 2020 nos confronta com algo que jamais poderíamos ter imaginado antes. É que estamos irmanados no mundo globalizado não pela sua riqueza, nem pela mais sofisticada tecnologia que nos permite acompanhar on line a desgraça do mundo. Nada disso! Hoje estamos irmanados na dor da paixão e do luto de milhares de pessoas que viveram e sofreram a solidão radical, em termos teológicos, o silêncio de Deus. E no luto que estas mortes provocam, estamos irmanados com suas famílias, que choram a perda de pessoas queridas que não mais podem abraçar, beijar, consolar. Talvez como nunca antes temos as reais condições de avaliar e refletir sobre a oração da Cruz na qual Jesus recupera sua tradição mais antiga ao citar o Salmo 22, onde aquele grito está registrado por um outro sofredor. Logo depois, no mesmo Salmo, a pessoa inocente clama: “Deus meu, clamo de dia e não me respondes; também de noite, porém não tenho sossego”. Deus se calou. Deus não diz uma só palavra! Este é o silêncio de Deus que Jesus sentiu e que o levou – na Cruz do Império – à morte. Não há consolo, não há luz. Apenas a treva da morte radical e sem sentido.
Sabemos – pela experiência e por fé – que esta história não terminou assim. E a madrugada do domingo mudou tudo, sem que isto fossem favas contadas. Não para Jesus! Mas enquanto a narrativa cristã nos consola e enche de esperança com a notícia da Ressurreição, com a notícia de que a Vida vence a Morte, e nisso cremos e colocamos toda nossa esperança e compromisso pela justiça neste mundo, enquanto isso, dizia, hoje ainda não podemos cantar como na tradição. Temos de ser solidários com as milhares de vítimas fatais da Covid-19. Precisamos juntar toda a força de nossa fé, solidariedade, oração e amor para aguentar o luto e a ausência dessas pessoas queridas que foram cremadas ou sepultadas nesses dias e das muitas que ainda o serão por muitos e muitos dias. Esta é a nossa contribuição neste dia da paixão de Jesus, centro da fé cristã. Pois nós não cremos num herói vencedor, mas no Crucificado. Este é o centro da fé libertadora. Somente o Crucificado venceu a morte. Somente ele ressuscitou, verdadeiramente ressuscitou, como cantamos no domingo da Páscoa. E é este Crucificado que se identifica no mais profundo abismo com cada pessoa falecida, como afirmamos no Credo. E é ele que nos convoca para o bom combate da fé e da luta por justiça neste mundo mau e injusto. Por isto a fé no crucificado não é passiva, mas é ativa e comprometida com a luta pela vida em todo o lugar onde esta vida é destruída de tantas formas.
Mas antes de cantarmos a glória da madrugada feliz, há que aguentar firmes e solidários o luto e o silêncio de Deus. Esta é a paradoxal fé cristã. Somente assim seremos fieis ao Cristo da Cruz, à paixão do Senhor que nos precedeu na morte para que também nós e todas as pessoas recebam a graça da Vida plena, a vida que somente Deus nos pode conceder. A graça da ressurreição! Mas nunca antes do silêncio de Deus.
Roberto E. Zwetsch – Teólogo, professor associado de Faculdades EST, em São Leopoldo, RS, pastor luterano.

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