quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O voto em tempos fascistas, por Tiago Zapater, Professor de Direito Ambiental da PUC-SP e Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP.




"Para o homem comum de Pondé, a vida não tem causa nem sentido. As coisas são o que são ou têm causas sobrenaturais: as pessoas são boas ou más e, com isso, se explica a sociedade. Há homens que batem em mulheres, porque são maus, mas são uma exceção sem causa. São maus, porque nasceram assim. No limite, existe Deus, família e a meritocracia (cujo outro lado é a inveja), e com isso se explicam as injustiças do mundo. E ninguém precisa assumir responsabilidades pelas coisas que não fez, como a escravidão, a poluição, a pobreza e o machismo, porque apenas os méritos alheios (jamais os erros) podem ser apropriados, e a isso chamam de patriotismo e herança. Nação, família e propriedade. "

Do Justificando:


O voto em tempos fascistas

Quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O voto em tempos fascistas

    Foto: Supremacistas brancos após um comício no Estado de Geórgia, Estados Unidos, em 21 de abril de 2018.
Todo voto é uma troca. Nenhum candidato é perfeito. Em todo voto há uma aposta em um ganho futuro e incerto. Mas qual é o preço?
Recentemente, setores da direita parecem ter desenvolvido um especial interesse pela curadoria histórica da expressão “fascismo“. A expressão, dizem, deveria ser reservada para descrever um modo específico de intervenção do Estado na economia, e na vida privada de modo geral, que marcou o regime de Italiano após 1926. Insinua-se assim (e, por vezes, até se diz), que o fascismo foi, na verdade, um incompreendido movimento de esquerda ou, melhor ainda, que a esquerda seria, na verdade, um grande e incompreendido movimento fascista.
Um problema de significados.
É certamente possível observar a experiência histórica do fascismo e extrair, como significado útil para os dias presentes, que a intervenção do Estado na economia é o que leva à violação de direitos humanos e que, portanto, a melhor maneira de garantir esses direitos é garantindo a liberdade de mercado. Para essa visão, nacionalismo, xenofobia e a intolerância de um modo geral não seriam características essenciais do fascismo. O essencial seria o gigantismo estatal. Nesse viés, acusar um candidato de ser fascista seria algo muito próximo de acusá-lo de ser intervencionista, razão pela qual, quando acusados, pela esquerda, de fascistas, esses candidatos podem bradar de volta algo como “fascista é quem me diz“.
De outro lado, também é possível, como fazem as ciências, observar a experiência histórica do fascismo e extrair, como significado útil, a percepção de como autoritarismo totalitário, fundado em um nacionalismo de bases xenófobas e racistas, levou a uma violação sistemática de direitos humanos pelo Estado, com apoio da população (sem o que não seria possível), marcada pela intolerância e opressão de minorias. A ideia-chave do fascismo estaria na construção de um fascio (união de semelhantes) do qual o “outro” está excluído, e é, assim, um inimigo a ser combatido.
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Contudo, independentemente de se considerar o fascismo um movimento (para parafrasear o Min. Toffoli) à esquerda ou à direita, esse debate só tem sentido porque todos concordam em uma coisa: a xenofobia, o racismo, a violação a direitos humanos e a opressão de minorias é algo ruim, e temos o dever de evitar que se repita, certo?
Pois bem. Dentre os vários feitos inacreditáveis de Bolsonaro parece estar o sucesso em conseguir pautar temas como a opressão de minorias e a violação de direitos humanos sob perspectivas inéditas, ao menos desde o fim dos regimes fascista, nazista e soviético. É sobre isso que, em tempos de cólera, me desafio a refletir. 
Recentemente, dois artigos relacionados ao tema me chamaram a atenção. Um, de Eduardo Wolf (Estadão), fala sobre a falácia do voto moralmente superior em um dos dois candidatos (Haddad ou Bolsonaro [1]). O outro, de Luiz Felipe Pondé (Folha de São Paulo), fala sobre como o homem comum não estaria preocupado com problemas ideológicos, mas apenas em obedecer sua mulher, pois, caso contrário, o resultado será não só “que ela ‘fechará as pernas pra ele’, como o dia a dia virará um combate contínuo ao redor de coisas pequenas. E, por consequência, ele não conseguirá trabalhar em paz“.  Nas palavras de Pondé, o homem comum não quer saber de ideologias, mas apenas de pagar boletos “mais fundamentais do que muitas das discussões que os inteligentinhos levam a cabo na mídia” [2].
