quinta-feira, 23 de abril de 2020

Noam Chomsky: um antídoto contra a ultradireita dos bancos e corporações associadas a Trump e Bolsonaro

Noam Chomsky, em entrevista a Amy Goodman, no Democracy Now! Tradução por Simone Paz e Gabriela Leite
Dissidente político, linguista e autor de renome mundial. Professor laureado no Departamento de Linguística da Universidade do Arizona e professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, onde lecionou por mais de 50 anos. Na entrevista a seguir, responde aos cortes de Trump no financiamento à Organização Mundial da Saúde, fala sobre o aumento recorde das mortes nos Estados Unidos, e discute as condições em Gaza, a ascensão do autoritarismo no mundo todo e a resposta dos progressistas. “Esse é o típico comportamento dos autocratas e ditadores. Quando você comete erros colossais, que acabam matando milhares de pessoas, é preciso encontrar alguém para botar a culpa”, explica Chomsky. “Nos Estados Unidos, infelizmente, é o caso: há mais de um século, um século e meio, tem sido sempre mais fácil culpar o “perigo amarelo”.
Na quarta-feira, pouco antes de Bernie Sanders anunciar que se retiraria da corrida presidencial, perguntei ao dissidente político, linguista e autor Noam Chomsky sobre sua avaliação da campanha de Bernie Sanders nesta época de pandemia do coronavírus.
Se Trump for reeleito, será um desastre indescritível. Significa que as políticas dos últimos quatro anos, que tem sido extremamente destrutivas para a população estadunidense e para o mundo, não só vão continuar como, provavelmente, serão aceleradas. Para a saúde, isso já é péssimo. Mas o que significa para o meio ambiente, ou para a ameaça de uma guerra nuclear — que é um risco extremamente sério, do qual ninguém está falando — é indescritível.

Suponha que Biden seja eleito. Eu presumo que seria, basicamente, uma continuação do governo Obama: nada demais, mas, pelo menos, não tão destrutivo, e com a possibilidade de que um público organizado consiga fazer pressão e mudar o que está sendo feito.
Atualmente, é comum dizer que a campanha do Sanders falhou. Eu acho que dizer isso é um erro. Eu vejo como um sucesso extraordinário, que mudou completamente o terreno do debate e das discussões. Questões que, até alguns anos atrás, eram impensáveis, agora passaram para o centro das atenções.
O pior crime que ele cometeu, aos olhos do establishment, não foi a política proposta por ele, mas o fato de conseguir inspirar movimentos populares, que já tinham começado a se desenvolver — como o OccupyBlack Lives Matter e muitos outros — e transformá-los em movimentos ativistas, que não aparecem a cada dois anos só para dar força a um líder e depois voltar para casa, mas aplicam pressão constante, com ativismo constante e assim por diante. Isso poderia afetar um governo Biden.
A taxa de mortalidade da pandemia do coronavírus continua acelerando. Primeiro, Trump rejeitou os testes da Organização Mundial de Saúde. Agora, ele diz que vai parar de financiá-la. Você pode falar sobre o que ele anda ameaçando fazer?
Esse é o típico comportamento dos autocratas e ditadores. Quando você comete erros colossais, que acabam matando milhares de pessoas, é preciso encontrar alguém para botar a culpa. E, nos EUA, infelizmente, é o caso: há mais de um século, um século e meio, tem sido sempre mais fácil culpar o “perigo amarelo”. “Eles estão vindo atrás de nós”. Temos visto isso a vida toda, e de fato, isso vem de muito antes. Então, culpar a OMS, culpar a China, alegar que a OMS tem relações insidiosas com a China, está funcionando muito bem para eles. Isso vende bem para uma população doutrinada profundamente há tanto tempo — desde os Atos de Exclusão da China, no século 19 — para dizer: “Sim, aqueles bárbaros amarelos estão vindo para nos destruir”. Isso é quase instintivo.
Sou velho o suficiente para me lembrar de quando, criança, ouvia os discursos de Hitler no rádio, nos Comícios de Nuremberg. Não conseguia compreender as palavras, mas o tom e a reação da multidão, da plateia encantada, eram muito claros e muito assustadores. Sabemos ao que levou. É difícil — isso vem à mente quando ouvimos os delírios de Trump e a multidão. Não sugiro que ele seja parecido com Hitler. Hitler tinha uma ideologia, uma ideologia horrível, não apenas pelo massacre de todos os judeus e dos 30 milhões de eslavos e ciganos, mas também uma ideologia interna que conquistou grande parte do mundo: o Estado, sob o controle do Partido Nazista, deveria controlar todos os aspectos da vida, deveria controlar a comunidade empresarial, inclusive. Esse não é o mundo em que vivemos. Na verdade, é quase o oposto: as empresas controlando o governo. E, no que diz respeito a Trump, a única ideologia detectável nele é a do narcisismo puro. Sua ideologia é a do “Eu”: enquanto for esperto o suficiente para continuar servindo aos verdadeiros mestres, enchendo de dinheiro os bolsos dos mais ricos e do setor corporativo, eles o deixarão em paz com suas palhaçadas.
