terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Reforma trabalhista – contrato intermitente é inconstitucional. Artigo do Professor Lênio Streck para o ConJur

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"Em recente coluna, listei 21 razões de por que estamos em um estado de exceção com a suspensão da força normativa da Constituição de 1988. Vivemos uma espécie de atrofia constitucional autodestrutiva. O que tenho percebido nos estudos acerca da reforma trabalhista é que a mesma não reconstrói, mas simplesmente destrói as bases estruturais de sustentação do trabalho no Brasil. Essas bases estão assentadas na Constituição de 1988." - Lenio Streck

Do Consultor Jurídico (ConJur):


Reforma trabalhista – contrato intermitente é inconstitucional


Em recente coluna, listei 21 razões de por que estamos em um estado de exceção com a suspensão da força normativa da Constituição de 1988. Vivemos uma espécie de atrofia constitucional autodestrutiva. O que tenho percebido nos estudos acerca da reforma trabalhista é que a mesma não reconstrói, mas simplesmente destrói as bases estruturais de sustentação do trabalho no Brasil. Essas bases estão assentadas na Constituição de 1988.

Quem luta esta luta a partir do Direito, como eu, tem como premissa a tese de que países de modernidade tardia como o Brasil não se afirmarão historicamente apenas nas estritas condições ideais de formação do consenso público. Noutras palavras, o consenso reformador trabalhista deve ser barrado pela verdade constitucional. Por tudo isso, não deixo de considerar cientificamente correto aqueles que colocam aspas (“reforma” trabalhista) ou aqueloutros que enfatizam a destruição promovida (deforma trabalhista). Há embasamento científico, e o Direito deve se afirmar cientificamente, para tais posturas, não se tratando de dissimulação ideológica. Pelo contrário, ideológicos dissimulados são aqueles que procuram desacreditar tal abordagem ao lhe atribuir tal pecha.

Confirmo tal entendimento, de forma célere e certeira, com os textos das colunas que tenho escrito como saga pela aplicação da jurisdição constitucional na reforma trabalhista (Como usar a jurisdição constitucional na reforma trabalhista e E o filósofo perguntou: por que americanos não vêm curtir nossa CLT?). Além disso, fui obrigado a escrever um texto avulso acerca da malfadada decisão que fulminou trabalhador rural; ali invoquei os juristas deste Brasil a não traírem o Direito, como no grande exemplo do juiz do trabalho e doutrinador alemão Hans Karl Nipperdey (Os juristas que não traíram o direito — ainda a reforma trabalhista). O mais incompreensível nisso tudo são aqueles que se dizem “técnicos” e estão simplesmente a parafrasear as “tecnicidades” intrínsecas dos dispositivos advindos com nova lei e sua medida provisória, como se a jurisdição constitucional não fosse a “técnica” por excelência que justifica o caráter científico do Direito[1].

Pois bem, por ocasião da XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, onde tive o privilégio de palestrar sobre Direito de Defesa, Exposição Pública do Suspeito e Publicidade Opressiva, estava ouvindo um programa de rádio (Rede Brasil Atual de São Paulo – FM 98,9) e uma das interessantes abordagens jornalísticas eram perguntas nas ruas sobre temas da reforma trabalhista. O tema da vez era o contrato intermitente. A jornalista indagou o que o transeunte pensava a respeito. Categórico, o rapaz disse que era bom porque poderia diferenciar os “bons” dos “maus” trabalhadores e daria mais dinheiro para aqueles que se dedicassem mais. A jornalista então lhe provocou a reflexão ao indagar o que achava da possibilidade de um trabalhador intermitente auferir menos que salário mínimo e ainda “poder” arcar com as contribuições previdenciárias sobre a diferença não recebida para atingir o salário mínimo como base de cálculo do salário-de-contribuição. O entrevistado respondeu algo como ônus e bônus, que esse seria um ponto negativo, mas que “faz parte”.

