Carlos Antonio Fragoso Guimarães, a partir de um artigo de Paul Manson, no jornal The Guardian
Quando um livro, um filme, uma série atinge em cheio as pessoas, as fazem delirar e se apaixonarem pelo enredo, ai está presente um fator sutil, mas muito eficaz: lá existe uma metáfora que se associa ou a um momento no desenvolvimento destas pessoas, ou uma alegoria ou representação, em traços míticos, de uma era que se é realmente vivenciada, ainda que não se tenha consciência disto - aliás, é por não se ter clara consciência dos traços metafóricos e simbólicos em que personagens e tramas representam traços do desejado e do vivido, bem como de elementos complexos internos ao leitor ou espectador, que o envolvimento emocional é ainda mais intenso, como já demonstrara Carl Jung, Mircea Eliade, Joseph Campbell e outros.
O ensaista e sociólogo Paul Manson escreveu para o Jornal Inglês (de esquerda), The Guardian, um artigo sobre o sucesso da série baseada nos livros de George R.R. Martin, intitulado Pode a teoria marxista prever o desfecho de Games of Thrones? (uma tradução para o portugês, publicada pela Revista Fórum, pode ser lida mais abaixo).
Talvez sem ter muita consciência de que utilizou elementos da psicologia junguiana junto com a teoria marxista, Manson acertou ao mostrar que a maior parte das histórias de fantasia - desde as lendas arthurianas adaptadas à linguagem moderna (como no caso de As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley), passando pela trilogia do Senhor dos Anéis, de J.R.R.Talkien, até mesmo nos seis episódios de Guerra nas Estrelas, de George Lucas -, todos, sem excessão, apresentam figuras arquetípicas em um período fora do tempo presente das pessoas a quem as histórias são dirigidas, seja num passado feudal estilizado, seja num passado-futurista em uma galáxia distante, mas plenos de principes, imperadores, princesas, rebeldes heróis e seres estranhos atuando em um tempo e espaço imprecisos, porém com pessoas em situações incrivelmente parecidas, ainda que ampliadas, com a que vivemos. Isso, ao mesmo tempo que afasta a fiscalização crítica do nosso consciente bombardeado o tempo todo pela ideologia dos dominadores, nos abre o mundo atemporal do inconsciente, com nossos desejos, medos, aspirações, fantasias e nossas possibilidades duais de luz e sombra, heróicas e traiçoeiras latentes, mas nem sempre assumidas.
Junte-se a estas características uma série com locações e cenários incríveis que mostram a natureza, os limites humanos e sua capacidade de criar coisas belas e feias nas relações com outras pessoas, distante de uma ênfase no mecanicismo de nossa sociedade tecnocrática e de especulação imobiliária em série.
Com tudo isto junto, basta uma história bem construída apresentando personagens que reflitam esses arquétipos e nossos medos, desejos e partes reprimidas com uma pitada de bucolismo que evoque um paraíso perdido juntamente com uma boa dose de violência e sensualidade e pronto! estamos a um passo seguro para que seu autor vire uma celebridade e sua história, um clássico.
Talvez sem ter muita consciência de que utilizou elementos da psicologia junguiana junto com a teoria marxista, Manson acertou ao mostrar que a maior parte das histórias de fantasia - desde as lendas arthurianas adaptadas à linguagem moderna (como no caso de As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley), passando pela trilogia do Senhor dos Anéis, de J.R.R.Talkien, até mesmo nos seis episódios de Guerra nas Estrelas, de George Lucas -, todos, sem excessão, apresentam figuras arquetípicas em um período fora do tempo presente das pessoas a quem as histórias são dirigidas, seja num passado feudal estilizado, seja num passado-futurista em uma galáxia distante, mas plenos de principes, imperadores, princesas, rebeldes heróis e seres estranhos atuando em um tempo e espaço imprecisos, porém com pessoas em situações incrivelmente parecidas, ainda que ampliadas, com a que vivemos. Isso, ao mesmo tempo que afasta a fiscalização crítica do nosso consciente bombardeado o tempo todo pela ideologia dos dominadores, nos abre o mundo atemporal do inconsciente, com nossos desejos, medos, aspirações, fantasias e nossas possibilidades duais de luz e sombra, heróicas e traiçoeiras latentes, mas nem sempre assumidas.
