Uma crônica política sobre a teimosia em ser gente e permanecer no mapa brasileiro
Cena do filme 'Bacurau'
— Quem nasce em Bacurau é o quê? —pergunta a mulher do Sudeste recém chegada à bodega do povoado.
—Gente —responde o menino, mesmo que a pergunta fosse dirigida a uma vivente adulta, a dona do estabelecimento.
São muitos os sentidos do filme. Diversos como os gêneros e subgêneros que viajam da ficção científica aowestern-spaguetti. Dizer que ali mora gente, no entanto, talvez seja a grande moral política da fábula sangrenta.
Rapaz, é como se aquele sertão altivo, apesar de riscado do mapa, puxasse com o violeiro Carranca (personagem de Rodger Rogério, o lendário compositor do Pessoal do Ceará) um coro de provocação ao resto do Brasil: Ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se uma imensa Bacurau.
Uma imensa Bacurau, repito o refrão, na ideia de sobrevivência, na arte de teimar em ser gente e algum cheirinho de vingança (humanum est) nas ventas. Pego bigu no fado do Chico e do Ruy Guerra para tomar o vilarejo do Velho Oeste pernambucano como exemplo de reação organizada ao tratamento ao plano de extermínio por parte dos gringos invasores aliados ao coronelismo-coxinha do prefeito Tony Jr., na interpretação fria e magistral do ator paraibano Thardelly Lima.
E não se trata de forasteiros comuns do clichê de um bang-bang qualquer. Os americanos brincam de jogos mortais, como em um reality, para eliminar os habitantes da aldeia sertaneja —ponto sofisticadíssimo do roteiro do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Na sessão que vi no Petra Belas Artes, SP, em pleno Dia da Pátria, o público vibrou e aplaudiu como nas minhas jornadas vespertinas no cine Eldorado (anos 1970), em Juazeiro do Norte, ou no Veneza (década 1980), no Recife. Catarse geral e irrestrita. Bacurau ultrapassa a fronteira do “cult” e resgata esse bafo no cangote dos cinemões de rua nas tardes de sábado e domingo. Deixávamos o escuro da sala para voltar à claridade da rua repetindo os gestos, estripulias e as mungangas dos atores. Ah, O voo do Dragão, com Bruce Lee, que voadora espetacular!
Corta para 2019. Saltei da poltrona e dei de cara, na esquina da Consolação com a Paulista, com manifestantes de luto contra a ordem bolsonarista. Saí imitando o “abuso” genial de Lunga, o vingador representado pelo ator cearense Silvero Pereira.
Ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal... É lindo que o cinema tenha esse poder de resposta ao sufoco político e ao risco que a própria arte corre sob a asfixia da extrema direita. Ai essa terra anda muito amaldiçoada, cruz credo, quanto abuso, é tortura nas “senzalinhas” de supermercados, é censura em exposição de charges (Porto Alegre), Bienal do Livro (Rio de Janeiro), peça do grupo teatral Clowns de Shakespeare (Recife) e página rasgada de material pedagógico pelo governador da modernidade fake de São Paulo.
É o horror no campus universitário, é ciência proibida em nome das trevas, é uma nostalgia da ditadura da moléstia dos cachorros, é a febre do rato, é o estampô-calango, é a besta fubana, é a bobônica, como diria o DJ-narrador Urso, em indumentária “Rap Power”, nos cafundós bacurauenses. Na vida mais ou menos real, o amigo Urso é o artista Jr. Black, o Barry White do Agreste, gênio da música cosmopolita pernambucana, escutem esse cara, senhoras e senhores.
As mulheres de Bacurau miram-se no exemplo das heroínas de Tejucopapo, as destemidas que expulsaram, a pau e pedra, os holandeses que pretendiam saquear o vilarejo a 60 km do Recife, em 1646. Aí vemos Carmelita (Lia de Itamaracá), a matriarca que representa a utopia da água e da fartura da nação semiárida; Domingas (Sônia Braga), com sua blasfêmia alcoolizada e a valentia do cuidado rotineiro com o povo; a Teresa (Bárbara Colen) que retorna mais forte ainda... Sem falar na Deisy (Ingrid Trigueiro), que dá um tiro de escopeta ao melhor estilo Chigurh (Javier Barden) no faroeste americanoOnde os fracos não têm vez (2007).
