terça-feira, 5 de novembro de 2024

A tragédia do capitalismo sem o estado para o controlar, por Luís Nassif

 

Nova etapa do capitalismo será um retorno aos primórdios da civilização industrial e o único setor público a crescer será a segurança pública.




GGN. - O tema de um mundo distópico dominado pelo grande capital, no qual as classes pobres enfrentam obstáculos invencíveis para chegar a uma outra dimensão – para conseguir cuidados médicos – está prestes a se tornar realidade.

Em 2013, foi lançado “Elysium”, dirigido por Neil Blomkamp, filme onde os ricos vivem em uma estação espacial luxuosa, com acesso a todos recursos médicos e tecnológicos, enquanto os pobres permanecem na terra, em condições miseráveis.

Bem antes, em 1927, foi lançado “Metrópolis”, de Fritz Lang, um clássico do cinema que retrata uma cidade futurista dividida entre uma elite que vive em arranha-céus luxuosos e trabalhadores que vivem em condições miseráveis no subsolo.

A eleição de Donald Trump poderá permitir a Elon Musk colocar em prática sua “Comissão de Eficiência do Governo” e transformar a ficação em realidade.

Os negócios de Musk


A grande especialidade de Musk são os negócios com o governo. No ano passado, a SpaceX, empresa de tecnologia aeroespacial e digital de Musk, tinha contratos com dezesseis agências diferentes, desde a NASA e o Departamento de Defesa até o Departamento do Interior. 

As empresas de Musk já receberam US$ 3 bilhões em quase cem contratos diferentes, apenas no ano passado, a tiveram acesso a US$ 15,4 bilhões de financiamento governamental na última década.

Ao mesmo tempo, suas empresas respondem por uma série de incidentes da má conduta, no campo trabalhista e do consumidor. É alvo de pelo menos vinte investigações, segundo levantamento feito pelo The New York Times.

Dias atrás, Musk anunciou que haveria, com seu trabalho, de assessoria a Trump, um mal-estar profundo e imediato e, depois, o país ingressaria em uma nova era. As afirmações trouxeram de imediato a suspeita de que as loucuras de Javier Milei, na Argentina, podem ser um laboratório para a nova etapa da financeirização, na qual o Estado simplesmente seria abolido e todas as atividades assumidas pelos grandes grupos empresariais.

A lógica de Milei é, inicialmente, uma desconstrução total, jogando a população em um buraco profundo. Depois, cada melhoria incremental, pós-terremoto, serviria para angariar apoio e “acostumar” a população à nova ordem.

Segue a lógica da financeirização e da criação das big techs e da etapa atual da financeirização, avançando sobre todos os serviços públicos – como demonstra Tarcísio de Freitas em São Paulo.

A nova etapa do capitalismo será um retorno aos primórdios da civilização industrial, no qual o único setor público a crescer será o da segurança pública. Não haverá limites para a exploração da mão-de-obra. 

O mundo ocidental está às vésperas da maior hecatombe social da história.

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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

As entranhas do capitalismo, por Ladislau Dowbor

 

No controle da revolução digital, o capital avança à sua fase financista, em que concentra a riqueza em escala jamais vista – sem produzir nada. Para os 99%, trabalho precário e desalento. Governança segue analógica, de mãos atadas e local

Imagem: fotograma de The Invitation

Por Ladislau Dowbor para o Meer | Tradução: Maurício Ayer

O Dicionário de Cambridge define a mais-valia como “a diferença entre o valor que um trabalhador recebe e o valor que o trabalhador acrescenta aos bens ou serviços produzidos”. Não é preciso ser marxista para entender que os altos lucros obtidos com baixos salários levam à exploração e ao crescimento desequilibrado. Essa ainda é uma questão crucial, pois o ciclo econômico exige não apenas produção, mas também poder de compra para que os bens e serviços possam ser vendidos. Na tradicional economia industrial do século 20, um equilíbrio razoável foi alcançado através do New Deal nos EUA e do Welfare State em alguns países, basicamente do Norte Global, com políticas públicas equilibrando interesses por meio de tributação progressiva e provisão de bens e serviços públicos. Esse equilíbrio foi derrubado pela extração de riqueza atualmente dominante por meio do rentismo, ou geração improdutiva de riqueza, acima e muito além da mais-valia tradicional. Chamamos isso de neoliberalismo, mas não há nada de liberal nessa história.

