terça-feira, 14 de maio de 2024

Dias de Modernidade Tóxica: o desrespeito à civilidade e à estranheza, por ElusianePrinz & Marcelo Henrique

 

Algumas ações essenciais, destacadas por especialistas, são possíveis e factíveis a todos os cidadãos brasileiros

Do Jornal GGN:




Dias de Modernidade Tóxica: o desrespeito à civilidade e à estranheza

por Elusiane Prinz e Marcelo Henrique

Abrimos este ensaio com uma citação de Bauman, (BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 122): “A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos”.

Diante disto, novas questões contemporaneamente têm surgido, materializando desafios à educação e à sociedade como um todo. Muitas delas decorrem de novas formas de comunicação e, consequentemente, das oportunidades que as novas tecnologias (TICs) proporcionam a um número cada vez maior de humanos. As maiores usuárias de tais instrumentos são as gerações novas e, ao mesmo tempo em que os benefícios se incorporam ao viver quotidiano, surgem riscos e malefícios.

Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou que “uma em cada seis crianças/adolescentes, afirma que sofreu cyberbullying no ano de 2022” (Agência Francesa de Notícias, AFP. Uma em cada seis crianças foi vítima de cyberbulling em 2022. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-em-cada-seis-criancas-foi-vitima-de-cyberbullying-em-2022-em-44-paises-diz-oms/>. Acesso em 10. Abr. 2024).

Cyberbullying é um tipo de assédio que decorre da utilização de tecnologias de comunicação e informação. Torna-se necessário, antes, conceituar bullying como o termo que deriva da palavra bully. A origem do termo nada tem a ver com o sentido que se dá, moderna e contemporaneamente a ele, pois que derivando do alemão boel o significado é “irmão ou amante – pessoa agradável, que ama”). A partir do Século XVI, o termo passou a se referir à “pessoa ameaçadora e barulhenta” e, mais à frente, referindo-se à “pessoa que ameaça ou constrange os mais fracos”. Ambos se relacionam a tipos de comportamentos intencionais (deliberados, propositados), de hostilidade, praticados por pessoas/grupos, para prejudicar outros, sendo mais comum entre jovens e adolescentes e jovens, mas visualizado entre adultos, inclusive os de idade mais avançada.

Vale salientar a adaptação fácil do bullying tradicional, comum em escolas de qualquer nível de ensino (básico ao superior), ao ambiente virtual, como cyberbulling, e, aí, seu espectro deixa de ser exclusivo dos ambientes que envolvem estudantes. O locus (virtual) proporciona uma sensação de maior liberdade e a exacerbação dos comportamentos e emoções, distanciando-se, pela “proteção” das telas, da costumeira e tradicional inibição de muitos, em ambientes presenciais.

Como o chamado trânsito cibernético possui baixo controle social, a variabilidade de tempo de interações virtuais (ambientes, plataformas, ferramentas ou redes) potencializa os casos de bullying. Nas redes sociais, nos aplicativos e em jogos em rede, online, muitas crianças, adolescentes e jovens interagem com conhecidos/desconhecidos, diariamente e por horas e esse contato online “facilita” a manifestação dos sujeitos, e acaba sendo um ambiente propício para ataques de todos os níveis.

Muitos equivocadamente acreditam ser seguro o espaço virtual é seguro, sobretudo na visão dos agressores, já que existe a possibilidade de serem apagados posts, comentários, vídeos e memes. Mas isso não é de todo verdadeiro, pela possibilidade de recuperação com o uso de sistemas específicos e a intimação dos “hospedeiros” (sites, blogs, programas ou aplicativos), para que forneçam informações e recuperem dados, sendo, portanto, quase impossível que esteja apagado o que foi virtualmente publicado.

Outra questão é o “anonimato”, com a utilização de perfis fakes ou sem identificação, sem a utilização de identidades ou fotos reais nas contas, que gera a falsa ideia de proteção e não culpabilidade. Mesmo nesses perfis, plataformas, sites e redes sociais possuem elementos suficientes para a identificação do usuário, na maioria dos casos.

