Eleição de 2022 mostra estágio superior da guerra ideológica promovida pela extrema-direita no Brasil
Democracia ou barbárie
por Marco Piva
Se há algum tempo algum analista político falasse que o Brasil tinha espaço para a expansão de um pensamento de extrema-direita, certamente suas palavras seriam vistas com desconfiança e descrédito. Afinal, recém-saído de uma ditadura, o país percorria um processo lento e gradual de aperfeiçoamento da sua jovem democracia, cujo alicerce é a Constituição de 1988. Em sucessivas eleições, PSDB e PT protagonizavam uma saudável e acirrada disputa pelo poder.
A partir de 2013, porém, um novo fenômeno começou a tomar corpo com as manifestações de rua que abrigavam uma vasta pauta de reivindicações, com um alvo bem particular: o governo de Dilma Roussef. O que era inicialmente o protesto de um reduzido grupo de estudantes esquerdistas que criticavam o aumento de 20 centavos na tarifa do transporte público em São Paulo, rapidamente se transformou em grandes concentrações por todo o país. Nos atos, amplamente divulgados pela imprensa e, em alguns casos, até estimulados pelas transmissões ao vivo, cabiam quaisquer tipos de demandas. Mas, duas em particular chamavam a atenção: o combate à corrupção e a desconfiança do sistema político.
A saída para acalmar o ímpeto das ruas não foi fácil, mas aconteceu de forma natural. Porém, essas manifestações criaram um caldo de cultura autoritário que foi se avolumando com o tempo a ponto de nas eleições de 2018 ocorrer a vitória de um presidente de baixíssima capacidade intelectual, alto grau de mediocridade para gerir a coisa pública e completamente inapetente para o cargo. A eleição de Jair Messias Bolsonaro trouxe à luz o filho gerado nas ruas em 2013.
Ao lado de Bolsonaro emergiram forças até então obscuras e retrógradas que, finalmente, conseguiram seu espaço de protagonismo político levando o país a uma situação de polarização muito diferente daquela observada nas eleições anteriores. A rivalidade de ideias foi substituída pelo ódio e o prazer perverso pelo conflito com a identificação de inimigos a serem exterminados. Por outro lado, houve o fortalecimento da presença de amigos e aliados nas diferentes instâncias de governo em troca de benesses cada vez mais conhecidas. O poder foi ocupado por gente totalmente alheia ao funcionamento da máquina pública, gerando paralisia em vários setores do governo. O improviso passou a ser a regra e a afinidade ideológica o critério de admissão.
Para chegar neste ponto de retrocesso democrático, houve uma articulação entre os setores sociais que anteriormente se sentiam isolados da disputa política exatamente por defenderem bandeiras consideradas deslocadas do debate contemporâneo. Aos poucos, as pautas de costumes foram ganhando espaço tendo como vetores as igrejas evangélicas, a parte conservadora do empresariado do agronegócio, os militares remanescentes da ditadura e as parcelas médias urbanas que se sentiram desvalorizadas pelas políticas sociais das gestões petistas.
Temas como aborto, drogas, ideologia nas escolas, família tradicional e corrupção, entre outros, foram sendo naturalizados a tal ponto que se tornaram as principais agendas do debate público, sempre a partir de fundamentos morais e religiosos que colidem com o conhecimento acumulado pela história e a ciência. Daí para interpretações literais da Bíblia e do que significam ordem e progresso para um país foi um pulo.
A expansão da extrema-direita no Brasil representa a etapa superior da guerra ideológica iniciada em 2013, com a cumplicidade, sempre é bom lembrar, de parte da chamada grande imprensa. O centenário O Estado de S. Paulo, por exemplo, na disputa presidencial de 2018 publicou um editorial no segundo turno sob o título “Uma decisão difícil”. Entre Bolsonaro, um ex-militar que teve que deixar o Exército por insubordinação, e Fernando Haddad, um jovem político e professor universitário, a opção pareceu difícil para o jornal.
Mas não só a grande imprensa não percebeu o perigo que se avizinhava. O avanço tecnológico criou novas armas contra as quais a democracia brasileira não estava preparada para entender e enfrentar. Somente este ano, no limiar da escolha do próximo presidente da República, o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu regras de controle das chamadas “fakenews”. No entanto, pouco pode fazer para impedí-las no volume como são difundidas e multiplicadas pelo chamado “gabinete do ódio”, plenamente identificado há três anos e que tem sede no próprio Palácio do Planalto. Tampouco as agressões do presidente às instituições mereceram rápida resposta, o que só alimenta sua retórica belicista.
Parece estranho alguém acreditar que o candidato Lula vai fechar as igrejas evangélicas caso vença a eleição. Afinal, foi ele, no exercício do seu mandato, que promulgou leis exatamente em defesa da liberdade religiosa. Parece surreal que alguém possa dar fé a uma “informação” de que o petista vai instituir o banheiro unissex nas escolas. Porém, o mais preocupante é que exista um presidente que ameace aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal somente para garantir a aprovação de suas pautas. Um mandatário que investe contra a lisura do próprio pleito do qual participa exigindo uma fiscalização paralela das Forças Armadas. É o uso da democracia para matar o próprio regime democrático.
O Brasil precisa sair urgentemente desse estágio de mediocridade moral e incompetência administrativa sob pena de se ver transformado numa espécie exótica do qual o mundo vai querer cada vez mais distância. Neste segundo turno, a opção não é entre um candidato e outro, já que entre ambos não existe simetria possível, mas entre a democracia e a barbárie.
Marco Piva é jornalista e apresentador do programa Brasil Latino na Rádio USP. Pesquisador do Centro Latino-americano de Estudos de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo.
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