A pretensa crítica de Pondé ao feminismo não me interessa. É um lugar-comum para o qual não vejo nenhuma utilidade intelectual. Interessa-me a noção de “homem comum” que ele utiliza: uma ficção para dar a ilusão de que há uma maioria de iguais (homens comuns) em relação à qual as minorias estão excluídas, podendo, quando muito, ser toleradas.
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O homem comum, fica claro, é heterossexual e casado. Branco ou, no mínimo, indiferente à raça e ao racismo, bem como a qualquer expressão de identidade que o afaste dos seus iguais homens-comuns. Se não é machista, é, no mínimo, indiferente ao machismo. Se não é homofóbico é, ao menos, indiferente à homofobia e não reconhece equivalência a nenhuma outra expressão da sexualidade que não a sua, heterossexual. Na verdade, nem crê que, nesses temas todos, haja um problema, a não ser que insistam em criar. Interessa-lhe, pois, trabalhar para consumir (pagar boletos) e manter-se no círculo dos seus iguais homens-comuns.
Para o homem comum de Pondé, a vida não tem causa nem sentido. As coisas são o que são ou têm causas sobrenaturais: as pessoas são boas ou más e, com isso, se explica a sociedade. Há homens que batem em mulheres, porque são maus, mas são uma exceção sem causa. São maus, porque nasceram assim. No limite, existe Deus, família e a meritocracia (cujo outro lado é a inveja), e com isso se explicam as injustiças do mundo. E ninguém precisa assumir responsabilidades pelas coisas que não fez, como a escravidão, a poluição, a pobreza e o machismo, porque apenas os méritos alheios (jamais os erros) podem ser apropriados, e a isso chamam de patriotismo e herança. Nação, família e propriedade.   
O que o homem comum não sabe é que os credores que lhe mandam boletos preferem assim. Roubaram-lhe o mundo e ele não percebeu. Sonegam-lhe significados e, para o homem comum, a sociedade segue sendo algo tão certo e místico quanto o mundo natural era para o homem medieval.
Esse homem comum, pagador de boletos, é também o eleitor médio, a quem não interessa os aspectos ideológicos dos candidatos. Interessa-lhe pagar os boletos fundamentais que, com o seu trabalho, ajuda um patrão a emitir e dele ganha o salário para poder pagar (e há quem diga que Marx estava errado…).
Isso me leva ao segundo artigo: aquele sobe a falácia do voto moralmente superior. Wolf aponta que nem todo bolsonário seria um sádico autoritário, assim como nem todo haddadista seria um petista de fé. O eleitor médio (o homem comum) quer pagar seus boletos: uns acreditam na promessa do liberalismo e outros se lembram dos bons tempos do governo Lula. Em ambos os lados, a grande maioria apenas deseja evitar o candidato oposto e torce para que o seu não seja tão ruim quanto aparenta.
O que traz inquietação, para Wolf, não é o voto do homem comum, pagador de boletos, mas aquele eleitor que julga seu voto como moralmente superior ao outro. O seu argumento é o de que os eleitores de Bolsonaro “estão afirmando que o elogio a ditaduras, o louvor a torturadores, o desrespeito sistemático, planejado e continuado às instituições que constituem uma democracia (Congresso, partidos, liberdade de imprensa, respeito ao adversário político, que jamais deve ser tratado como um inimigo, e pesos e contra-pesos que impeçam uma tirania da maioria sobre a minoria) são, política e moralmente falando, ou bem secundários, ou bem irrelevantes“. De outro lado, os eleitores de Haddad estariam em um igual posição moral, pois “ não há uma única acusação relevante do ponto de vista moral em matéria de liberdades políticas e defesa dos direitos humanos que não possa, em alguma medida, ser feita contra o próprio PT“.
O argumento já tomou as redes sociais: o apoio do PT a regimes que violam direitos humanos seria moralmente equivalente ao louvor de Bolsonaro à tortura e à ditadura. De um lado, a hipocrisia política. Do outro lado, o cinismo sádico. Entre um e outro, ao homem comum restaria pagar seus boletos fundamentais e seguir com a vida sem se preocupar com esses detalhes.
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Novamente, um problema de significados.
Fazer vistas grossas à violação de direitos humanos em outros países é moralmente reprovável, mas faz parte do cardápio da política internacional. É o caso do Brasil com a Venezuela e é o caso da Venezuela com a China. Também é o caso dos Estados Unidos com a China (Obama chegou a reconhecer o Tibete como parte da China) e com a Rússia, que, por sua vez, também apoia a Venezuela. Aliás, apesar do justo rechaço à ditadura de Maduro, os Estados Unidos continuam comprando petróleo da Venezuela.