Um abuso nas redes também precisa ser avaliado em relação à potencial ou real dimensão da audiência envolvida, em face da disseminação em larga e, por vezes, altíssima escala, especialmente se as postagens “viralizarem”, com replicação “ao infinito”, nem sempre quantificada em termos de alcance total e, neste caso, poderá haver a cumplicidade em relação ao autor original. Esta repetição, inclusive, gera o dano repetido, pois prejudica diversas e sequenciais vezes a vítima.

No âmbito jurídico-legal, a mensuração da culpa e a delimitação do dano (material e moral) para as quantificações financeiras na condenação e outras penas são avaliadas a partir do manifesto desejo de praticar o ato e prejudicar outrem (intencionalidade), mediante provas da autoria, do crime e do real prejuízo à vítima.

Entre os típicos exemplos típicos de tais ações violentas/criminosas temos as ações de envio, recepção ou repasse de mensagens prejudiciais, a revelação de assuntos sigilosos baseados na confiança interpessoal, a difusão de informações que provoquem vergonha ou embaraço, ou, ainda, a veiculação de fotos (íntimas, sensuais, íntimas ou relacionadas a situações privativas de alguém), bem como atitudes de ameaça e perseguição.

Neste cenário, as situações podem desencadear impactos físicos, emocionais e/ou psicológicos, alcançando as vítimas e ou pessoas próximas, como familiares. Registra-se um conjunto de sentimentos de dor e sofrimento, raiva e humilhação, de violação e vulnerabilidade. Muitas pessoas, chegam a mudar de residência, cidade ou trabalho, em razão de não suportarem os efeitos danosos para suas vidas habituais.

O que começa no território das redes sociais pode continuar em espaços presenciais, quando, assim, a violência inicialmente digital acaba se tornando convivial, em consequências de ordem moral e física, podendo gerar diversos efeitos na saúde física e psíquica da vítima, resultando, inclusive, óbitos.

Preocupante é a circunstância de que jovens e adolescentes, desde tenra idade (e sem qualquer supervisão ou orientação), expõem, muitas vezes, suas identidades, localizações e costumes, em perfis públicos nos múltiplos contextos digitais atuais, em face das novas gerações terem destacada facilidade em operar equipamentos, tecnologias e sistemas, inclusive compartilhando informações e dados pessoais. E empresas de tecnologia e os donos das redes e plataformas também colaboram com a retroalimentação, atendendo públicos e demandas.

Então, como mensurar o impacto na saúde mental das crianças, adolescentes e jovens? No contexto clínico, registram-se sentimentos de humilhação, vergonha, inadequação, isolamento, aliados ao aumento dos níveis de ansiedade, exponencialmente. Também solidão, insegurança, timidez, baixa autoestima, medos e fobias, raiva e estresse. Os relatos dos pesquisados também alcança, em número significativo, o uso/abuso de álcool e drogas. Problemas psicossomáticos variados, assim como ansiedade e depressão, inclusive o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com ocorrências da ideação suicida e da tentativa ou consumação de suicídios também figuram presentes.

Muitas das vítimas acaba tendo receio de informar a seus pais, responsáveis ou especialistas educacionais que estão sofrendo o cyberbullying, porque podem ser tolhidos em sua liberdade de acessibilidade à internet, ou, ainda, no caso de pessoas próximas – como colegas de estudo, por exemplo – ficarem sujeitos a retaliações do agresso. Um número significativo de pessoas atingidas, também, acredita que tais adultos nada poderiam fazer em relação ao agente que lhe prejudica, nem podem alterar a situação vivida.

