A democracia não se esgota nos pleitos eleitorais. Antes, a mesma se realiza no cotidiano, no diálogo, no respeito ao diferente, no acolhimento de demandas
do BrCidades
A banalidade do mal governa: Genivaldo, Bruno, Dom, Marcelo, você e eu
por Marcelo Karloni
“A injustiça que se faz a um é uma
ameaça que se faz a todos”,
Montesquieu
Montesquieu, nascido em Bordeaux em 1689, era nobre e de família rica na França. Não era um morador de favela no Rio de Janeiro ou um miserável na França. Em 1748 escreve DO ESPÍRITO DAS LEIS, onde defende o liberalismo político e muitas ideias republicanas. É a um liberal que fundamenta parte do DIREITO MODERNO que recorro para falarmos sobre a banalidade do mal.
A noção de que o Brasil é um país solidário por muito tempo governou parte do imaginário que o brasileiro tem de si. Essa autoimagem de um povo solidário, amoroso e cordial foi por anos a definidora de um verdadeiro ethos que distinguiu nosso povo de tantos outros espalhados no mundo.
Tragicamente, adotando a perspectiva de Sérgio Buarque em Raízes do Brasil quando cita o homem cordial como uma das maiores contribuições do país ao mundo ou a de que seríamos um povo ávido pela generosidade e prática do “bem”, nossa sociedade caminha no sentido oposto.
No dia 25 de maio de 2022, na cidade UMBAÚBA no sul de SERGIPE, foi realizada uma abordagem por três agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Essa abordagem que reteve a moto do senhor GENIVALDO DE JESUS SANTOS de 38 anos, portador de transtornos mentais e usuário de medicação especifica para tratamento terminou tragicamente. Após imobilizar GENIVALDO pelos pés e mãos, os agentes de segurança pública o jogaram na viatura fechada e, usando gás lacrimogênio, impediram a sua respiração. Segundo o Instituto Médico Leal (IML) de Sergipe, Genivaldo morreu por insuficiência respiratória aguda.
No dia 5 deste mesmo ano, o servidor federal da Fundação Nacional de Assistência ao Índio (FUNAI) Bruno Pereira e o jornalista Dom Philips foram dados como desaparecidos na floresta amazônica. Desapareceram precisamente no Vale do Javari, terra constantemente ameaçada por garimpeiros, pesca ilegal, madeireiros e traficantes de drogas. A agenda de Bruno na região consistia em realizar reuniões para discutir proteção de território indígena com associações. Já Dom tinha por objetivo realizar algumas entrevistas para livro que estava escrevendo sobre Amazônia.
Ambos voltavam para Atalaia após cumprimento de agenda quando desapareceram. Os executores foram identificados e, 11 dias depois, já havia confissão e material genético para análise que confirmaria ainda a versão previamente apurada: foram assassinados.
Foz do Iguaçu, 09 de Julho de 2022. Guarda municipal há 28 anos, Marcelo Aloízio Arruda é assassinado na sua festa de aniversário de 50 anos. A festa tinha por tema Lula. Assim como o ex-presidente, o guarda também era sindicalista.
O homem que efetuou disparos contra Marcelo se chama Jorge José da Rocha Guaranho, um agente policial penal federal e assumidamente apoiador do atual presidente da República. Jorge invadiu a festa de Marcelo bradando o nome de Bolsonaro enquanto atirava numa festa repleta de crianças e familiares do guarda municipal.
Infelizmente, há um elo que nos une com os três casos relatados: todos estamos sob os efeitos da banalização do mal.
A BANALIZAÇÃO DO MAL
Hannah Arendt, filha do engenheiro PAUL ARENDT e conhecida filósofa de origem judaica, nascida na Alemanha, pode nos ajudar a entender o que há de comum no casos descritos acima. Arendt viu de perto a ascensão totalitária do nazismo na Alemanha e escreveu muito sobre o tema. Uma de suas obras mais importantes sobre o assunto é um livro específico chamado EICHMANN EM JERUSALÉM, onde narra os eventos que cercam o julgamento de um burocrata do regime nazista alemão.
Para justificar a política de extermínio de seres humanos, Eichmann dizia em sua defesa durante julgamento em Jerusalém por crimes de guerra que estava “apenas cumprindo ordens”. Não há espaço e tempo para detalhar aqui os detalhes do julgamento de Eichmann, mas a ideia de banalização do mal criada por Arendt a partir daquele caso pode nos ajudar a entender esses tempos sombrios que vivemos.
O mal a que Hannah se refere é um tanto mais perverso que o mal “demoníaco” costumeiramente temido em nossa sociedade. Trata-se de um mal banalizado que se incorporava na rotina como instrumento de trabalho de oficiais nazistas. Tornou-se comum e, portanto, dificilmente visto como “mal demoníaco”.
A ideia descrita por Arendt é visível nas alegações de Eichmann durante seu julgamento. Ele nunca se considerou culpado dos crimes contra judeus. Segundo sua defesa, Eichmann estava “apenas cumprindo ordens”. O burocrata nazista se sentia coberto pela legalidade e agia dentro da lei que vigorava do país naquele momento. Essa obsessão com o cumprimento da lei – embora fosse uma lei desumanizadora – era o que representaria, segundo Hannah, o verdadeiro perigo totalitário. Apesar de se tratar de uma ação legal, se posta em contraste com noções de bem-estar coletivo, humanidade e universalidade era a materialização mesma do mal.