Ai essa terra não está nada em transe, velho Glauber, essa terra está é fora do mapa, como registram os desautorizados satélites do Inpe sobre a destruição da Amazônia. Será que precisamos de algum milagroso psicotrópico, caríssimos Kleber e Juliano, para acordar da letargia? Quem sabe mais aulas do professor Plínio (Wilson Rabelo), né? Seriam os vingadores perigosos discípulos de Paulo Freire?
Acho que tomamos, saindo um pouco do bang-bang para a ficção científica, foi aquela pílula antialucinógena servida na água pelo Grande Benfeitor, personagem do conto A fé dos nossos pais, do escritor norte-americano Philip K. Dick. A pílula fitoterápica, me lembra aqui o amigo e fotógrafo alagoano Juarez Cavalcanti, deixou toda a população lesada, em uma eterna lombra alienante.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras) e do recém-lançado “Crônicas para ler em qualquer lugar”, com Gregório Duvivier e Maria Ribeiro (editora Todavia), entre outros livros. Comentarista do programa “Redação” (Sportv).
Protesto no Rio de Janeiro após a morte de Ágatha FélixSILVIA IZQUIERDO (AP)
De forma deliberada, com método, Jair Bolsonaro mostrou, na abertura da Assembleia Geral da ONU, que é capaz de tudo. A Amazônia queimou diante do mundo e o presidente contra o Brasil diz ao planeta: “Nossa Amazônia permanece praticamente intocada”. E sua mentira é traduzida para todas as línguas.
Depois, ele cita um versículo da Bíblia: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Bolsonaro goza com poder dizer qualquer coisa num palanque global. É assim que ele defeca pela boca, sim, mas defeca sobre a ONU. Não está ali desqualificando a si mesmo, mas todos os outros obrigados a escutá-lo mentindo como quem respira. Não está ali demonstrando sua inépcia, mas sim tornando ineptos todos os princípios que a Organização das Nações Unidas representam. Abriu a reunião mais importante do ano defendendo uma ditadura que sequestrou, torturou e executou cidadãos em nome do Estado. Bolsonaro sabia o que fazia, faz e fez o que disse que faria, faz e fez o que foi eleito para fazer.
O Brasil não tem poder atômico. É urgente compreender que o país tem, porém, o maior poder que já teve em sua história, que é o poder de destruir a Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que confere poder ao país que, de outro modo, seria periférico. Este é um grande poder em tempos de emergência climática, já que a floresta é essencial para a regulação do clima do planeta. E é isso que Bolsonaro está fazendo, ao cumprir, aceleradamente, a primeira etapa, que é a de desprotegê-la, enquanto prepara o terreno para a seguinte, que é abrir as áreas protegidas para exploração.
Este é o alvo de seu ataque contra Raoni, líder indígena que tem percorrido a Europa para denunciar o projeto de extermínio, e também de sua afirmação de que não demarcará mais terras indígenas. Não há modo mais eficaz de desrespeitar uma casa do que dizer, dentro dela, em lugar de honra, que a despreza. Bolsonaro então alcança o clímax: afirma que as chamas que o mundo viu não existiram. A ONU, uma criatura parida pelo mundo do pós-guerra, representante das democracias liberais hoje em crise, não está preparada para lidar com os déspotas eleitos. Não foi Bolsonaro que passou vergonha, foi a ONU. Bolsonaro não tem vergonha.
Nem limites. Se as imagens da floresta em chamas não bastaram para Bolsonaro reconhecer sua dívida com a verdade, tentem imaginar até onde isso pode chegar. E pensem, porque é urgente pensar: como parar alguém que leva a mentira ao nível da perversão, quando as instituições brasileiras fracassam e fracassam e fracassam mais uma vez? O que Bolsonaro fez em 24 de setembro foi uma demonstração de força em nível global. Ele sabe para quem fala —e com quem fala.
Bolsonaro demonstrou na ONU que é um falsificador de passados, ao defender a ditadura assassina como salvadora e sua ascensão ao poder como uma vitória contra um socialismo que nunca houve no Brasil. E anunciou na ONU, ao mentir sobre a Amazônia, que será criador de um futuro hostil. É isso o que acontecerá se não for possível controlar o superaquecimento global. E, sem a floresta em pé, não será possível. O Brasil está nas mãos de um perverso. Mas não é só o Brasil, e sim o planeta que está ameaçado.