Estamos conscientes de que o assédio generalizado, materializado nas ocorrências de bullying e cyberbullying ultrapassou os limites físicos e psíquicos e se configura como um grande assédio energético e espiritual, já que a energia não está sujeita nem ao tempo nem ao espaço. O contato online, assim, alcança a psicosfera de todos, influenciando pensamentos, sentimentos e comportamentos. Espaços que seriam de aproximação convivial, fraterna e de inclusão na interação, por aproximarem pessoas geograficamente distantes, para o compartilhamento de ideias e a troca salutar de experiências e desenvolvimento humano, em espaços democráticos, tem se tornado um prejudicial vespeiro.

Nosso país conta com avançada legislação a respeito, citando-se, por exemplo, as Leis Federais ns. 12.307/2012, 13.185/2015, 13.277/2016 e 14.811/2024, voltadas seja à instituição de um dia nacional de combate a tais práticas, seja para o acompanhamento e apoio psico-sócio-jurídico às vítimas (mas também aos seus agressores, em face de destacadas patologias), atuando, também, na capacitação de docentes e outros profissionais pedagógicos e da saúde, pais e familiares, alcançando ainda ações dentro da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente.

Algumas ações essenciais, destacadas por especialistas, são possíveis e factíveis a todos os cidadãos brasileiros: a) observação do comportamento dos discentes, para alerta e orientação em relação ao uso e aos abusos da tecnologia, previamente às agressões, realizando ações preventivas; b) promoção de ações de atenção às vítimas, concomitante ou posteriormente, de acolhimento incentivando as denúncias, conjunturalmente nas instituições de ensino; c) inclusão de pais, familiares e a comunidade correlata, de forma permanente, em colaboração às ações preventivas, repressivas e de esclarecimento.

Outrossim, como esta realidade deve ser um mote de preocupação e ação dos governos, é primordial o envolvimento de setores especializados (Administração, Jurídico, Educação, Assistência Social e Saúde, por exemplo) em projetos específicos voltados à conscientização das comunidades das nossas cidades, ao combate de práticas nocivas e de apoio integral às vítimas, mas também aos agressores, já que estes são portadores de enfermidades ou patologias.

Neste tempo de permanentes lutas contra retrocessos e barbáries de toda a sorte e de afirmação democrática, ações efetivas que contemplem a discussão da temática e estejam orientadas à prevenção, à orientação e à solução dos problemas reais da nossa sociedade são fundamentais.

Não por outra razão trouxemos o pensamento de Bauman na abertura deste artigo: é imperioso universalizar o princípio do respeito às diferenças (as estranhezas de que fala o autor), ampliando-se a convivência pacífica e inclusiva, como característica essencial da civilidade contemporânea.

***

Os autores: Elusiane Prinz é Terapeuta Sistêmica, graduanda em Psicologia (UNISUL/SC). Marcelo Henrique é advogado e administrador, ambos pela UFSC, tendo cursado Mestrado em Ciência Jurídica (UNIVALI/SC), Doutorado em Direito (Universidade Católica de Santa Fé – Argentina) e está cursando Doutorado em Administração (UFSC).

A tragédia gaúcha e a arte de cegar causas e soluções por meio de desinformação e fake news. Artigo de Daniel Lemos Jeziorny

 

Quanto mais se publica sobre este novo desastre, mais se esconde o essencial: o colapso do clima pode ser evitado; basta nos livrarmos do sistema que o produz. Para que isso permaneça ofuscado, os noticiários nos inundam de banalidades

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Vamos colocar tudo na mesa já de saída,
sem meias palavras.
No que diz respeito à crise climática,
sim, chegou a hora de entrarmos em pânico.