Um desafio importante é considerar até que ponto os novos mecanismos de apropriação de riqueza representam uma mudança sistêmica. A escravidão como sistema era caracterizada pela extração de riqueza por meio do controle brutal e da propriedade dos humanos, fazendo com que os escravos trabalhassem para seus donos. Lembremos que não é algo distante, no Brasil foi formalmente abolida no final do século XIX, e subsistiu como prática ilegal até o século XX, também nos EUA, já na era capitalista moderna. O capitalismo não se importa em usar o controle pré-capitalista da força de trabalho. O feudalismo também representou um sistema, consistindo basicamente em uma era de riqueza baseada na agricultura, controle da terra através de feudos e controle dos trabalhadores através da servidão. O apartheid na África do Sul também foi um sistema, com africanos confinados em territórios delimitados, autorizados a ganhar um salário se tivessem um “passe”, levando a uma curiosa mistura de mineração, indústria e serviços modernos e exclusão territorial. O mundo capitalista não se importou com esse sistema, que aliás ainda funciona na Palestina.

O atual capitalismo financeirizado representa um novo sistema, um “modo de produção” no sentido sistêmico? Marx estudou o mecanismo financeiro e o chamou de “capital fictício”, na medida em que seus ganhos dependiam de um segundo nível de extração, tirando parte dos lucros por meio de juros. Mas era um mero complemento da lógica industrial dominante. Na era atual do que se convencionou chamar de neoliberalismo, François Chesnais atualizou a discussão ao mostrar quão dominante o sistema de intermediação financeira havia se tornado, a ponto de mudar a lógica geral do capitalismo, o que ele chamou de “totalidade sistêmica”, baseada no rentismo e globalização financeira. O que vemos nos últimos anos é uma explosão de estudos sobre o funcionamento desse novo sistema, que, na verdade, pouco tem a ver com a tradicional acumulação de capital e apropriação de mais-valia que ainda ensinamos em nossas universidades. O que estamos enfrentando representa sim uma mudança sistêmica, um outro “modo de produção”, envolvendo a base tecnológica, as relações sociais de produção, a forma de apropriação da riqueza e o quadro institucional.

Robert Reich nos traz à realidade, sobre a origem dos grandes lucros: “Nas décadas de 1950 e 1960, quando a atividade bancária era uma coisa chata, o setor financeiro respondia por apenas 10 a 15% dos lucros corporativos dos Estados Unidos. Mas a desregulamentação tornou as finanças não só empolgantes como extremamente lucrativas. Em meados da década de 1980, o setor financeiro reivindicava 30% dos lucros corporativos e, em 2001 – época em que Wall Street havia se tornado uma gigantesca casa de apostas na qual a casa recebia uma grande parcela das apostas –, reivindicava impressionantes 40%. Isso foi mais de quatro vezes os lucros obtidos em toda a indústria dos EUA.”1. Não são lucros baseados na produção, mas na intermediação financeira e na especulação.

Enquanto Davos afirma que estamos na era da Indústria 4.0, na verdade, estamos na era do rentismo financeiro improdutivo, mas também de outras formas de apropriação improdutiva da riqueza social, inclusive dos bens comuns. Brett Christophers vai direto ao ponto essencial: “Os lucros têm assumido cada vez mais a forma de rentas econômicas – incluindo, entre outras, rentas financeiras – em vez de renda do comércio ou da produção de commodities.” Rentismo e lucro são radicalmente diferentes: “A definição de renta (rent) que uso aqui, então, é efetivamente um híbrido de heterodoxo e ortodoxo: renta derivada da propriedade, posse ou controle de ativos escassos em condições de concorrência limitada ou inexistente”.2 Se a forma dominante de apropriação da riqueza não é mais “comércio e produção de mercadorias”, isso é capitalismo? Com a revolução industrial, o setor agrícola continuou sendo importante para a economia, mas a reestruturação da sociedade como um todo atendeu aos interesses do desenvolvimento industrial e gerou um novo modo de produção. Como está a transformação atual?

A revolução digital é tão profunda em termos de transformação da nossa sociedade quanto foi a revolução industrial há dois séculos. Está transformando a principal forma de apropriação da riqueza por meio da renta de ativos improdutivos, em vez do lucro de atividades produtivas. E as relações trabalhistas estão migrando de sistemas regulares de salários e benefícios sociais seguros para numerosos contratos flexíveis, precariados e empregos informais. Quanto ao quadro institucional, estamos migrando de uma regulamentação de base nacional para uma tomada de poder corporativa global. O controle social, por sua vez, passa do trabalho organizado, com sindicatos e negociações, para um processo global de vigilância e manipulação por meio de algoritmos e de informações e marketing orientados pelo comportamento.