É o futuro e a infância que viverá no futuro que o antipresidente do Brasil ameaça. É de infância e futuro que quero tratar aqui. Mostrar como o conceito de infância vem sendo manipulado para destruir as crianças. Quero falar da sueca Greta Thunberg, de 16 anos, e da brasileira Ágatha Félix, de 8 anos. Uma acusou os adultos de hoje de terem roubado a infância da sua geração. A outra teve a infância exterminada à bala, possivelmente uma bala da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Pelas costas, na kombi, quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão.
“Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias”
Desde que despontou para o mundo, numa greve solitária em nome da emergência climática diante do parlamento sueco, em agosto de 2018, Greta Thunberg faz discursos memoráveis. Sua fala na Cúpula do Clima da ONU, em Nova York, onde chegou de barco à vela, foi a melhor. “Vocês vêm até nós, jovens, para pedir esperança. Como vocês se atrevem? Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias. Como vocês se atrevem?”
E segue. “Isso é tão errado”, ela diz. “Eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar na minha escola, do outro lado do oceano. E eu sou uma das [crianças, adolescentes] com sorte. Pessoas estão sofrendo, pessoas estão morrendo, ecossistemas inteiros estão em colapso, uma extinção em massa está em curso e tudo o que vocês são capazes de falar é de dinheiro e sobre contos de fadas de crescimento econômico eterno. Como vocês se atrevem?”
São muitas as infâncias. Qual é a de Greta?
Sim, Greta deveria estar na escola. Em vez disso, está liderando greves escolares pelo clima. E por que está? Porque a irresponsabilidade dos governantes e das gerações anteriores obrigou a sua geração a tentar salvar a vida de nossa espécie no planeta em processo de superaquecimento. Não apenas a vida dela, é importante sublinhar, mas a de todos, inclusive a dos adultos. Greta também acerta quando diz que ela é uma das crianças sortudas. Sim, porque Greta nasceu na Suécia, um dos países de melhor qualidade de vida, teve acesso às melhores oportunidades e à melhor educação, tem pais que compreenderam o Asperger como uma diferença —e não como uma deficiência ou doença— e que a escutaram e tiveram condições de apoiá-la quando ela compreendeu a dimensão da catástrofe climática em curso e desejou lutar.
Greta chegou aos 15 anos, idade em que inicia seu movimento global, com os direitos da infância assegurados. É também por ter vivido num país com políticas públicas capazes de garantir direitos que Greta é capaz de enxergar que sua geração está ameaçada. Inteligente, ela percebe a urgência e a aponta. É por isso que afirma que é uma das crianças “sortudas”. A catástrofe climática já começou para as crianças de porções do mundo onde os direitos da infância jamais foram assegurados por políticas públicas.
Greta referia-se às catástrofes, às secas, às enchentes, aos êxodos, aos conflitos que já se iniciaram. Como o jornalista Jonathan Watts apontou no jornal britânico The Guardian, o que vivemos hoje —e viveremos com ainda mais intensidade— é um “apartheid climático”: os que menos colaboraram para o superaquecimento global, os países pobres e as parcelas pobres dos países ricos, são os que primeiro estão pagando, muitas vezes com a vida, pelas consequências da destruição do planeta pelo consumismo desmedido e pelo uso de combustíveis fósseis como petróleo e carvão. São outras infâncias as que estão pagando primeiro pela irresponsabilidade criminosa das gerações que hoje estão no comando. Alguns dizem que Greta teve uma infância privilegiada. Não é verdade. Greta teve uma infância com direitos assegurados —e direitos não são privilégios. Greta usa sua infância vivida num país que assegura os direitos da infância para denunciar a destruição do futuro de todas as infâncias —e denunciar que as infâncias sem direitos já estão sendo destruídas pela ação ou omissão, um tipo terrível de ação, dos adultos responsáveis por tomar medidas públicas para estancar o superaquecimento global.
Negar a voz das crianças é uma violência contra a infância
Também nisso Greta incomoda. Grupos e indivíduos têm colocado em movimento um processo de desqualificação da ativista que conseguiu o que os cientistas do clima tentaram por mais de três décadas sem sucesso: popularizar a emergência climática. Dizem então que Greta é “teleguiada” ou “explorada por seus pais”. Além de expressar sua própria crueldade, o que estes adultos estão dizendo?