(Raymond Pierrehumbert, 2018)

As palavras da epígrafe acima foram originalmente redigidas por um professor de física da Universidade de Oxford, Reino Unido, principal autor do relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) de 2018. Desafortunadamente, não se trata de mero recurso retórico para chamar a atenção para um problema que muitos julgam – ou julgavam – apenas lateral. A humanidade se depara com uma ameaça real, concreta, que talvez pela primeira vez a coloque diante de uma encruzilhada na qual não possa garantir que o futuro será melhor que o presente. A despeito da recalcitrância de teorias conspiratórias e dos escusos interesses de grupos econômicos e negacionistas, há muito a ciência alerta ao agravamento das variáveis que influenciam o aquecimento global, tais como a emissão de gases de efeito estufa, a diminuição da permafrost, a acidificação dos oceanos e o desmatamento de florestas e outros biomas ao redor do planeta. A verdade é que, quanto ao devir da civilização humana no Sistema Terra, projeções de coletivos científicos são cada vez mais sombrias.

Poucos meses após a passagem de um ciclone extratropical que trouxe devastação, prejuízos materiais incalculáveis e mortes ao Rio Grande do Sul, enchentes ainda maiores voltam a castigar a população do estado. Em praticamente todos os telejornais, comentaristas e especialistas afirmam que é necessário se acostumar com um drama que não é exclusivo dos riograndenses, mas experimentado por cada vez mais pessoas ao redor do planeta. Diz-se que é o “novo normal” do mundo em que vivemos, um processo irreversível, resultante das mudanças climáticas em curso. Ao que parece – talvez não pelo caminho mais difícil, mas certamente pelo mais doloroso – depois de muito tempo tentando-se tapar o sol com a peneira do negacionismo, a emergência climática passa a preocupar formadores de opinião pública no Brasil. Mas não apenas estes, haja vista que, além das pessoas que tiveram suas vidas devastadas pelas tragédias climáticas, o tema consterna as que conseguem sentir alguma empatia pela dor alheia ou simplesmente guardam um mínimo de bom senso diante dos fatos.

Contudo, há uma pergunta que parece se evitar a qualquer custo a resposta, a saber: quais as causas de fundo dessa emergência climática que traz prejuízos, desesperança e sofrimento em grande escala? Seguramente muitos responderiam que a causa, em si, é o aquecimento global. É sem dúvida uma resposta atenta ao movimento da realidade concreta tal como a percebemos ou sentimos na carne; mas tampouco alcança a raiz do problema. Afinal de contas, secas cada vez mais longas, enchentes cada vez mais frequentes, ciclones cada vez mais recorrentes, além de acidificação de oceanos e acúmulo de gases de efeito estufa são menos causa do que efeitos do alargamento daquilo que se entende por falha metabólica – ou seja, expressões concretas da disjunção crescente entre o modo de produção e o Sistema Terra. Embora aparentemente rebuscado, esse raciocínio não é difícil de se apreender, especialmente quando se tem em conta que o modo de produção capitalista é um sistema que não se desenvolve no vácuo, mas através do tempo-espaço que reordena em função da lógica do capital. E esta lógica é expansiva e acelerante, visto que comandada pela acumulação capitalista e busca do lucro, em condições de concorrência mercantil. O ato de explorar um espaço finito – como a Terra – a partir de um sistema cada vez mais expansivo choca-se com um limite biofísico; daí as secas, as inundações, os ciclones cada vez mais recorrentes… Como se vê, no fundo, a resposta é outra.

Note-se, por exemplo, o que tem ocorrido desde a década de 1950. As transformações transformações socioeconômicas aceleram-se de forma estonteante. No entanto, no que toca ao metabolismo humanidade/natureza, esse mundo que ganhou impulso com os 30 anos gloriosos do capitalismo e hoje se concretiza repleto de sofisticadas máquinas e inteligência artificial traz consigo implicações preocupantes. Os gráficos abaixo ilustram algumas manifestações concretas da tendência acelerante do sistema capitalista, que ganharam impulso substantivo a partir dos anos 1950 – em consonância com a própria escala sistêmica.