Junte-se a estas características uma série com locações e cenários incríveis que mostram a natureza, os limites humanos e sua capacidade de criar coisas belas e feias nas relações com outras pessoas, distante de uma ênfase no mecanicismo de nossa sociedade tecnocrática e de especulação imobiliária em série.
Com tudo isto junto, basta uma história bem construída apresentando personagens que reflitam esses arquétipos e nossos medos, desejos e partes reprimidas com uma pitada de bucolismo que evoque um paraíso perdido juntamente com uma boa dose de violência e sensualidade e pronto! estamos a um passo seguro para que seu autor vire uma celebridade e sua história, um clássico.
Contudo, os elementos psicológicos envolvidos e despertados pelo enredo de uma série como Games of Thrones é apenas parte da explicação de seu sucesso.
Na história, que envolve a luta pelo poder e personagens sem nenhum escrúpulo ao lado de outros que, apesar de suas falhas - e mesmo por causa delas - representam o melhor do ser humano em uma situação de crise, como o caso do fabuloso e tantas vezes excluído anão Tyrion, representante dos proscritos sociais, ou da filha mais nova (e mais ousada) dos Stark, Arya, representante do feminino reprimido, o processo da guerra e manipulação política contida na série é uma cópia alegorizada do que ocorre atualmente na política capitalista mundial. É nesta linha que o artigo de Manson é construído e que merece nossa atenção.
No artigo mencionado, Manson vê uma metáfora bem construída das contradições do capitalismo e das aspirações das pessoas que são por este sistema anuladas em sua humanidade, só que, ao invés de quererem estas quererem transformar e humanizar o sistema desumano, querem mais é mergulhar no status dos opressores, com suas extravagâncias comportamentais, sociais e sexuais. Falta à maioria uma maior conscientização sobre o sistema e meio cultural impessoa em que vivem, mas a culpa não é propriamente delas.
A educação formal dos dias de hoje é fundamentalemente pragmática, voltada para o "deus" Mercado e, portanto, falha no esítmulo ao pensamento crítico e sensível, o que leva ao acerto da reflexão do Mestre Paulo Freire quando afirma que "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor". De fato, muitos dos espectadores parecem se encantar com os jogos de poder e o sadismo de certos personagens, sejam os explicitamente maus, como o patriarca dos Lannisters, Tywin, ou sua filha cruel e manipuladora, Cersei, ou aos que se utilizam do mal e do jogo em proveito próprio, como o Mindinho ou o Cão de Caça. Tyrion, o herói anão, é admirado, até mesmo amado, mas dificilmente seria adotado como modelo pela maioria. Preconceitos e esteriótipos culturais farão o público se associar mais com o antes vilânico e agora humano Jaine Lannister, o bastardo camarada e bem apessoado John Snow, a ousada e ainda infantil Arya, ou a feminista mas igualmente bela princesa-rainha Daenerys Targarian.
Na história, que envolve a luta pelo poder e personagens sem nenhum escrúpulo ao lado de outros que, apesar de suas falhas - e mesmo por causa delas - representam o melhor do ser humano em uma situação de crise, como o caso do fabuloso e tantas vezes excluído anão Tyrion, representante dos proscritos sociais, ou da filha mais nova (e mais ousada) dos Stark, Arya, representante do feminino reprimido, o processo da guerra e manipulação política contida na série é uma cópia alegorizada do que ocorre atualmente na política capitalista mundial. É nesta linha que o artigo de Manson é construído e que merece nossa atenção.
No artigo mencionado, Manson vê uma metáfora bem construída das contradições do capitalismo e das aspirações das pessoas que são por este sistema anuladas em sua humanidade, só que, ao invés de quererem estas quererem transformar e humanizar o sistema desumano, querem mais é mergulhar no status dos opressores, com suas extravagâncias comportamentais, sociais e sexuais. Falta à maioria uma maior conscientização sobre o sistema e meio cultural impessoa em que vivem, mas a culpa não é propriamente delas.