É muito impressionante observar o que aconteceu na conferência de Davos em janeiro deste ano. Davos é o encontro das pessoas que são chamadas de “mestres do universo” — CEOs das principais empresas, grandes estrelas da mídia e assim por diante. Trump apareceu e deu o discurso principal. Eles não gostam de Trump. Sua vulgaridade não combina com a imagem que eles tentam projetar de um humanismo culto. Mas o aplaudiram loucamente, aplaudiam excitados a cada palavra que ele pronunciou, porque percebem que ele sabe bem quais bolsos encher com dólares, e de que forma. Enquanto ele fizer isso, desde que sirva seu principal eleitorado, eles o deixarão se sair com suas babaquices.
Como eu dizia, os países asiáticos têm atuado de forma sensata. A Nova Zelândia parece ter acertado. Taiwan vai bem. Na Europa, talvez a Alemanha tenha a menor taxa de mortalidade, o mesmo com a Noruega. Há formas de reagir.
E há formas de tentar destruir tudo — que é o que o Presidente Trump está fazendo, com o apoio da câmara de eco de Murdoch, Fox News e outros. Surpreendentemente, está funcionando. Então, ele levanta uma mão ao céu: “Eu sou o escolhido. Sou seu salvador. Vou reconstruir os EUA, fazer deles grandiosos para vocês novamente, porque sou seu servo. Sou o servo fiel da classe trabalhadora”, e por aí vai. Mas, enquanto isso, com a outra mão ele os esfaqueia pelas costas. Levar tudo isso adiante é um ato de genialidade política. Precisamos reconhecer que há um talento sério envolvido, seja um planejamento intuitivo ou consciente. É devastador. Já vimos isso antes. Vemos isso agora em ditadores, autocratas, sociopatas que passam a ocupar posições de liderança. E agora está acontecendo no país mais rico e importante da história mundial.
Muitos trabalhadores essenciais precisam sair de suas casas em plena pandemia e enfrentar um grande risco às suas vidas. Você poderia comentar se vê essa pandemia ameaçando o capitalismo global em geral ou apoiando-o, e se os trilhões de dólares que estão sendo colocados nesses pacotes de estímulo vão simplesmente intensificar a desigualdade ou realmente ajudar as pessoas que mais precisam?
O setor corporativo está trabalhando duro num plano para um futuro como o que você descreve. A questão é entender se as organizações populares serão capazes de impor pressão suficiente para garantir que isso não aconteça.
Vejamos as corporações. O que elas têm feito nos últimos anos? Os lucros têm ido pras nuvens. Elas têm se entregado a uma orgia de recompra de ações, que são dispositivos para aumentar a riqueza dos acionistas ricos e de seus gestores, enquanto minam a capacidade produtiva das empresas em grande escala, instalando seus escritórios em alguma pequena sala de algum lugar da Irlanda, para não ter de pagar impostos, usando paraísos fiscais. Essa mudança não é pequena. São dezenas de trilhões de dólares, roubando o contribuinte. Precisa ser assim?
Vejamos a oferta atual para as corporações. Ela deveria ser acompanhada de condicionantes — termo com o qual estamos familiarizados, por causa do FMI. Eles deveriam ser obrigados a garantir que não haverá mais uso de paraísos fiscais, nem recompras de ações, e ponto final. Se eles não o cumprirem, com uma garantia firme, não receberão nenhum dinheiro público.
Deveriam existir muito mais condicionantes. Parte da administração deveria ser de representantes dos trabalhadores. É impossível? Não, é feito em muitos países, na Alemanha, por exemplo. Deveria ser exigido que eles garantissem um salário digno para viver: não apenas um salário mínimo, um salário digno. Essa é uma condicionante que pode ser imposta.
Você poderia falar um pouco, de forma geral, sobre uma questão que habita seu coração há décadas, que são os Territórios Ocupados, Gaza e Cisjordânia. O que significa a pandemia num lugar como Gaza, classificada pela ONU e por pessoas do mundo inteiro como uma “prisão a céu aberto” com quase 2 milhões de pessoas?
É quase impossível pensar nisso. Gaza é essa prisão a céu aberto com 2 milhões de pessoas que a ali habitam, sob ataque constante. Israel, que se impôs como o poder da ocupação, reconhecido por todos os países como um invasor, menos por eles mesmos, tem estabelecido sanções muito duras desde que os palestinos cometeram o erro de realizar a primeira eleição livre no mundo árabe e eleger as pessoas erradas. Os Estados Unidos e Israel caíram em cima como uma tonelada de tijolos.
Há agora alguns casos [de covid-19] em Gaza. Se a pandemia se estender, será um verdadeiro desastre. Instituições internacionais apontam que em 2020, ou seja, agora, Gaza seria praticamente inabitável. Quase 95% de sua água é completamente poluída. O lugar é um desastre. E Trump garantiu que ficará pior. Ele retirou o financiamento dos sistemas de apoio aos Palestinos em Gaza e na Cisjordânia, matou o financiamento a hospitais palestinos. E ele tinha um motivo. Eles não o elogiaram o suficiente. Eles não foram respeitosos com deus, portanto, serão estrangulados, apesar deles mal sobreviverem sob um regime severo e brutal.