Após a cobertura de Hannah, Eichmann passa a figurar como protagonista de uma moral deturpada e alienadora. O perigo maior que se esconde atrás de gente obcecada pelo cumprimento de normas legais, processos judiciais, obediência cega a hierarquias e amor a uniformização de costumes é exatamente esse: a incapacidade de, mesmo com o tempo, perceber a perversidade da lei que ampara ações bárbaras.
A consequência disso é tornar o mal praticado em “cumprimento de ordens” e jamais questionar se a lei que os autoriza, apesar de lei, é justa ou não. Por isso é tão difícil lidar com essas pessoas. Ser um agente a serviço do Estado e questionar essa “legalidade” é incorrer em risco de ser posto como subversivo e desordeiro.
Há ainda dois outros desdobramentos igualmente perigosos, especialmente no Brasil: a banalização do mal pelos agentes públicos – especialmente de segurança pública – autoriza, aos poucos, que civis possam agir em defesa armada com a certeza de não serem punidos; e, também aos poucos, corremos o risco de tratarmos absurdos como os casos de GENIVALDO, BRUNO, DOM e MARCELO como fatos que só teriam acontecido por culpa das vítimas. Essa lógica tem se reproduzido tanto nessas questões maiores e nacionalmente conhecidas, como naquelas domésticas do nosso ambiente de trabalho, no nosso círculo de amizades e mesmo nos encontros de família.
OS INTOCÁVEIS (DO ESTADO)
Os investidos em posições de poder concedidos democraticamente vão, aos poucos, vendo nessas investiduras a prerrogativa de serem INTOCÁVEIS. Aqui não é exagero o uso da palavra intocável. Por exemplo, há hoje em tramitação um projeto de lei de autoria do deputado BIBO NUNES (PL-RS) que dispõe sobre os deveres do cidadão ao ser abordado pela polícia. O PL 5.610/2019 diz no artigo 2o que “ao ser abordado por um policial, o cidadão deve:
I – atender às ordens do policial;
II – deixar as mãos livres e visíveis;
III – não realizar movimentos bruscos;
IV – não tocar no policial; e
V – manter uma distância mínima de um metro do policial. Parágrafo único. O descumprimento do disposto neste artigo sujeita o cidadão à pena de detenção de três meses a um ano, e multa.”.
Proposto em 2019, esse projeto avança e foi recebido em 15 de junho deste ano na COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA (CCJC ), tendo por relator o deputado Daniel Silveira, aquele que foi condenado a oito anos e nove meses de prisão pelo STF por ameaçar o funcionamento das instituições democráticas e que a subprocuradora LINDORA ARAÚJO solicitou extinção da pena.
O efeito dessas decisões? Logicamente é a autorização gradual e tácita para que se levante entre nós os chamados INTOCÁVEIS, além dos consequentes silenciamentos da crítica e da contestação populares. Afinal, quem deseja ser preso ou processado por questionar uma autoridade?
O processo de disseminação dessa lógica nas nossas relações é tão sutil que chega a ser quase invisível. Mas há gente – sempre há – que percebe. E é a esses que percebem que se impõe a tarefa de não se acovardar.
É por isso também que mesmo o processo democrático formal de escolha não é suficiente para haver uma sociedade justa. É preciso o processo democrático diário de cobrança das instituições, de fiscalização das ações e de solicitações de esclarecimento e tudo com a seguinte garantia: “não serei perseguido se o fizer”.
A democracia não se esgota nos pleitos eleitorais. Antes, a mesma se realiza no cotidiano, no diálogo, no respeito ao diferente, no acolhimento de demandas e na observância do direito das pessoas se pronunciarem.
Percebem como a autoridade máxima de um país é importante? É ela que estabelece os parâmetros de governo em todas as instituições abaixo dela, mesmo sem recorrer a decretos ou ordens explícitas. Para criar ambiência favorável ou não à banalidade do mal basta o exemplo. A banalidade do mal que se estabelece nos níveis mais altos de governo num país pode alastrar-se e afetar nosso dia a dia e nosso destino. É essa BANALIZAÇÃO DO MAL que está batendo à nossa porta, ou você pensou que ela estava perdida na floresta amazônica igual à CIDADE DE RATANABÁ?
Urge-se por gente que “tome as dores” no Brasil. É impressionante que aos poucos, em todos os ambientes, as dores da injustiça que sofremos individualmente vão se tornando apenas as dores de quem as sofrem. Isso não pode continuar!
Ao fim pedimos:
Justiça para Genivaldo, justiça para Bruno nosso colega de carreira no serviço público federal, justiça para Dom que, embora inglês, amou mais o Brasil que muitos governantes e Justiça para Marcelo.
Dr. Marcelo Karloni Arquitetura e urbanismo UFAL ARAPIRACA e membro da Rede BrCidades.
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