Hum hum! Liberal-individualismo na veia hein! Os meios de comunicação de massa, não que esse seja o caso da mencionada rádio, conseguem criar o senso comum do tal “mérito individual”, do tal “empreendedorismo”. Volta e meia surgem aqueles exemplos do cara que se superou e construiu uma riqueza por “méritos próprios”, como flor de lótus. Também em São Paulo, vários dos canais religiosos encampam a teologia da prosperidade: seja fiel e prospere no mercado... E por aí vai! Obviamente que é de extrema importância criar um ambiente favorável ao empreender e ter sua individualidade respeitada e fomentada. O “detalhe” é que a Constituição empreende uma perspectiva humanista, solidária e pluralista. Os “vagabundos” também são titulares do direito a uma vida digna, queiramos ou não. Não há espaço para repristinar a contravenção penal de vadiagem ou mendicância (o artigo. 60 da Lei das Contravenções Penais foi revogado pela Lei 11.983/09).[2]

Sigo. No tópico propriamente dito do contrato intermitente, é preciso (necessário e certeiro) ter em mente que não adianta ficarmos podando galhos de uma árvore cuja raiz está podre. Para ser mais claro, é flagrante a inconstitucionalidade do núcleo desse instituto de contrato intermitente, sendo ineficiente conjecturar cada uma de suas especificidades. E somente reforçou essa perspectiva o advento das mudanças na Lei 13.467/17 pela Medida Provisória 808/17. Nem há necessidade de abordarmos aqui o insucesso de políticas econômicas de precarização trabalhista, como nos casos do México ou da Espanha. Note-se que isso é economia comparada e aqui os marcos de construção interpretativa são jurídicos, delineados pelo Direito vigente no país, a começar pela Constituição de 1988.

A Constituição da República brasileira tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e os valores sociais da livre iniciativa (artigo 1º, incisos II, III e IV). O núcleo do fundamento inscrito no referido inciso IV são os valores sociais, e não propriamente o trabalho e a livre iniciativa. A importância disso é superar o vislumbre dicotômico entre essas duas realidades. Desse modo, ambos se concretizam com fidelidade à Constituição de 1988 quando embebidos da e na valorização social, ou seja, na realização do bem-estar social, do ideal de vida boa. Mas o que significa valorizar-se socialmente? Significa realizar a dignidade da pessoa humana nas esferas do trabalho e da livre iniciativa, quando ambos se inter-relacionarem em uma circularidade virtuosa. E os caminhos estratégicos para tanto foram circunscritos na Constituição de 1988.

Com efeito, há inicialmente uma ênfase constitucional na perspectiva subjetiva dos trabalhadores, quando a Constituição de 1988 arrola os direitos fundamentais de sua titularidade no artigo 7º, cujo caput instaura o princípio proteção suficiente na perspectiva do trabalho humano, uma proteção nem excessiva nem deficiente, com direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores. Também importante é a abordagem constitucional transformativa na ordem econômica, cuja finalidade é assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social com a busca do pleno emprego (artigo 170), bem como na ordem social, cuja base é o primado do trabalho com objetivo de bem-estar social e justiça social (artigo 193).

Esses elementos não são mera retórica constitucional. Na verdade, trata-se de dispositivos vinculantes da atuação pública tanto quanto da atuação privada na sociedade brasileira pós-1988, a começar pelo Legislativo e pelo Executivo. Sem mais rodeios, não passa por uma filtragem constitucional a intenção reformista legislada de promover o contrato intermitente pela Lei 13.467/17 com as pinceladas da Medida Provisória 880/17 (e aqui abstraio da inconstitucionalidade ab ovo da referida Medida Provisória). Fica nítido na reforma que o contrato de trabalho intermitente foi concebido para a precarização dos meios de contratação de trabalhadores com intento estatístico de propagandear falsamente um incremento do emprego no Brasil. E aqui cabe invocar a vedação ao retrocesso social, na esteira do que já referi na coluna E o filósofo perguntou: por que americanos não vêm curtir nossa CLT?.

De uma vez por todas, saibam os austeros reformistas trabalhistas que emprego precário não é verdadeiro emprego nem se computa (ou nem deveria se computar...) como plenitude para as estatísticas de plantão. A busca do pleno emprego consagrada na Constituição de 1988 não se limita a uma abordagem quantitativa da geração de empregos, mas também abrange uma dimensão qualitativa do emprego gerado. Para ser emprego, deve ele ser pleno tal como instaurado na Constituição de 1988. A plenitude do emprego abarca, nesse sentido, a realização dos direitos subjetivos dos trabalhadores, por exemplo, aqueles arrolados no artigo 7º, dentre os quais o salário mínimo (IV) e a sua garantia para aqueles que recebam remuneração variável (VII).