Bolsonaro traz algo diferente: um louvor público ao ato de torturar e um apoio específico à prática da tortura pelo Estado (“sou à favor da tortura, tu sabes disso“). Ora, se a vida tem causa e sentido, e se as coisas têm significados, não é possível dizer que estamos diante do mesmo problema moral. Se existe um inferno, ele reserva um lugar diferente para a apologia sádica de Bolsonaro “ao terror de Dilma Rousseff“, ao assassinato de opositores (“deviam ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique“); ao racismo (“nem para procriador ele serve mais“) e à desumanização de homossexuais (“seria incapaz de amar um filho homossexual […]prefiro que um filho meu morra num acidente“). 
Uma inequívoca visão de mundo segundo a qual nem todos têm direito a ter direitos.
Homens de bem (o homem comum) têm direito a ter direitos. Todos os outrospodem, legalmente, ser mortos, torturados, oprimidos, humilhados, excluídos do espaço público, tratados como anormais, como animais, agredidos, entulhados em presídios ou, quando muito, tolerados na condição de minoria. A questão é saber quem são os excluídos do fascio (união de iguais) e o que estaria reservado a esses excluídos.
A divisão do mundo entre nós (homens comuns) e os outros é antiga. Romanos e bárbaros viveram sob essa distinção e, sob ela, morreram judeus, homossexuais, portadores de necessidades especiais, poloneses, testemunhas de Jeová, eslavos, comunistas e vários outros que não perfaziam o conceito nazista de homem de bem. O homem comum, privado de significados, adere à divisão e se julga protegido sem saber que não tem controle sobre quem será considerado, amanhã, o outro. A divisão é uma técnica antiga. Ela nasce do discurso do medo e serve a propósitos políticos dos poderosos e daqueles que mandam boletos para que os homens comuns paguem.
Eu estaria disposto a aceitar, ainda que a contragosto, um governo que apoie a causa de Israel contra a Palestina (como Bolsonaro anuncia que fará). Estaria também disposto a aceitar, exigindo fiscalização e atuação das instituições, um partido corrupto no governo, como é o caso do partido de Bolsonaro, o PSL (para onde migrou o PP, partido mais envolvido na lava jato). Mas não posso aceitar um governo que, mesmo após todas as falsas modulações típicas do segundo turno, continua deixando claríssimo que vê o mundo dividido entre homens de bem e os outros.
Não me pretendo moralmente superior a ninguém, mas tenho para mim alguns valores, que são inegociáveis. O que Bolsonaro pode me oferecer por eles? Estabilidade econômica? Crescimento do PIB? Baixa do dólar? Alta da bolsa? Mais empregos? O fim da corrupção?
Todo voto é uma troca. Nenhum candidato é perfeito. Quando escolhemos um candidato, aceitamos certos defeitos, aderimos a certas ideias e torcemos para que, ao menos em parte, aqueles projetos deem certo. Ao mesmo tempo, torcemos para que certas acusações e temores contra o candidato não se confirmem. Em todo voto há uma aposta em um ganho futuro e incerto, que pode ou não se realizar: projetos, programas, propostas e a própria propalada honestidade do candidato. Mas em todo voto há também um preço, que pagamos à vista. Qual é esse preço?  Lembro de Saramago:  dentro de nós há uma coisa que não tem nome essa coisa é o que somos“. Pelo que Bolsonaro oferece, não estou disposto a pagar o preço.
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Em qualquer caso, são favas contadas. Bolsonaro e seus bolsonários estão aí. Repercutir suas bravatas anti-humanistas só contribui para a perda de significados. A mídia e os intelectuais deveriam se esforçar por ignorar essas bravatas, relegá-las ao esquecimento a que pertencem. Os direitos humanos e as instituições são muito maiores que Bolsonaro e suas declarações. Bolsonaro não será o fim do ativismo, do feminismo e dos movimentos sociais, a não ser que estes insistam em se descrever a partir desse discurso autofágico. A sociedade tem explicação e já não é possível por o gênio de volta na garrafa.
O tempo é de superar as bravatas bolsonaristas, porque elas só têm o tamanho que lhe permitirmos. É tempo de resistir ao obscurantismo, que rouba dos indivíduos as causas e sentidos do mundo. É tempo de superar o fascio (união de iguais) como modelo de agregação e pensar em projetos de nação que possam unir sem exclusões. Pensar uma comunidade de diferentes, com interesses comuns, e lembrar, ao longo dos próximos quatro anos, que existe muito mais na vida do que os bolsonários.
Somos a resistência, e estamos aqui.
Tiago C. Vaitekunas Zapater é Professor de Direito Ambiental da PUC-SP e Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP.
Notas:
[1] cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/a-cruz-e-a-espada-o-voto-moralmente-superior-em-bolsonaro-ou-haddad
[2] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2018/10/as-filosofas-do-interior.shtml

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