O mais alto poder emergente já não está nas mãos de empresas como a Ford ou a Toyota, mas de plataformas de comunicação e intermediação como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft (GAFAM), ou plataformas de gestão de ativos financeiros como BlackRock, State Street, Vanguard ou Crédit Suisse/UBS, para citar apenas algumas. O papel do Estado não é mais garantir o equilíbrio geral, mas sim cavar um lugar melhor para o país, no jogo de interesses globais que ele não controla. Chamamos isso de “amigável ao mercado” (market-friendly), embora tenha pouco a ver com a tradicional competição de livre mercado. E temos plataformas globais, incluindo o mundo financeiro, mas nenhuma governança global.

Colocamos essa questão há dois anos, em um artigo chamado It is not a tiger anymore: capitalism woes [Não é mais um tigre: os problemas do capitalismo]. Em vez de apontar para as listras que mudam no tigre, devemos dar um passo atrás e considerar se ainda se trata de um tigre. Como na lógica tradicional, uma certa quantidade de mudanças quantitativas acaba levando a uma transformação qualitativa. Podemos usar o paralelo da Revolução Francesa: em 1789, a indústria, o comércio e os bancos já pressionavam por espaço político, enquanto os aristocratas dançavam em Versalhes. Em expressões atuais, a economia está na era digital, enquanto os fragmentados 193 governos nacionais ainda estão na era analógica. A nova economia não se encaixa no quadro institucional e o resultado é um caos global de alta tecnologia.3

Tantas instituições e pesquisadores preocupados têm gritado o mais alto que podem, apontando para os dramas resultantes. Um exemplo é o número trágico de meninas e mulheres adolescentes em idade reprodutiva: “Mais de 1 bilhão de meninas adolescentes e mulheres sofrem de desnutrição (incluindo baixo peso e baixa estatura), deficiências em micronutrientes essenciais e anemia, com consequências devastadoras para suas vidas e bem-estar.”4 Isso tem consequências catastróficas tanto para as mães quanto para as crianças. Como toleramos isso? Tomando apenas o exemplo da produção mundial de cereais, os 2.774 milhões de toneladas em 2022 significam que produzimos 1 kg por habitante por dia. Uma ração completa de consumo diário adulto de arroz, para dar uma referência, é de 180 gramas. Este é apenas um exemplo. Temos todos os números sobre as mudanças climáticas e podemos até assistir às catástrofes na TV. Os dramas da biodiversidade são apresentados em muitos relatórios. O plástico está em toda parte, e essa é apenas uma dimensão mais visível da poluição global: as corporações o produzem, embolsam os lucros, mas descartam qualquer responsabilidade pelo que acontece depois. Contaminação do solo, destruição de florestas originais no Brasil, Indonésia e Congo, a lista não termina. Olhamos para os dramas que se aprofundam e, caramba, já está na hora de levar as crianças para a escola… Dramas globais e desamparos individuais, o curto prazo se sobrepõe aos desafios estruturais, e vamos cuidar da vida.

A questão, obviamente, é que para além dos dramas temos que olhar para a governança, ou para a ausência de governança, que os gera e nos impede de revertê-los. Quer se chame de “novo contrato ecossocial” como nos relatórios da ONU, ou “green new deal” em tantas organizações sociais, ou “novas regras para o século XXI” nos escritos de Stiglitz, o fato é que o principal desafio está na criação das instituições que nos permitam enfrentar as tendências mais desastrosas.

A ideia é que devemos parar de nos agarrar a discussões ideológicas obsoletas sobre capitalismo/socialismo, ou estado/mercados, e levar a nossa construção de consensos aos meios práticos de enfrentar as questões-chave. Muitos deles são globais e não temos um processo de tomada de decisão global. Dani Rodrik, ao discutir a fratura tecnológica global, dimensão importante de nossos desafios, sugere que devemos usar os mecanismos de governança que temos, que são os governos nacionais e locais, para gerar os pactos regionais e globais necessários. “A cooperação regulatória transnacional e as políticas antitruste podem produzir novos padrões e mecanismos de aplicação. Mesmo onde uma abordagem verdadeiramente global não é possível – porque países autoritários e democráticos têm divergências profundas sobre privacidade, por exemplo – ainda é possível que as democracias cooperem entre si e desenvolvam regras conjuntas.”5 No Brasil, temos trabalhado em uma abordagem local de baixo para cima, propondo a descentralização, e ela é promissora. Mas nada disso atinge a escala da deformação sistêmica que estamos enfrentando.

Temos problemas globais, mas governos em nível nacional, finanças especulativas em vez de investimento produtivo, busca de renta em vez de lucros em insumos socialmente úteis, comunicação baseada em comportamento em vez de informações honestas, e narrativas em vez de transparência. Mas, acima de tudo, temos sistemas de governança empacados no passado analógico, perdidos no turbilhão da nova revolução digital e no novo conjunto de desafios. Os conflitos estão aumentando em todos os lugares, mas as soluções não estão apenas no nível nacional. Este é um novo sistema, gerado pela revolução digital, e devemos nos concentrar nas questões de governança que a ele correspondem. A Economia guiada por missões, tal como Mazzucato apresenta a questão, parece uma abordagem razoável. Para o Brasil, sistematizei propostas no texto Resgate da função social da economia: uma questão de dignidade humana. Quão fundo devemos afundar no caos global antes que surja energia política suficiente para a mudança?