Fonte: Will Steffen et al (2014)

É verdade que o século XX produziu uma explosão demográfica sem precedentes, em especial a partir dos anos 1950. De 3 bilhões, chegamos a cerca de 7 bilhões de seres humanos em meio século, em sua maioria nos espaços urbanos, o que contribui ainda mais à fratura metabólica em curso e implica numa utilização cada vez maior de fertilizantes. Em 1950, a utilização destes era menor que 10 milhões de toneladas; mas ela salta para 200 milhões de toneladas ainda nos anos 2000. O número de veículos automotores também explode nesse meio século: de aproximadamente 200 milhões em 1950, chega-se a cerca de 1 bilhão e 500 milhões em 2000. Nessa toada, conforme ilustram as figuras acima, exacerbam-se também as emissões de CO² e de NO², gases que provocam o efeito estufa.

A grande aceleração das atividades antrópicas ajuda a compreender que a humanidade tornou-se uma força geológica em escala planetária, especialmente a partir de 1950. Do pós-Segunda Guerra até meados dos anos 1970, o sistema capitalista experimentou seus melhores resultados. Quiçá ameaçado pela possibilidade concreta de um modelo alternativo, o sistema capitalista foi impulsionado pela ação decisiva dos Estados, que conformaram, através de pactos tripartites (patronato, sindicatos e governos), os arranjos sociais-democratas de repasses de ganhos de produtividade aos salários e, com isso, garantias de renda, demanda e massas de lucro crescentes. Arranjo que estimulava os investimentos produtivos e o emprego através de um modelo de produção e circulação em massa de mercadorias, que, em conjunto com a reconstrução do aparato produtivo na Europa no pós-Segunda Guerra, engendrou um círculo virtuoso de três décadas de crescimento econômico acelerado, com alguma distribuição de renda nas principais economias. Mesmo que essa etapa do capitalismo tenha sido interrompida com “a virada conservadora” dos anos 1980, essa interrupção não foi acompanhada de uma reversão utilização maciça de combustíveis fósseis e degradação ecossistêmica.

Nessa linha, tragédias como a que estraçalha agora a vida de milhares de gaúchos e gaúchas são menos provocados pela “mãe natureza” e muito mais pela inconsequência de seres humanos que não renunciam a uma espécie de “American Way of Life” e à busca por massas de lucro cada vez maiores em atividades típicas do neoextrativismo — mesmo quando estas acarretam agressões irresponsáveis à natureza. Logo, para não seguirmos a tapar o sol com a peneira, é necessário não escamotear a verdadeira raiz do problema: na sociedade de produção e circulação de mercadorias – ou melhor, no capitalismo – a mola mestra da capacidade humana de transformar a natureza é a acumulação de capital, é ela que está no centro de nosso sistema de reprodução material. E isto significa que o processo pelo qual se obtêm os meios de subsistência e de reprodução da sociedade não é pura e simplesmente um processo produtivo, mas é também – e primordialmente – um processo capitalista. Isto é, um processo de valorização de uma determinada quantidade de valor que é posta em circulação para retornar acrescida ao ponto de onde partiu. O que remete a outro ponto fundamental à compreensão da dinâmica de nossa relação metabólica com a natureza: a aceleração. O sistema não é apenas expansível, ele também é acelerante. Na medida em que a acumulação de capital é a sua mola mestra, e ao passo que capitais que giram mais rapidamente tendem a valorizar-se mais e/ou mais velozmente do que aqueles que não o fazem, a própria concorrência intercapitalista conduz uma corrida pela introdução de inovações que reduzam o tempo de rotação dos capitais. No que toca a reprodução material do sistema, este movimento se consubstancia em tecnologias capazes de produzir mercadorias em períodos produtivos cada vez mais curtos. No entanto, como geralmente estas mercadorias possuem menor valor unitário em vista dos ganhos de produtividade do trabalho, a manutenção de grandes massas de lucro requer volumes cada vez maiores de produção, comercialização e consumo. Dessa forma, as lógicas crescente e acelerante do sistema tendem a se retroalimentar. Quanto maior a escala, maior a necessidade de aceleração – e maiores as repercussões negativas sobre os ecossistemas, que perdem sua capacidade de oferecer serviços ecossistêmicos essenciais, como o de regulação do clima.