A educação formal dos dias de hoje é fundamentalemente pragmática, voltada para o "deus" Mercado e, portanto, falha no esítmulo ao pensamento crítico e sensível, o que leva ao acerto da reflexão do Mestre Paulo Freire quando afirma que "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor". De fato, muitos dos espectadores parecem se encantar com os jogos de poder e o sadismo de certos personagens, sejam os explicitamente maus, como o patriarca dos Lannisters, Tywin, ou sua filha cruel e manipuladora, Cersei, ou aos que se utilizam do mal e do jogo em proveito próprio, como o Mindinho ou o Cão de Caça. Tyrion, o herói anão, é admirado, até mesmo amado, mas dificilmente seria adotado como modelo pela maioria. Preconceitos e esteriótipos culturais farão o público se associar mais com o antes vilânico e agora humano Jaine Lannister, o bastardo camarada e bem apessoado John Snow, a ousada e ainda infantil Arya, ou a feminista mas igualmente bela princesa-rainha Daenerys Targarian.
Vejamos, então, o texto de Paul Manson, na tradução do pessoal da esquerda.net e publicada na Revista Fórum:
Pode a teoria marxista prever o fim de Game of Thrones?
As elites estão em crise, as suas fontes de riqueza esgotadas, a sua civilização assaltada por fanáticos enlouquecidos do exterior – enquanto, no interior, as massas estão em revolta aberta. Não, não é a zona euro – é Westeros, o local mítico de Game of Thrones
Por Paul Mason, publicado no Guardian, traduzido por Esquerda.net
Foi JRR Tolkien, o pai da fantasia científica, que resumiu a atração de um género que se tornou, nos últimos 60 anos, um marco da cultura moderna: “um Mundo Secundário no qual tanto o autor e espectador podem entrar, para a satisfação dos seus sentidos enquanto estão lá dentro”.
Mas por que tantos desses mundos secundários assemelham-se ao feudalismo em crise? Desde Tolkien e CS Lewis, a criadores de mundos interestelares como Frank Herbert em Dune, e agora o próprio Game of Thrones, os mundos de fantasia mais bem-sucedidos não invocam apenas as armadilhas do feudalismo – reis, tortura e julgamento por combate – mas a própria crise do feudalismo.
Na moderna fantasia científica, há sempre uma crise do sistema: tanto da ordem econômica como das auras de poder – a magia – que delas emanam. Há, na teoria literária, até mesmo um termo técnico para esta crise: “thinning“. Na sua Encyclopaedia of Fantasy, John Clute e John Grant definem “thinning” como “a ameaça constante de declínio”, acompanhado de um luto onipresente e sentido de injustiça no mundo.
Como Westeros prepara os seus abdominais tonificados no ginásio e depilados para a quinta temporada, o processo de “thinning” está no bom caminho. Existe a invasão do mundo espiritual a partir do norte gelado bem como há indícios de uma revolta de escravos por mar.
Mas há claramente também mais desgraça sistémica e que paira sobre a economia de Westeros. A dominante família Lannister obteve a sua riqueza possuindo a maior parte das minas de ouro. A moeda de Westeros é trimetálica: há moedas de ouro, prata e cobre, sendo que o seu valor varia conforme o metal que contêm – e não depende de um banco central e da sua “promessa de pagar” como na vida real.
O problema é que, na quarta temporada, o mais importante dos Lannisters, Tywin, soltou uma bomba: as minas de ouro não produzem há três anos. Adicionalmente, os Lannister devem uma tonelada de dinheiro para algo chamado Banco de Ferro. “Todos nós vivemos na sua sombra”, diz Tywin, “mas nenhum de nós sabe disso. Não se pode fugir deles, não pode enganá-los e não se pode influenciá-los com desculpas. Se lhes deve dinheiro, e não quer ser destruído, paga-lhes”.