Que crianças e adolescentes não têm voz. O silenciamento é uma forma de destruição da infância: dizer que uma criança ou adolescente não pode falar por si mesmo ou, se fala, não sabe o que diz ou está apenas reproduzindo o que seus pais ou outros adultos lhe mandaram dizer. Negar autonomia e capacidade para falar de sua própria experiência é uma violência contra as infâncias. Essa manipulação do que seria a infância —uma época da vida sem direito à voz própria— é de uma precariedade asquerosa.
Essa arma de desqualificação traveste-se de proteção da infância, o que a torna mais abjeta. Primeiro, acusavam Greta de parecer um “robô” quando falava em público. Em seu discurso antológico na Cúpula do Clima da ONU, em 23 de setembro, seu corpo miúdo estava afetado pela urgência e pela indignação. Bastou para adultos, estes mesmos que ela chama de infantilizados, desferirem comentários pretensamente preocupados com as expressões cristalizadas pelas câmeras, supostamente “alarmados” com o excesso de exposição da “pobre” menina “explorada”. Esses adultos saltitantes se acostumaram tanto a postar seus rostinhos sorridentes e photoshopados no “Face” e no “Insta” que se esqueceram da intensidade das expressões humanas.
Até então, Greta era a menina “manipulada” com rostinho de boneca. Em seguida, a garota com o rosto afetado pelo sentimento de indignação, tornou-se a menina “explorada”. Greta não tem vontade própria em nenhum caso, como se vê. Usam então a imagem da infância para atacá-la, a infância como um rostinho bonito, incapaz de sentimentos humanos como indignação ou raiva. Usam uma infância de cartão postal para dizer que ela é uma criança perturbada. Infância só seria infância se servir ao gozo dos adultos, a imagem da criança feliz. Greta também não é perdoada por quebrar essa idealização. A infância feliz inventada por esta época é a infância amordaçada. Só há felicidade absoluta se as crianças forem proibidas de dizer o que sentem.
Chamam Greta de “doente mental” para associá-la aos preconceitos odiosos sofridos por essa parcela da população
É ainda pior do que isso, porém. Como Greta assume e declara ser Asperger, condição do espectro do autismo, começaram a associar fotos com seu rosto distorcido, propositalmente divulgadas, para associá-la aos preconceitos odiosos com a doença mental. Como se sabe, quem tem uma doença mental sofre da mesma violência, a de que não sabe o que diz e por isso não pode ser levado a sério. É onde a infância e a doença mental são colocadas no mesmo lugar simbólico, o de não poder falar. Ou o de falar e não poder ser escutado porque supostamente nem a criança nem a pessoa com doença metal sabem o que dizem. O objetivo de chamar Greta de “doente mental” é, de novo, o objetivo de silenciá-la. E, assim, silenciar o conteúdo do que ela diz. O que incomoda em Greta, como está claro, é este dedo que ela aponta para nós. E que aponta com muita justiça. Então, urgente não é o clima, a extinção em massa de espécies em curso. Urgente é desqualificar a adolescente que conseguiu o que parecia impossível: romper com a paralisia global diante da catástrofe climática.
Greta se afeta. E, por se afetar, inspirou milhões de crianças, adolescentes e também adultos a ocupar as ruas do mundo em nome da emergência climática. Sugiro a estes adultos da sala de jantar, estes “preocupados” com a “superexposição” de Greta, que se preocupem em levantar a bunda do sofá e se mexer. Não estamos mais em tempos de conversas educadas de salão. A Amazônia queimou mesmo, apesar do que o mentiroso patológico que governa o Brasil dizer o contrário.
Sério. Como se atrevem?
Se atrevem porque Greta ameaça interesses poderosos. Como os da indústria de petróleo no mundo, como no Brasil o agronegócio predatório e as corporações transnacionais de mineração que miram a Amazônia. A força do processo de desqualificação de Greta é proporcional à força da sua voz. É exatamente porque ela sabe o que diz e porque fez o mundo escutá-la que se tornou imperativo silenciá-la. Parte deste ataque é extremamente organizada e profissional. Outra parte vem daqueles indivíduos que buscam ganhar fama e seguidores, o que significa dinheiro, tornando-se porta-vozes da direita mais desprezível. Outra parte é levada adiante pelos idiotas inúteis de sempre, relinchando nas redes sociais.