Notas

1 Robert Reich, The real story behind the Silicon Valley Bank debacle, Newsletter, March 13, 2023.
2 Brett Christophers – Rentier capitalism: who owns the economy and who pays for it?, London, Verso, 2020, pages 5 and xxiv. (Traduzimos aqui rent por renta, diferente de renda, tal como em inglês rent é diferente de income, e em francês rente é diferente de revenu.)
3 UNRISD –Crises of inequality: shifting power for a new eco-social contract.
4 UNICEF,Undernourished and underfed – 2023 Report.
5 Dani Rodrik,The coming global technology fracture, IPS, 21 September 2020.

As causas reais do declínio do Ocidente. Artigo de Owen Jones, jornalista britânico

 

Discurso conservador aponta “falência moral”. Mas em nome da liberdade, Estado Social foi destroçado e as condições de vida caem em 90% dos países. Novos modelos de celular não mascaram o desespero, nem o colapso da democracia


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Por Owen Jones em The Guardian | Tradução: Maurício Ayer

Se existe algo como uma marcha avante do progresso humano, ela não apenas parou, como está dando marcha à ré. No outono passado, um relatório da ONU, que foi pouco discutido, observou que o índice de desenvolvimento humano havia diminuído em 90% dos países por dois anos consecutivos, uma queda sem precedentes por mais de três décadas. A pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia tiveram um papel, mas a queda também foi consequência de “grandes mudanças sociais e econômicas, mudanças planetárias perigosas e avultamentos maciços na polarização política e social”.

Talvez você esteja familiarizado com essa conversa de “declínio do Ocidente”: tende a ser uma pauta da direita reacionária, que culpa, de várias maneiras, a decadência moral, o multiculturalismo e uma reavaliação da história da Europa por nossa queda. Mas certamente a culpa nessa história não é dos direitos das minorias, da diversidade ou do reconhecimento dos crimes do Ocidente. Nossa sorte coletiva virou dramaticamente. E esta virada foi produzida por um sistema econômico que prometeu liberdade pessoal, mas em vez disso trouxe insegurança em larga escala, e que nos prejudicou de todas as formas concebíveis, desde nosso bem-estar emocional e físico até as circunstâncias materiais em que vivemos.

Tome uma medida básica: vida e morte. O governo do Reino Unido foi forçado a atrasar o aumento da idade da aposentadoria pelo Estado após uma queda na expectativa de vida sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Embora certamente o índice tenha piorado com a pandemia, a expectativa de vida já vinha decaindo em muitas comunidades inglesas anos antes da covid chegar às nossas costas. Nos EUA, a expectativa de vida diminuiu de quase 79 anos, em 2019, para 76 dois anos depois, a maior queda em um século.

E os sintomas mórbidos de uma crise de bem-estar estão por toda parte. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, a taxa de suicídio aumentou 30% nos primeiros 20 anos do século XXI. No mesmo passo em que a “guerra às drogas” recrudesceu, também aumentaram as mortes por abuso de substâncias: nos EUA, elas cresceram exponencialmente desde a década de 1970, ajudando a impulsionar a queda na expectativa de vida, enquanto no Reino Unido atingiram seu nível mais alto desde que os registros começaram. Karl Marx certa vez descreveu a religião como o “suspiro da criatura oprimida”: hoje essa é uma descrição mais adequada para a dependência em drogas, impulsionada pela automedicação dos aflitos por traumas e miséria. De fato, é difícil atravessar ileso o salto global na incidência de depressão, cujos números aumentaram em quase um quinto entre 2005 e 2015, e também aumentaram entre os adolescentes dos EUA.

Observando os escombros deixados pela guerra mais sangrenta da humanidade há quase um século, um cidadão da Europa Ocidental em 1945 teria ficado agradavelmente surpreso ao descobrir que os anos mais prósperos da história os aguardavam. Tal foi o aumento sem precedentes nos padrões de vida no Ocidente nas três décadas após a guerra, que foram batizadas de “Anos dourados”; para os franceses foram os “30 anos gloriosos”. No Reino Unido, houve uma queda particularmente acentuada nos salários na década de 2010, e em todo o mundo ocidental houve estagnação. Antes da pandemia, o poder de compra dos trabalhadores estadunidenses havia quase não tinha mudado por quatro décadas.

