O pânico se instala à simples pronúncia da palavra morte. Um tabu nas conversas diárias. Mas essa não é a nossa única certeza?
Precisamos falar da morte
por Dora Incontri, no Jornal GGN
Quem me conhece há pouco tempo não sabe que me dediquei durante anos ao tema da morte e que em 2007, o médico geriatra Franklin Santana Santos e eu criamos o primeiro curso de tanatologia na Faculdade de Medicina da USP, que se chamava Educação para a morte. O curso perpassava todas as áreas do conhecimento – da história à filosofia, da medicina às tradições espirituais, da estética à psicologia. Logo em seguida,lançamos um livro A Arte de morrer – visões plurais, pela Editora Comenius, que foi até indicado para o prêmio Jabuti. Hoje completamente esgotado. Houve inúmeros desdobramentos, em cursos, livros, artigos científicos etc.
Mesmo antes dessa empreitada e igualmente depois, sempre me confrontei com esse tema, de que precisamos sim falar. Recentemente, uma pessoa muito próxima iria passar por uma cirurgia de alto risco e antes da operação, tivemos uma conversa serena e franca sobre a possibilidade da morte. Foi impactante, bonito e emocionante. Felizmente a cirurgia foi um sucesso. Mas podia não ter sido.
Meu pai, com 88 anos atualmente, mantém diálogos diários comigo sobre quando “a indesejada das gentes” chegar, lembrando Manuel Bandeira. No caso dele, nem tanto indesejada, nessa altura de idade e já com certas limitações. Mas conversamos de forma leve, nada mórbida ou trágica, às vezes até com alguma piada. Na semana passada, cheguei a dizer a ele que até lhe tinha uma certa inveja… deixar esse mundo de tanta dor não é uma má pedida, principalmente para quem já viveu e fez tudo o que podia e devia.
A maioria das pessoas, porém, fica estatelada, aterrorizada, diante de uma conversa assim natural. O pânico se instala à simples pronúncia da palavra morte. Um tabu nas conversas diárias. Mas essa não é a nossa única certeza? Não é melhor lidarmos de frente com a nossa finitude do que escamotear mesmo às portas da passagem, negando até o fim que certamente a morte virá?
Lembro-me da bela cena da morte de Sócrates, narrada por Platão no Fédon. Quando o aconselham a esperar mais um pouco para beber a cicuta – a maneira piedosa com que os atenienses condenavam alguém à morte – ele responde que não iria se prestar ao ridículo de economizar algumas horas de vida, quando dela quase nada mais restava.
É verdade, mas nem sempre, que alguma forma de espiritualidade amenize o medo da morte porque nos faz encará-la sob o ponto de vista da transcendência. Era o caso de Sócrates.
O espiritismo, por exemplo, é tido por muitos, mesmo não espíritas, como a filosofia mais consoladora nesse campo. A possibilidade de entrar em contato com os mortos queridos e algumas evidências de que tais comunicações tenham elementos comprobatórios da identidade do Espírito trazem a convicção da continuidade da vida.
Mas nem sempre a crença, a ideia ou mesmo a certeza da vida depois da morte promovem tranquilidade e naturalidade para acolhê-la quando chega o momento. Isso porque há fatores emocionais que podem perturbar a hora da passagem. Sentimentos de culpa, pendências afetivas, revoltas existenciais, apegos vários a pessoas ou a bens materiais – tudo isso pode gerar desassossego.
Por isso dizia o grande educador Jan Amós Comenius, ao falar explicitamente sobre educação para a morte em sua obra Pampédia (publicada no Brasil pela Editora Comenius), que é preciso viver bem para morrer bem.
A educação para a vida implica necessariamente a educação para a morte, e vice-versa.
Educação aqui entendida como um processo permanente de autoconhecimento, autossuperação e busca de paz interna. Despojamento de mágoas, ressentimentos e picuinhas também ajuda muito. E acima de tudo, é preciso um sentido existencial bem cumprido. Tudo isso deveria ser despertado desde a infância e não essa forja de educação voltada para o mercado, em que todos são formatados para se submeterem a um sistema que lhes suga a vida até a morte.
É evidente, portanto, que num cenário de aceleração e dispersão, consumismo compulsivo e rebaixamento de valores de compromisso com o bem e com a generosidade, esses cuidados se tornam distantes. E não somos preparados nem para viver, nem para morrer.
O dia em que nos organizarmos como sociedade para viver de maneira saudável, natural e amorosa, poderemos ainda e sempre chorar nossos mortos, mas de maneira suave. E diante da nossa própria morte, olhá-la de frente, sem medo e culpa. Apenas sorrindo em paz.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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