O que você considera necessário numa resposta internacional para frear a ascensão do autoritarismo que pode surgir com a pandemia? E o que seria necessário para transformá-la numa resposta progressista?
Na medida em que podemos identificar alguma política coerente dentro da loucura da Casa Branca, surge, com considerável clareza, uma coisa: a saber, um esforço para construir uma internacional dos estados mais reacionários e opressivos, liderada pelo gângster desde a Casa Branca. E, agora, isso está ganhando forma.
Na Índia, o presidente Modi, que é um hindu nacionalista e extremista, está se movimentando estrategicamente para destruir a democracia secular indiana e esmagar a população muçulmana. O que está acontecendo na Caxemira é assustador. Já era ruim o suficiente antes, agora ficou muito pior. O mesmo acontece com a enorme população muçulmana na Índia. É possível descrever a quarentena imposta como genocida. Modi deu um aviso de bloqueio total cerca de 4 horas antes. São mais de um bilhão de pessoas. Alguns deles não têm para onde ir. As pessoas na economia informal, que são um grande número de pessoas, foram simplesmente expulsas. “Volte a pé para a sua vila”, que pode estar a milhares de quilômetros de distância. “Morra na beira da estrada.” Essa é uma enorme catástrofe, bem como os severos esforços para impor as doutrinas ultradireitistas do Hindutva, que estão no centro do pensamento e da bagagem de Modi.
Para além do caso da Índia, o que está acontecendo, de fato, é que o sul da Ásia vai se tornar inabitável muito em breve, se as políticas climáticas atuais continuarem assim. No último verão, a temperatura em Rajasthan foi parar em 50 graus Celsius. E continua a subir. Há centenas de milhares de pessoas que não têm acesso à água na Índia. Vai ficar muito pior, pode até levar a uma guerra nuclear entre as duas potências que basicamente contam com os mesmos recursos hídricos, em declínio, sob o aquecimento global: Paquistão e Índia. Ou seja, a história de terror que está se desenvolvendo é, novamente, indescritível. Não é possível encontrar palavras para isso. E algumas pessoas estão torcendo por isso, como Donald Trump e seu amigo Bolsonaro no Brasil, e alguns outros sociopatas.
Mas como se opor a uma internacional reacionária? Desenvolvendo uma Internacional Progressista. E há alguns passos para isso. É um tema que não ganha muitos holofotes, mas acho que em dezembro próximo haverá um anúncio formal do que está em andamento há algum tempo. Yanis Varoufakis — fundador e principal figura do DiEM25, o importante movimento progressista na Europa — e Bernie Sanders publicaram uma declaração pedindo uma Internacional Progressista para combater e, esperamos, superar a internacional reacionária com base na Casa Branca.
Agora, se você olha a nível de Estados, parece uma competição extremamente desigual. Mas os Estados não são o único elemento. Olhando para o nível das pessoas, não é impossível. É possível construir uma Internacional Progressista baseada nas pessoas. Abrangeria desde grupos politicamente organizados que têm se proliferado, que foram muito impulsionados pela campanha de Sanders, desde auxílio mútuo de autogestão, a organizações de autogestão que estão crescendo em comunidades por todo o mundo, nas áreas mais empobrecidas do Brasil, por exemplo. Há inclusive um fato impressionante, lá: o crime organizado está se responsabilizando por trazer alguma forma de proteção decente contra a pandemia nas favelas do Rio de Janeiro. Tudo isso está acontecendo a um nível popular. Se isso se expande e desenvolve, se as pessoas não simplesmente desistirem de tudo, em desespero, mas trabalharem para mudar o mundo, como já fizeram no passado em condições muito piores, haverá a oportunidade para uma Internacional Progressista.
E tenha em mente que também há casos marcantes de um internacionalismo progressista, no nível do Estado. Pense na União Europeia. Os países ricos da Europa, como a Alemanha, recentemente nos deram uma lição sobre união. Certo? A Alemanha está gerenciando [a crise sanitária] muito bem. Eles têm provavelmente a menor taxa de morte no mundo, na sociedade organizada. Logo ao lado deles, no norte da Itália, as pessoas estão sofrendo miseravelmente. A Alemanha está oferecendo a eles algum auxílio? Não. Na verdade, a Alemanha até bloqueou o esforço para desenvolver títulos em euros, títulos gerais na Europa que poderiam ter sido usados para aliviar o sofrimento em países em piores condições. Mas, felizmente, a Itália recebeu ajuda do outro lado do oceano Atlântico, vinda de uma superpotência do hemisfério ocidental: Cuba. Cuba está, novamente, como antes, mostrando um internacionalismo extraordinário, enviando médicos à Itália. A Alemanha não vai fazer isso, mas Cuba pode. A China está fornecendo auxílio material. Esses são passos na direção do internacionalismo progressista a nível de estado.
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