É fácil se deixar levar pela ilusão de que o dramático progresso ainda está acontecendo. Os chips de computador ficam cada vez menores; processadores de computador cada vez mais rápidos; os celulares cada vez mais dinâmicos. Mas o avanço tecnológico não se traduz automaticamente em melhorias na condição humana. Em grande parte do Ocidente, a estagnação e o declínio se tornaram a característica definidora de nossa era. Se você quer entender por que a política ficou mais raivosa e polarizada, não procure explicações fáceis, como o comportamento argumentativo fomentado pelas mídias sociais. Um grande experimento está em andamento há mais de uma geração: e se você cortar o otimismo das sociedades ricas que antes consideravam que a chegada de padrões de vida cada vez maiores era algo garantido?

A ascensão do “livre mercado”, tal como nos foi prometido, deveria desencadear prosperidade sem fim. Mas enquanto a tão demonizada era de sindicatos fortes, nacionalização e Estados de bem-estar social em expansão trouxe a maior melhora nos padrões de vida da história, nosso modelo econômico atual está se decompondo ao nosso redor: o fedor está se tornando mais difícil de ignorar. Em ambos os lados do Atlântico, o crescimento econômico caiu desde que se recuaram as fronteiras do Estado, e esse crescimento mais limitado tem maior probabilidade de ser tragado para as contas bancárias dos ricos dourados.

Como isso explica, digamos, a queda na expectativa de vida causada pelo aumento do uso de opiáceos nos Estados Unidos? Sabemos que o desaparecimento de empregos seguros e bem pagos criou as condições de miséria em que a dependência química prospera. A crescente desigualdade ajudou a estimular a deterioração da saúde mental: taxas de depressão estão correlacionadas com baixa renda, por exemplo. Desde o colapso geracional na construção de moradias públicas até a dizimação da assistência social, a segurança que sustenta uma existência humana confortável foi eliminada.

E, no entanto, essa interrupção no progresso humano quase não é mencionada, muito menos debatida. No momento em que nossa civilização enfrenta múltiplos desafios existenciais, com que rapidez a estagnação e o declínio podem se tornar uma queda livre. Você não precisa de uma imaginação hiperativa para ponderar as possíveis consequências brutais, especialmente se os políticos progressistas não oferecerem respostas convincentes. Nossas vidas estão encurtando, nosso bem-estar está diminuindo, nossa segurança sendo desmantelada. Estas são as condições de desespero… e uma amarga colheita desponta no horizonte.

A estranha luta de classes nas eleições dos EUA. Artigo de Chris Hedges

 No coração de um sistema em crise, duas facções dominantes estão em choque. Uma é corporativa e “domesticada”; outra, mafiosa. Ambas praticam o rentismo, odeiam a democracia e querem a guerra. Roteiro para entender o que está em jogo

Ilustração: Lindsey Bailey/Axios. Fotoa: Andrew Caballero-Reynolds, Andrew Harnik via Getty Images

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Por Chris Hedges, em seu blog | Tradução: Antonio Martins

A escolha nas eleições norte-americanas é entre o poder corporativo e o poder oligárquico. O poder corporativo precisa de estabilidade e de um governo tecnocrático. O poder oligárquico prospera no caos e, como diz Steve Bannon, na “desconstrução do Estado administrativo”. Nenhum dos dois é democrático. Ambos compraram a classe política, a academia e a imprensa. Ambos são formas de exploração que empobrecem e desempoderam a população. Ambos canalizam dinheiro para as mãos da classe bilionária. Ambos desmantelam regulamentações, destroem sindicatos, cortam serviços públicos em nome da austeridade, privatizam todos os aspectos da sociedade, desde a infraestrutura até as escolas, perpetuam guerras permanentes, incluindo o genocídio em Gaza, e neutralizam uma mídia que deveria, se não fosse controlada por corporações e ricos, investigar seu saque e corrupção. Ambas as formas de capitalismo dilaceram o país, mas o fazem com ferramentas diferentes e têm objetivos diferentes.

Kamala Harris, ungida pelos doadores mais ricos do Partido Democrata sem receber um único voto nas primárias, é a face do poder corporativo. Donald Trump é o mascote bufão dos oligarcas. Esta é a divisão dentro da classe dominante. É uma guerra civil interna ao capitalismo que se desenrola no palco político. O público é pouco mais do que um adereço em uma eleição onde nenhum dos partidos avançará os interesses ou protegerá os direitos das maiorias.