Estas são as infâncias atacadas de Greta. Não é Greta, a adolescente, que é manipulada. São os conceitos de infância que estão sendo manipulados para silenciar sua voz e neutralizar a potência do conteúdo do que ela diz. Os conceitos de infância estão sendo usados contra a criança.
Determinadas crianças, em geral negras, são decodificadas na paisagem urbana como matáveis
A infância, porém, não é apenas uma. Há várias infâncias. É o que a psicanalista Ilana Katz apontou numprograma da CPFL Cultura disponível na internet. Em determinadas condições as crianças não são vistas como crianças. Nos sinais vendendo balas ou fazendo malabares são pedintes. Quando são negras adotadas por pais brancos, como aconteceu no Shopping Higienópolis, em São Paulo, a segurança vem perguntar ao adulto se estão incomodando. São indesejáveis. Se são negras e estão sozinhas nos shoppings são retiradas pelos seguranças e detidas pela polícia porque são bandidas, como o fenômeno dos “Rolezinhos” mostrou. Se são negras e estão diante de lojas de grife, são retiradas porque “sujam” a vitrine, como ocorreu na Oscar Freire, a rua comercial mais rica da capital paulista. Determinadas crianças são decodificadas na paisagem urbana como restos. Determinadas crianças, em geral negras, são inclusive ameaçadoras para outras crianças, as “verdadeiras”, em geral brancas. E há que se proteger a sociedade delas, fechando todos os vidros e erguendo muros ao redor das escolas privadas e dos condomínios.
Essas são as infâncias as quais são negados os direitos legalmente assegurados à infância. Não são apenas silenciadas, são invisibilizadas como crianças, destituídas de si. Ser criança no Brasil, como bem apontou o jornalista Fausto Salvadori, num texto essencial publicado na Ponte Jornalismo, é uma questão de cor. Isso não significa, porém, que as crianças pobres e negras não tenham infância. Afirmar isso seria também uma violência contra elas. O que elas não têm são os direitos assegurados à infância. Negar a elas esses direitos garantidos por lei e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário é crime de Estado. E o Estado deve ser responsabilizado por isso.
E então alcançamos Ágatha. Assassinada. A quinta criança morta no Rio de Janeiro por “bala perdida” apenas neste ano. Antes de uma bala silenciá-la aos 8 anos, uma bala possivelmente disparada por um policial militar, Ágatha teve, sim, infância. Atravessada pela dor, sua família se empenhou muito em mostrar que ela teve a melhor infância que poderiam lhe dar, que ela recebeu seus melhores esforços. “Minha neta faz balé, tem aula de inglês, tem aula de tudo. Ela é estudiosa”, disse o seu avô à imprensa. A violência contra ele contida nesta declaração é o reconhecimento introjetado de que existem infâncias mais matáveis do que a de Ágatha. E a violência contra ele é o reconhecimento de que mesmo com uma infância mais semelhante a das crianças brancas de classe média, “apesar de” ser negra e morar na favela, Ágatha foi tratada como uma das crianças que as balas encontram. Ágatha morreu contra todo os esforços da família de fazer dela uma criança não matável.
Ágatha teve, sim, infância. A importância dada a este fato está na foto escolhida para divulgação, a de uma Ágatha sorridente vestida numa fantasia de Mulher Maravilha. As crianças das favelas brincam, fantasiam, imaginam, fabulam. As favelas e periferias estão entre os lugares do Brasil onde há maior resistência pela imaginação, pela invenção e pela alegria. Não fosse essa enorme força de vida, haveria um suicídio coletivo, dada a violência que o Estado, as milícias compostas por agentes do Estado e o tráfico infligem no cotidiano da população.