À luz da Constituição de 1988, não há relação de emprego em qualquer hipótese infraconstitucional em que não garantido o recebimento mensal do salário mínimo. Cindir o direito fundamental ao salário mínimo como se fosse algo a ser medido em horas ou dias é afrontar a máxima efetividade como princípio inerente à fundamentalidade material, em afronta à dignidade da pessoa humana porque lhe atribuindo os riscos diários de garantia de um mínimo de subsistência. Quando o artigo 7º dispõe sobre salário mínimo, ele o faz numa perspectiva transindividual de periodicidade mensal para dar previsibilidade à vida dos trabalhadores na realização de suas diferentes atividades diárias (não apenas trabalho, mas também lazer, convivência social e familiar, etc.). Tanto é assim que nenhum benefício que substitua o salário-de-contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado da Previdência Social terá valor mensal inferior ao salário mínimo (Constituição de 1988, artigo 201, §2º).

Nesse sentido, chegam a ser perversas as previsões consagradas na Medida Provisória 880/17. É como se uma pessoa que ganha menos que um salário mínimo pudesse ainda arcar com contribuições previdenciárias sobre a diferença “entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal” (artigo 911-A, §1º). Mais que isso, se não houver o recolhimento complementar sobre a mencionada diferença, o respectivo mês “não será considerado para fins de aquisição e manutenção de qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social nem para cumprimento dos períodos de carência para concessão dos benefícios previdenciários” (artigo 911-A, §2º). Salta aos olhos que o contrato intermitente não consagra uma relação de emprego em sua plenitude, ou melhor, de relação de emprego não se trata quando se fala em contrato intermitente.

A Medida Provisória 880/17 chegou ao cúmulo, em caso de extinção do contrato intermitente, de prever o pagamento pela metade da indenização do período de aviso-prévio e do acréscimo de 40% do FGTS, de limitar o levantamento dos depósitos de FGTS em até 80% e de excluir o direito fundamental ao seguro-desemprego (artigo 452-E). A inconstitucionalidade é tamanha que chego a ficar surpreso com tanta desfaçatez. Trata-se de direitos fundamentais dos trabalhadores (Constituição de 1988, artigo 7º, incisos I, II e III) que devem ser garantidos e realizados com máxima efetividade e em total consonância com o princípio da igualdade material (Constituição de 1988, artigo 5º, caput, e artigo 7º, incisos XXX a XXXII). Mas a Medida Provisória 880/17 apenas seguiu a mesma lógica inconstitucional da Lei 13.467/17, de modo que minha surpresa é infundada por óbvio.

É curioso que o § 5º do artigo 452-A da CLT prevê que o “período de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes”. Estar inativo nunca significou estar alheio à jornada de trabalho. É um dos conceitos mais antigos do direito do trabalho que o período inativo à disposição do empregador também caracteriza jornada de trabalho, tanto que os austeros reformistas trabalhistas não chegaram ao absurdo de derrogar o artigo 4º da CLT, segundo o qual “serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens”. Noutras palavras, o fato caracterizador da jornada de trabalho é o empregado estar à disposição do empregador, ainda que esteja em inatividade no aguardo de ordens do empregador.

E também nessa perspectiva há violação de direito fundamental, na medida em que a jornada de trabalho é um direito fundamental dos trabalhadores arrolado no inciso XIII do artigo 7º da Constituição de 1988. Como o tempo de inatividade à disposição do empregador integra a jornada de trabalho, não pode uma lei infraconstitucional excluir referido período em detrimento do mencionado direito fundamental. E deve ficar claro que o período de inatividade à disposição do empregador integra o núcleo do referido direito fundamental, de modo que é indiferente haver ou não essa definição em um texto infraconstitucional. Com efeito, se a liberdade de disposição do trabalhador para fazer o que bem entenda resta limitada no aguardo de ordens porque direcionada a sua disponibilidade para o empregador, o princípio é que deve esse período integrar a jornada de trabalho.

E, mais que isso, o contrato intermitente acaba por violar o direito fundamental à “proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa” (Constituição de 1988, artigo 7º, X). Simples assim. Os austeros reformistas trabalhistas acabaram por institucionalizar uma espécie de retenção dolosa do salário, na medida em que não haverá contraprestação da efetiva jornada de trabalho quando o trabalhador estiver em inatividade à disposição do tomador dos serviços. Trata-se de uma frontal desproteção do salário na forma da Lei 13.467/17.

Aliás, a previsão do § 5º do artigo 452-A da CLT é tão esdrúxula que chega a dizer que o trabalhador intermitente poderá prestar serviços a outros contratantes. Bingo. É cômica a previsão porque os austeros reformistas propagandeiam a defesa da liberdade, mas chegam ao cúmulo de “permitir” aos cidadãos a prestação de serviços a mais de um tomador. A exclusividade não é nem nunca foi um requisito ou elemento caracterizador da relação de emprego, do tipo: “ups! não era exclusivo, logo não era empregado”. Não havia qualquer necessidade de uma previsão desse jaez. É surpreendente que a Lei tenha sido engendrada por autodenominados “especialistas” na área do trabalho.