Se isto faz lembrar a Grécia e o Banco Central Europeu, é só porque o seu impasse atual reproduz a mudança de poder essencial que aconteceu no final do feudalismo: dívidas acumuladas no âmbito de um sistema de clientelismo corrupto, cujas fontes de riqueza secou, destruíram o sistema no final.
Se aplicarmos o materialismo histórico a Westeros, o enredo da temporada cinco e seis torna-se possível, mas não determinadamente certo, de prever. O que aconteceu com o feudalismo, em que os reis se encontraram em dívida para com os banqueiros, é que – em primeiro lugar – eles tentaram resolver o problema com o poder destituído. Edward III, na vida real, prendeu os seus banqueiros italianos na Torre de Londres, até que estes renunciassem das suas dívidas.
Mas, eventualmente, o poder do comércio começou a esmagar o poder dos reis. O feudalismo deu lugar a um capitalismo baseado em comerciantes, banqueiros, pilhagem colonial e comércio de escravos. O dinheiro de papel surgiu, assim como um sistema bancário complexo para amenizar problemas como a mina de ouro que estava a secar.
Para que isso aconteça é necessário o Estado de Direito. É preciso que o poder dos reis se sujeite ao direito constitucional, e seja imposto um código moral às empresas, comércio e vida familiar. Mas isso não vai acontecer em Westeros, onde o estilo de vida da elite é sinónimo de estupro, pilhagem, mortes arbitrárias, tortura e sexo recreativo.
Então, do que Westeros necessita não é uma invasão de lobisomens do norte gelado, mas a chegada de um novo tipo de ser humano: eles devem vestir-se de preto, com golas de renda branca, rostos severos e uma aversão ao sexo e bebida. Numa palavra, Westeros precisa de capitalistas – como aqueles que desaprovaram puritanamente os retratos holandeses no século 17. E eles devem, como na República Holandesa e na guerra civil inglesa, iniciar uma revolução.
Mas isso não pode acontecer no mundo secundário da fantasia científica. O processo de “thinning” nunca pode terminar; deve ser perpétuo para que o conceito do drama funcione.
Há uma razão para que a fantasia científica adote o conceito de um feudalismo que está sempre em crise, mas nunca é derrubado. Ele forma a paisagem ideal para dramatizar os desejos secretos dos povos que vivem sob o capitalismo moderno.
A geração de Tolkien – marcado pela guerra em escala industrial – ansiava os valores de heroísmo e misericórdia associados ao combate cara-a-cara do passado. Para William Morris, cujo romance socialista utópico News From Nowhere desenrola-se num Hammersmith quase medieval, a aspiração era de perícia, arte, belos objetos individuais – uma fuga da brutalidade da produção industrial em massa.
Historiadores sociais futuros, olhando para trás sobre a popularidade de Game of Thrones, não terão muita dificuldade em decifrar os desejos íntimos da geração viciada na série. Eles são: “todos os anteriores” acrescentada de sexo com vários parceiros.
Presos num sistema baseado na racionalidade econômica, todos nós queremos o poder de ser algo maior do que o limite do nosso cartão de crédito, ou a nossa função profissional. Ninguém fica em casa a assistir a estes dramas imaginando ser um mero escravo, camponês ou empregada de bar: somos convidados a fantasiar que somos personagens como Daenerys Targaryen, uma bela mulher com dragões domesticados, ou Jon Snow, o bonitão com a barba por fazer que ninguém consegue matar.
Cabe à psicologia social explicar a popularidade duradoura da fantasia, e a sua evolução para uma quase pornografia e violência sádica. Tudo o que economia política pode fazer é apontar as contradições e assinalar onde elas conduzem.
Então, em algum momento na temporada cinco ou seis, eu prevejo que os Lannisters vão cair, como aconteceu aos feudalistas, a não ser que descubram um território até então desconhecido, cheio de ouro e de pessoas que se exterminem facilmente, assim como a monarquia espanhola fez durante a crise do feudalismo no mundo real.
Foi sempre um mistério saber se há uma terra a oeste, através do mar de Westeros. A minha suspeita é: tem de haver, e alguém vai ser em breve destacado para encontrá-la.
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