George Monbiot e Peter Hutchison, em seu livro Invisible Doctrine: The Secret History of Neoliberalism [“Doutrina invisível – A história secreta do neoliberalismo”, ainda sem tradução para o português”], referem-se ao poder corporativo como “capitalismo domesticado”. Os capitalistas domesticados precisam de políticas governamentais consistentes e de acordos comerciais sólidos porque fizeram investimentos que demoram às vezes anos para amadurecer. As indústrias de manufatura e agricultura são exemplos de “capitalismo domesticado”. Você pode ler minha entrevista com Monbiot aqui.

O capitalismo de máfias

Monbiot e Hutchison referem-se ao poder oligárquico como “capitalismo das máfias”1. Ele busca a erradicação total de todos os impedimentos à acumulação de lucros, incluindo regulamentações, leis e impostos. Ele gera lucro cobrando rentas, erguendo pedágios para cada serviço de que precisamos para sobreviver e coletando taxas exorbitantes.

Os ídolos políticos do capitalismo das máfias são os demagogos da extrema direita, incluindo Trump, Boris Johnson, Giorgia Meloni, Narendra Modi, Victor Orban e Marine Le Pen. Eles semeiam a dissensão promovendo ideias absurdas, como a teoria da “Grande Substituição”, e desmontando estruturas que proporcionam estabilidade, como a União Europeia. Isso gera incerteza, medo e insegurança. Aqueles que orquestram essa insegurança prometem que, se abrirmos mão de ainda mais direitos e liberdades civis, eles nos salvarão de inimigos fantasmas, como imigrantes, muçulmanos e outros grupos demonizados.

Os epicentros do capitalismo das máfias são as empresas de gestão de ativos [“private equity”]. Fundos como Blackstone, Carlyle, Apollo e Kohlberg Kravis Roberts compram e saqueiam empresas. Acumulam dívidas. Recusam-se a reinvestir. Reduzem drasticamente o quadro de funcionários. Levam intencionalmente as empresas à falência. O objetivo não é sustentar as companhias, mas depená-las como ativos para obter lucro de curto prazo. Os dirigentes dessas empresas, como Leon Black, Henry Kravis, Stephen Schwarzman e David Rubenstein, acumularam fortunas pessoais de bilhões de dólares.

O grupo de apoiadores de Trump no Vale do Silício, liderado por Elon Musk, foi descrito pelo The New York Times como “cansados dos democratas, dos reguladores, da estabilidade, de tudo isso. Eles passaram a optar, em vez disso, pelo caos desenfreado que gera fortunas, algo que conheciam do mundo das startups.” Eles planejavam “implantar dispositivos no cérebro das pessoas, substituir moedas nacionais por tokens digitais não regulamentados, [e] substituir generais por sistemas de inteligência artificial.”

O bilionário Peter Thiel, fundador do PayPal e apoiador de Trump, declarou guerra aos “impostos confiscatórios”. Ele financia um comitê de ação política [“PAC”, nos Estados Unidos] contra impostos e propõe a construção de nações flutuantes, que não imporiam tributos obrigatórios sobre a renda.

A bilionária israelense-americana Miriam Adelson, viúva do magnata dos cassinos Sheldon Adelson, com uma fortuna estimada em US$ 35 bilhões, doou US$ 100 milhões para a campanha de Trump. Embora Adelson, que nasceu e foi criada em Israel, seja uma fervorosa sionista, ela também faz parte do clube dos oligarcas que buscam reduzir impostos para os ricos, impostos que já foram cortados pelo Congresso ou diminuídos por meio de uma série de brechas legais.

O economista Adam Smith alertou que, a menos que a renda dos rentistas fosse fortemente tributada e reinvestida no sistema financeiro, ela seria autodestrutiva.

A destruição orquestrada pelas empresas de gestão de ativos e pelos oligarcas recai sobre os trabalhadores, que são forçados a entrar em uma economia de “bicos” e veem salários estáveis e benefícios serem erradicados. Isso também afeta os fundos de pensão, que são esgotados devido a taxas usurárias ou simplesmente abolidos. Afeta nossa saúde e segurança. Por exemplo: os residentes de asilos que pertencem a empresas de gestão de ativos, estão sujeitos a 10% mais mortes — sem mencionar as mensalidades mais altas — devido à escassez de pessoal e à redução no cumprimento dos padrões de cuidado.

As empresas de gestão da ativos são uma espécie invasora. Também são onipresentes. Adquirem instituições educacionais, empresas de serviços públicos e cadeias de varejo, ao mesmo tempo em que drenam centenas de bilhões em subsídios dos contribuintes, auxiliados por promotores, políticos e reguladores comprados. O que é particularmente revoltante é que muitas das indústrias tomadas por empresas de gestão de ativos — água, saneamento, redes elétricas, hospitais — foram pagas com fundos públicos. Elas canibalizam os países, deixando para trás de si indústrias fechadas e falidas.