Finalmente, como um tópico ineficiente de abordagem, lembro a questão das férias, direito fundamental assegurado no inciso XVII do artigo 7º da Constituição de 1988. Ali está previsto o direito ao “gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal”. O § 9º do artigo 452-A da CLT prevê que “cada doze meses, o empregado adquire direito a usufruir, nos doze meses subsequentes, um mês de férias, período no qual não poderá ser convocado para prestar serviços pelo mesmo empregador”. Note-se como prepondera a perspectiva liberal-individualista nessas previsões. Não interessa aos austeros reformistas trabalhistas se o trabalhador terá ou não efetivo gozo das férias; afinal, ele que decida se vai ou não as gozar.

Essa questão das férias é mais uma flagrante inconstitucionalidade que afronta a máxima efetividade e a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais. As férias não encerram direito meramente individual. Envolvem o descanso do trabalhador para recuperação de suas forças, para convívio familiar e social, para lazer, para turismo, para diminuição de acidentes e doenças ocupacionais, dentre outras abordagens transindividuais. E aqui vem à tona a total ausência de prognose legislativa e de uma vinculação do legislador à estratégia socioeconômica imposta pela Constituição de 1988.

A vingar o contrato intermitente, teremos um verdadeiro estado de exceção na área trabalhista com reflexos em diferentes frentes, inclusive no incremento da violência urbana. Nossa Constituição de 1988 é solidária e humanista, não adota a filosofia do “cada um por si e alguma entidade metafísica por todos”. Em alguma medida, não deixo de atribuir razão àqueles que enfatizam um certo desgosto ao abordarem as inconstitucionalidades da reforma trabalhista (como no caso da perspectiva marxista, com a qual tenho profunda discordância). É realmente cansativo dizer tantas vezes o óbvio e lembrar outras tantas vezes aquilo que está escrito na Constituição de 1988. Mas esse é o ônus do jurista que não trai o Direito em tempos de obscuras legislações: fortalecer a barreira de contenção implementada na Constituição de 1988 quando reacionários movimentos de estado de exceção trazem à luz o retrocesso social.

Peço desculpas, de todo modo, por tratar dessa coisa fora de moda: o Direito. E a Constituição. Só sei fazer isso.



[1] E, neste ponto, não posso deixar de tecer considerações sobre recente texto de Valdete Souto Severo (Há caminhos para resistir à “reforma” trabalhista?) e o faço com toda a lhaneza. Sei que a referida jurista – minha estudiosa ex-aluna - integra o Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC), da USP, liderado pelo ilustre professor Jorge Luiz Souto Maior. Note-se que muitas das abordagens do GPTC/USP estão apegadas à Constituição e meus textos sobre a reforma trabalhista inclusive remetem às suas produções. Todavia, não posso deixar passar em branco minha profunda discordância com essa abordagem que coloca o Direito em segundo plano, a reboque da política e da economia. Trata-se de exemplo de predador endógeno do Direito. No referido texto, a juíza, Dra. Valdete, chega a dizer que não basta abordar as inconstitucionalidades da lei e que o cerne da questão não é jurídico. O texto dá a entender que o problema é a opção econômica capitalista e que poderíamos construir as bases para a superação do sistema do capital. Se é assim, pois, então, o que nos resta? Fechar as faculdades? Extinguir o Judiciário?


[2] É crescente o número de mendigos na capital paulista, onde realizei a palestra e onde foi a entrevista do transeunte na rádio. A solução seria eliminar os mendigos? Aliás, foram um tanto surpreendentes a carta dos procuradores da república e um dos líderes da trupe de justiceiros, Deltan Dallagnol, ao conclamar a população para a “batalha final” em 2018. Lembrei na hora da “solução final” engendrada pelos nazistas. Vão mandar os corruptos para campos de concentração? Não é à toa que procurador da República disse que o nazismo foi socialista porque o partido de Hitler chamava-se nacional-socialista. Ignorou que se tratava de propaganda enganosa no melhor estilo Goebbels. Hitler odiava comunistas e marxistas, basta ler o Mein Kampf; seu combustível era o ódio e nada além disso. Comunistas e marxistas foram mortos nos campos de concentração nazistas.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

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