Conforme aponta Luiz Marques, no intervalo de tempo de duas gerações – ou o tempo de uma única vida – a humanidade se tornou uma força geológica em escala planetária [daí a ideia de Antropoceno]. Basta ver que entre 1900 e 1930 a taxa média de elevação do nível do mar era de 0,6 mm por ano, que entre 2014 e 2017 essa taxa foi de 5mm por ano, mas que entre os anos de 2018 e 2019 a elevação foi de 6,1mm. Em apenas um século, a elevação do nível do mar decuplicou. E as projeções são de que, em 2040, as inundações que ocorrem em zonas costeiras uma vez por século podem ocorrer anualmente. Se hoje medimos a elevação do nível do mar em milímetros por ano, apenas pelo degelo da Antártida o nível dos oceanos pode subir dezenas de centímetros ainda neste século.

Evitar novas tragédias como a que se atravessa hoje no Rio Grande do Sul passa pelo reconhecimento das contradições da dinâmica da acumulação com as condições naturais de produção, ou seja, da lógica expansiva e acelerante da acumulação que não consegue harmonizar-se com a lógica da biosfera, um sistema de ecossistemas com funcionamento próprio e com dinâmica que não é nem crescente nem acelerante. De maneira geral, a acumulação capitalista tende a trazer sérios problemas na relação humanidade/natureza sempre que a velocidade de consumo de matéria e energia supera a velocidade de regeneração do sistema natural. Mas também quando a escala de dejetos da produção ultrapassa a capacidade que os diferentes ecossistemas possuem de assimilá-los. Estas são, a rigor, as principais vias pelas quais um sistema ecológico pode rumar à desorganização de sua estrutura e, com isto, ter sua mecânica alterada e/ou comprometida em virtude de ações humanas. É neste quadro que se costuma falar em metabolismo ecossistêmico, ou seja, no funcionamento próprio de um determinado ecossistema. É a interação dos elementos que compõem sua estrutura que resulta numa série de funções ecossistêmicas, tais como o sequestro de carbono da atmosfera e as regulações do clima e do ciclo da água.

Por isso, encontrar um caminho que nos afaste de tragédias ambientais exige reconhecer o óbvio: o ser humano não é senhor da natureza, mas parte desta; a Terra não é mera fonte de recursos naturais, mas uma rede de ecossistemas da qual depende o bom funcionamento da própria vida humana. Urge, mais do que nunca, assumir que catástrofes climáticas não são meros acidentes ou obstáculos de percurso, que não há saída tecnológica possível à emergência ecológica – a menos que se abandone o rumo que tomou a civilização humana, embalada por uma superacumulação de capital que se tornou um fim em si mesma e construiu o cenário trágico vivido em diversas porções do planeta – a exemplo do Rio Grande do Sul.

Se a degradação ambiental compromete o fornecimento de serviços ecossistêmicos indispensáveis aos seres humanos, a prevenção de futuras tragédias climáticas implica um corte na raiz do problema – ou seja, acabar com o totalitarismo do sistema que consome substrato material da vida. É possível que ainda haja tempo suficiente para se puxar o freio de emergência, antes que a fratura no metabolismo humanidade/natureza transforme a biosfera num ralo a sugar a espécie humana. O que de fato precisa ser discutido, então, não são meras soluções técnicas, ferramentas que arredem obstáculos de um rumo supostamente natural e inescapável, mas uma forma de se cambiar este rumo, de se construir um modelo civilizacional em que a vida esteja à frente da acumulação, não o contrário.