Gretchen Morgenson e Joshua Rosner documentam como as empresas de private equity funcionam no livro “These are the Plunderers: How Private Equity Runs-and Wrecks-America“, [“Os que pilham: Como a Private Equity governa e devasta os Estados Unidos”]

“Sempre endeusados pela imprensa financeira por seus acordos, e elogiados por suas doações ‘caritativas’, esses capitalistas sem freitos lançam campanhas de lobby caras para garantir seu próprio enriquecimento contínuo, por meio de leis fiscais favoráveis”, escrevem os autores.

“Doações generosas garantiram a eles posições de poder em conselhos de museus e think tanks. Publicaram livros sobre liderança exaltando ‘a importância da humildade e da humanidade’, no topo enquanto dizimam estes valores na base. Suas empresas organizam-se para que evitem pagar impostos sobre bilhões em ganhos, gerados por suas participações acionárias. E, claro, raramente mencionam que as empresas que possuem estão entre as maiores beneficiárias de investimentos governamentais em rodovias, ferrovias e educação básica, colhendo enormes benefícios de subsídios e políticas fiscais que lhes permitem pagar taxas substancialmente mais baixas sobre seus ganhos”, explicam o livro.

“Esses homens são os barões ladrões da era moderna dos Estados Unidos. Mas, ao contrário de muitos de seus predecessores do século XIX, que acumularam riquezas espantosas extraindo os recursos naturais de uma nação jovem, os barões de hoje extraem sua riqueza dos pobres e da classe média por meio de transações financeiras complexas.” Você pode ver minha entrevista com Morgenson aqui.

O capitalismo “domesticado”

Os capitalistas “domesticados” são representados por políticos como Joe Biden, Kamala Harris, Barack Obama, Keir Starmer e Emmanuel Macron. Mas o “capitalismo domesticado” não é menos destrutivo. Ele aprovou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), a maior traição à classe trabalhadora norte-americana desde o Ato Taft-Hartley de 1947, que impôs restrições debilitantes à organização sindical. Revogou a Lei Glass-Steagall, de controle sobre bancos (de 1933), que separava a banca comercial da banca de investimento. Desmantelar a barreira entre os bancos comerciais e de investimento levou ao colapso financeiro global em 2007 e 2008, provocando a falência de quase 500 bancos. Ele aprovou a eliminação da Doutrina do Tratamento Justo [Fairness Doctrine] pela Comissão Federal de Comunicações sob Ronald Reagan, bem como a Lei de Telecomunicações durante a presidência de Bill Clinton, permitindo que um punhado de corporações consolidasse o controle dos meios de comunicação. Destruiu o antigo sistema de bem-estar, do qual 70% dos beneficiários eram crianças. Dobrou a população carcerária dos EUA e militarizou a polícia. No processo de transferência de indústrias para países como Bangladesh, onde os trabalhadores labutam em condições desumanas, 30 milhões de norte-americanos foram submetidos a demissões em massa, segundo dados compilados pelo Labor Institute. Enquanto isso, acumularam-se déficits massivos — o déficit orçamentário dos EUA subiu para US$ 1,8 trilhão em 2024, com a dívida nacional total se aproximando de US$ 36 trilhões — e negligenciou-se nossa infraestrutura básica, incluindo redes elétricas, estradas, pontes e transporte público. No mesmo período, os EUA gastaram mais com seu exército do que todas as outras grandes potências da Terra juntas.

Essas duas formas são variantes de capitalismo totalitário, ou o que o filósofo político Sheldon Wolin chama de “totalitarismo invertido”. Em ambas as formas de capitalismo, os direitos democráticos são abolidos. O público está sob vigilância constante. Os sindicatos são desmantelados ou neutralizados. A mídia serve aos poderosos, e vozes dissidentes são silenciadas ou criminalizadas. Tudo é transformado em mercadoria, desde o mundo natural até nossos relacionamentos. Movimentos populares e de base são proibidos. O ecocídio continua. A política é uma farsa.

A servidão por dívidas e a estagnação salarial garantem o controle político e a concentração contínua da riqueza. Bancos e financiadores corporativos escravizam não apenas indivíduos endividados, mas também cidades, municípios, estados e o governo federal. O aumento das taxas de juros, aliado à queda das receitas públicas, especialmente por meio da tributação, é uma maneira de extrair os últimos vestígios de patrimônio dos cidadãos, bem como do Estado. Quando indivíduos, estados ou agências federais não conseguem pagar suas contas — e para muitos norte-americanos isso significa frequentemente contas médicas — os ativos são vendidos a corporações ou apreendidos. Terras públicas, propriedades e infraestrutura, juntamente com as aposentadorias, são privatizados. Os indivíduos são expulsos de suas casas e levados ao colapso financeiro e pessoal.