O que falta às crianças das favelas e das periferias, como Ágatha, a maioria delas negra, como Ágatha, são os direitos assegurados por lei à infância. É a negação dos direitos que as coloca no lugar de restos, que as coloca no lugar dos matáveis. É a polícia, o braço armado do Estado, que explicita essa condição. Eles sabem quem são as crianças e quais as infâncias que devem ser protegidas. Ou alguém imagina que um policial atiraria contra um carro nos bairros nobres do Leblon ou de Ipanema, correndo o risco de atingir uma criança branca e rica? O policial reflete, ali, na ponta, a ideologia de quem governa, e governa para uma parcela da sociedade que determina quem pode viver. No momento atual, no Rio, o governador contra o Rio, Wilson Witzel. No Brasil, o presidente contra o Brasil, Jair Bolsonaro.
Quando parlamentares e o presidente defendem a redução da maioridade penal, é isso o que estão fazendo: escolhendo qual é a infância que pode ser encarcerada. Quando defendem a política falida de “guerra às drogas”, que só faz aumentar os lucros de muitos de seus financiadores, estão determinando quem são os matáveis. Quando o ministro contra a Justiça, Sergio Moro, envia para o Congresso um projeto que absolve policiais que matarem “sob violenta emoção”, está determinando quem são os matáveis.
A normalização de que há uma categoria de pessoas matáveis, e que no Brasil a maioria delas é negra, é expressada em declarações. “A polícia vai mirar na cabecinha.... e fogo”, já declarou Witzel, logo após ser eleito governador. “Muda essa política de atirar”, clamam os pais de Ágatha. “Parem de nos matar”, reivindicam os moradores das favelas. Como pode existir uma “política de atirar”? Como é necessário que pessoas tenham que pedir ao Estado que parem de matá-las? Que tipo de normalidade é essa?
Uma sociedade que permite ao Estado determinar que há crianças “matáveis” está muito perto do ponto de não retorno
Quando a sociedade permite ao Estado determinar que há crianças que podem morrer, infâncias as quais podem ser negados todos os direitos, está muito perto do ponto de não retorno. Se o Brasil não estivesse profundamente adoecido, teria parado por Ágatha. Nosso presidente não tem vergonha. Nós também não. Por isso ele é nosso presidente.
Mais uma vez é de Greta e das crianças e adolescentes que lutam pelo clima que vêm o exemplo. Ela e outros 15 jovens ativistas de diferentes países apresentaram nesta semana uma queixa no Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Denunciaram cinco países, entre eles o Brasil, por não fazerem o suficiente para impedir o superaquecimento global. A omissão —ou ação, no caso do Brasil de Bolsonaro— constitui uma violação dos direitos da infância, convenção assinada há 30 anos. Os jovens ativistas exigem que os países tomem medidas urgentes para proteger as crianças dos impactos devastadores da crise climática. “Os líderes mundiais não cumpriram suas promessas”, afirma Greta. “Eles prometeram proteger nossos direitos e não fizeram isso."
Como os adultos não se movem, as crianças e adolescentes estão exigindo dos líderes mundiais que assegurem e protejam os direitos de todas as infâncias. Elas entendem muito bem que é de direitos que se trata. E que é na proteção e na ampliação dos direitos que há alguma chance. Como no Brasil os adultos também parecem incapazes de se mover, talvez seja necessário que as próprias crianças e adolescentes denunciem que a política de Wilson Witzel, em nível estadual, e de Jair Bolsonaro, em nível federal, é genocida. Tragicamente, as crianças brasileiras que têm visto seus colegas de escola serem mortos, muitas vezes pela polícia, vão precisar compreender que não podem contar com os adultos para exigir a proteção de seus direitos. Terão que contar elas mesmas ao mundo que estão sendo executadas pelo Estado, porque há no Brasil uma infância que é matável. As crianças brasileiras estão sós.
A omissão diante da emergência climática arranca das crianças o direito fundamental de imaginar um futuro onde queiram viver
Greta Thuberg é tão atacada porque sua mensagem é poderosa —e perigosa para os que querem manter um contingente de matáveis. A emergência climática expõe e amplia as desigualdades sociais e raciais. Os mais pobres são atingidos primeiro. A emergência climática, porém, é uma enormidade sem precedentes também porque atinge a todos. Como explicam as crianças e adolescentes, “não há planeta B”. E, assim, todas as infâncias, inclusive as que têm acesso à maioria dos direitos, se tornam também matáveis e sem direitos, ao perder o direito mais fundamental de todos, que é o de imaginar um futuro onde se queira viver. A falta de políticas públicas globais para conter o superaquecimento global condena a totalidade das crianças a um futuro hostil. E já começa a mudar o conceito de infância que foi construído na modernidade.