“O chefe da Goldman Sachs declarou que os trabalhadores da corporação são os mais produtivos do mundo”, disse o economista Michael Hudson, autor de Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (“Matando o Hospedeiro: Como Parasitas Financeiros e Dívidas destroem a economia global”, ainda sem tradução em português). “É por isso que eles ganham tanto. O conceito de produtividade nos EUA é renda dividida por trabalho. Por isso, se você é da Goldman Sachs e paga a si mesmo 20 milhões de dólares por ano em salário e bônus, considera-se que você acescentou 20 milhões ao PIB, e isso é considerado enormemente produtivo. Estamos lidando com uma tautologia, com um raciocínio circular.”

“A questão é se a Goldman Sachs, Wall Street e as empresas farmacêuticas predatórias realmente adicionam ‘produto’ ou se estão apenas explorando outras pessoas”, continua Hudson. “É por isso que usei a palavra parasitismo no título do meu livro. As pessoas pensam em um parasita como algo que tira dinheiro, tira sangue de um hospedeiro ou recursos da economia. Mas, na natureza, é muito mais complicado. O parasita não pode simplesmente entrar e tirar algo. Primeiro, ele precisa anestesiar o hospedeiro. Ele tem uma enzima que faz com que o hospedeiro não perceba sua presença. Além disso, o parasita tem outra enzima que toma o controle do cérebro do hospedeiro. Este imagina que o parasita faz parte de seu próprio corpo – na verdade, parte de si mesmo e, portanto, deve ser protegido. Basicamente, é isso que Wall Street fez. Ela se retrata como parte da economia. Não como algo externo, mas como parte que está ajudando o corpo a crescer, e que, de fato, é responsável pela maior parte do crescimento. Mas, na verdade, é o parasita que está tomando o controle do hospedeiro.”

“O resultado é uma inversão da economia clássica”, diz Hudson. “Ela vira Adam Smith de cabeça para baixo. Afirma que o que os economistas clássicos disseram ser improdutivo – o parasitismo – na verdade é a economia real. E que os parasitas são o trabalho e a indústria.”

A weimarização da classe trabalhadora americana é intencional. Trata-se de criar um mundo de senhores e servos, de elites oligárquicas e corporativas empoderadas e uma sociedade desempoderada. E não é apenas nossa riqueza que nos é tirada. É nossa liberdade. O chamado mercado autorregulado, como escreve o economista Karl Polanyi em A Grande Transformação, sempre termina com o capitalismo mafioso e um sistema político mafioso. Um sistema de autorregulação, Polanyi alerta, leva à “demolição da sociedade.”

Se você votar em Kamala Harris ou Trump — eu não tenho intenção de votar em nenhum candidato que sustente o genocídio em Gaza — você estará votando numa forma de capitalismo predatório ou em outra. Todas as outras questões, desde o direito à posse de armas até o aborto, são tangenciais e usadas para distrair o público da guerra civil dentro do capitalismo. O pequeno círculo de poder que essas duas formas de capitalismo encarnam exclui o público. São clubes de elite – cujos membros muito ricos habitam cada um dos lados da cerca e, às vezes, transitam entre ambos. Mas são impenetráveis para outsiders.

A ironia é que a ganância desenfreada dos corporativos, os “capitalistas domesticados”, criou um pequeno número de bilionários que se tornaram sua nêmesis: os capitalistas de máfias. Se o saque não for interrompido, se não restaurarmos o controle sobre a economia e o sistema político por meio de movimentos populares, o capitalismo de máfias triunfará. Seus partidários consolidarão o neo-feudalismo, enquanto o público estará distraído e dividido pelas palhaçadas declowns assassinos como Trump.

Não vejo nada no horizonte que possa evitar esse destino.

Trump, por enquanto, é a figura de proa do capitalismo de máfias. Mas ele não o criou, não o controla e pode ser facilmente substituído. Kamala Harris, cujas divagações sem sentido podem fazer Biden parecer focado e coerente, é o figurino vazio e sem substância que os tecnocratas adoram.

Escolha seu veneno. Destruição pelo poder corporativo ou destruição pela oligarquia. O resultado final é o mesmo. Isso é o que os dois partidos dominantes nos EUA oferecem em novembro. Nada mais.


Nota:

1No original, “warlords capitalism”. Evitei adotar a tradução mais óbvia (“capitalismo dos senhores de guerra”) porque ela tende a associar apenas os partidários de Trump ao “partido da guerra” – ou seja, aos setores que têm interesse nas agressões militares dos EUA. Como o texto demonstra, tanto republicanos quanto democratas apoiam os conflitos em que Washington se envolve em todo o mundo. [Nota do tradutor]