Assumindo o protagonismo diante da omissão dos pais, o que Greta Thunberg e os jovens ativistas climáticos estão fazendo é tecer o comum na casa comum. Apontar a causa pela qual todo o planeta deve se unir. Nada mais perigoso para os déspotas eleitos e seus nacionalismos feitos para beneficiar não a nação, mas a própria família. “O futuro pertence aos patriotas, não aos globalistas”, diz Donald Trump. “Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um ‘interesse global’ abstrato”, afirmou Bolsonaro.
O que Bolsonaro foi fazer na ONU foi justamente destruir a possibilidade do comum. E o comum é principalmente a Amazônia.
Estamos em guerra global pela vida da nossa espécie. Como vocês se atrevem a não ter lado?
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Representantes de comunidades indígenas de todo o Brasil afirmaram que Bolsonaro foi ofensivo, racista e que os indígenas não querem exploração. Jovem levada na comitiva só tem o apoio de sua própria família, disseram O-é Kayapó é líder na Associação Floresta Protegida (AFP), no Pará, disse que indígena levada por Bolsonaro à ONU 'só tem o apoio da própria família' entre comunidades do Xingu - Foto: BBC/Arquivo
Jornal GGN – Lideranças indígenas reconhecidas por toda a comunidade indígena do Brasil repudiaram o discurso do presidente Jair Bolsonaro, na Assembleia Geral das Nações Unidas, nesta terça-feira (24), na qual adotou o teor de exploração e desenvolvimento da Amazônia e das reservas indígenas: “ofensivo”, “racista” e “paranoico”, descreveram os líderes.
Os autores desta reação são os líderes da Associação do Território Indígena do Xingu (Atix), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), da Associação Floresta Protegida (AFP) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A primeira destas, inclusive, não reconhece Ysani Kalapalo, a jovem indígena que integrou a comitiva de Bolsonaro na ONU e que teria escrito a carta lida pelo mandatário.
Kapalo integra uma comunidade do Xingu, e não somente as lideranças da própria região Norte do país não a reconhecem como representante dos povos indígenas, como todas lideranças espalhadas pelo Brasil, que mantêm o respeito ao cacique Raoni Metaktire. Os líderes ouvidos pela BBC Brasil relataram outra realidade, muito distante da narrada por Bolsonaro no palco da ONU ontem.
Eles afirmaram, por exemplo, que o mandatário brasileiro usou dados que destoam das informações oficiais. Ele citou, por exemplo, 225 povos indígenas e 70 tribos isoladas. Mas segundo o IBGE e a Funai, há 305 povos indígenas no Brasil e o registro de 107 povos isolados.
A revolta maior entre as lideranças indígenas foi a crítica a Raoni, líder do povo caiapó, reconhecido por sua atuação e luta em defesa dos povos indígenas no Brasil e no mundo, chegando a ser indicado pelas comunidades brasileiras e ativistas ambientais como sugestão ao Nobel da Paz. Bolsonaro, em seu discurso, disse que “acabou o monopólio de Raoni” e que ele teria sido usado “como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”.
Para a presidente da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), Yanukula Kaiabi Suiá, Bolsonaro ofendeu não somente Raoni, como todos os povos indígenas. “Ofende o reconhecimento e o trabalho que Raoni vem fazendo durante mais de 40 anos na defesa de direitos dos indígenas”, disse. A Atix representa 16 povos do território indígena do Xingu, incluindo a etnia kalapalo, levada por Bolsonaro na comitiva, e que não a reconhecem como representante.
“O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”, já havia escrito em carta a Atix, após o anúncio de que Ysani seria levada à ONU.
Ainda, dos mais de 300 povos indígenas brasileiros, somente um, o Grupo Indígenas Agricultores defende Bolsonaro e suas políticas de Estado. A carta lida, inclusive, não foi de Ysani, mas por “supostos líderes de comunidades favoráveis a mudanças na legislação sobre terras indígenas e a abertura dos territórios para a exploração econômica em larga escala”, revelou a BBC.
De acordo com o representante da Associação Floresta Protegida (AFP), na bacia do Xingu, O-é Kayapó, Ysani só tem o apoio de sua própria família. “Ysani tem um pensamento muito ao contrário da maioria do povo que vive nas aldeias. Por ela ter crescido na cidade, acabou confundindo ou se perdendo entre as duas culturas branca e indígena”, disse à reportagem.
A menção de Bolsonaro aos homens das cavernas também foi mal vista entre os indígenas. Para a Coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara, com a comparação, o presidente brasileiro foi “racista e revela seu desrespeito quanto aos diferentes modos de vida dos povos indígenas”.
“É Bolsonaro quem ainda parece viver nas cavernas”, retrucou Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). “Ele diz que nós queremos ingressar na sociedade, mas a gente já faz parte da sociedade, mas sem esquecer nossa cultura e sem buscar uma integração total. Nós lutamos pelo nosso modo de ser”, disse.
Mas os reacionários radicais, que se juntaram a Bolsonaro para atacar até Raoni, terão de aguentar a radicalidade de Greta. Um dia ela disse: ser diferente pode ser um superpoder. Que seja.
Poucos adultos são tão perigosos hoje no mundo todo quanto essa menina da foto. A sueca Greta Thunberg, de 16 anos, alerta para a destruição da Terra e da humanidade, conspira contra negócios, crenças, interesses e crimes cometidos em nome do progresso.
Tornou-se ainda mais perigosa porque agora discursa na ONU. E descobriram que sua ameaça foi ampliada por uma notícia disseminada como difamação: Greta é portadora da Síndrome de Asperger.
Ela nunca escondeu a informação, mas seus algozes a exploram de forma espalhafatosa. Pela descrição bem resumida e genérica do que é a síndrome, Greta deveria ter deficiências com interação com outras pessoas, com a manifestação de sentimentos e até com a expressão verbal.
O mundo dessas pessoas, em alguns casos, é quase fechado em si mesmo. A síndrome é uma espécie de autismo e poderia fazer com que a sueca, mesmo sendo muito inteligente, estivesse resguardada em seu planeta particular. E Greta faz o contrário.
O planeta da sueca é o nosso, o que muita gente não quer ver, esse mundo a caminho da destruição pela ganância, pela indiferença e pela ignorância.
Greta disse na ONU, dirigindo-se sempre aos adultos: “Aqui e agora é onde demarcamos o limite. O mundo está acordando e as mudanças virão, gostem vocês ou não”.
Milhões não gostam. A direita acionou suas vozes na política, na imprensa e nas redes sociais para que depreciem Greta. Se possível, que a desqualifiquem, como fizeram com todos os líderes pacifistas.
Gandhi e Luther King, por exemplo. Os dois foram seres imperfeitos, com muitos defeitos, apesar de alguns acharem que seriam inatacáveis. Mas atacavam um e outro com o moralismo da época, que se reproduz hoje com o mesmo formato e a mesma virulência.
Gandhi e Luther King seriam machistas e, ao mesmo tempo, seriam gays. Ser gay, na primeira metade do século 20, era um defeito ou uma doença, segundo o mundo dos reacionários. No Brasil do bolsonarismo, continua sendo.
Greta teria, nessa mesma linha de raciocínio, o defeito de ser portadora de uma síndrome. Se é diferente, se vê o mundo de um jeito especial, se ataca o dinheiro e o capitalismo, pode ser perigosa. Porque não seria uma menina normal.
O radicalismo de Greta deveria, dizem eles, ser substituído por um discurso mais moderado, por uma conversa mais liberal. Mas não há retorno. Ela advertiu em Nova York que entrou numa guerra.
“Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias e eu ainda tenho sorte. Pessoas estão sofrendo. Pessoas estão morrendo”, disse a adolescente.
É a verdade jogada na cara dos defensores do crescimento a qualquer custo, incluindo os brasileiros que seguem seu líder da extrema direita. Por isso, é natural que os predadores reajam.
Mas saber que eles contam com a adesão de jornalistas é constrangedor demais. O jornalismo que apoia Bolsonaro está empenhado em destruir Greta, antes que ela mobilize as crianças e os adolescentes e ajude a evitar a destruição do mundo.
Mas os reacionários radicais, que se juntaram a Bolsonaro para atacar até Raoni, terão de aguentar a radicalidade de Greta. Um dia ela disse: ser diferente pode ser um superpoder. Que seja.