É nesse sentido que autores como John Bellamy Foster criticam a irrealidade e a irresponsabilidade de muitas das análises desenvolvidas no âmbito do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC). Os modelos que empregam têm o crescimento econômico como pedra angular; logo, a acumulação de capital tal qual santa no altar. Tais análises rebaixam sistematicamente a escala das transformações sociais necessárias e apostam todas as fichas no mesmo mecanismo que conduziu à emergência ecológica – ou seja, o mercado. Assim, ainda que possam acertar no diagnóstico (de que o crescimento econômico acelerado deixou de ser garantia contra as inseguranças do futuro, para se tornar a própria fonte destas inseguranças), tais análises se equivocam nas receitas prescritas, pois passam longe da raiz do problema.

Infelizmente, isto pouco surpreende, pois, como o próprio Foster reconhece, a abordagem do IPCC é ditada em grande medida pela política econômica hegemônica, orientada pelas necessidades de acumulação de grandes corporações transnacionais. Estas – como há muito alertou Milton Santos – tornaram-se o centro frouxo de um mundo desigual, em que a fábula da globalização da economia esconde a triste face do imperialismo. Uma massa gigantesca de recursos é movimentada para fabricar armas e guerras. Mata-se tranquilamente em nome da pilhagem das riquezas de povos que teimam em funcionar com outra lógica – ou de uma superacumulação ensandecida que provoca devastação ecossistêmica.

No exato momento em escrevo, mais de meio milhão de gaúchas e gaúchos são afetados por outra manifestação da falha metabólica em curso. Milhares dessas pessoas não têm a mínima ideia de para onde ir, depois de terem seu lares arrastados ou arrasados por mais uma enchente. Tragicamente, a situação não é muito diferente da que atravessam os milhões de refugiados ambientais em todo o mundo, pessoas que foram forçadas a deixar seus lugares em função de secas, inundações e outras expressões dessa mesma falha metabólica que marca a emergência climática que atravessamos. Para essas pessoas, o sistema calcado na superacumulação não vai desabar em sua relação com a natureza – pois já desabou. Não fechar os olhos a essa realidade é condição indispensável para vislumbrar uma saída do labirinto em que nos encontramos em nossa relação metabólica com a natureza da qual fazemos parte. Um labirinto repleto de tragédias ambientais e guerras, mas não menos por uma concentração material na qual o 1% mais rico da população se locupleta de uma riqueza seis vezes maior do que a de 90% das pessoas do mundo. Um labirinto civilizacional no qual cerca de 46% das pessoas vivem sem acesso a saneamento básico e dois bilhões (23% da população mundial) não dispõem de aceso a água potável. Um labirinto onde os seres humanos não se reconhecem a si mesmos como semelhantes, como partes da natureza e tampouco como integrantes de uma única força capaz de transformar a natureza e a si mesmos nessa transformação. Um labirinto em que a apropriação privada da riqueza coletiva brutaliza, consome energia vital e afasta o ser humano de sua essência, ao matar na raiz a sua criatividade. Um labirinto onde o Minotauro da fome se alimenta do sacrifício de uma vida humana a cada quatro segundos, e onde os que conseguem sobreviver – e não mais do que isso – acreditam que as máquinas que aceleram a acumulação e a devastação ambiental são responsáveis pela riqueza produzida, mas não pela sucção de vida.

Para todos os efeitos, permito-me resgatar uma ideia do filósofo inglês Terry Eagleton, para quem a ideologia é igual a mau hálito – todos têm, mas só incomoda o alheio. Pois, somente com muito mau hálito, ou seja, com muita ideologia, é possível ver como a desenvolvida forma de sociedade humana um labirinto civilizacional que provoca tamanha aflição – ou drama.


Referências

DAILY H. Toward some operational principles of sustainable development, Ecological Economics, v.2, 1990, pp. 1-6.

EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2019

MARQUES, L. O decênio decisivo: proposta para uma política da sobrevivência. São Paulo: Elefante, 2023

JEZIORNY, D. L. “Metabolismo social e pandemias: alternativas ao vírus do crescimento autofágico” pp. 407-428 in Fressato, S. B. & Novoa, J. Soou ao alarme: a crise do capitalismo para além da pandemia. São Paulo: Perspectiva, 2020.

STEFFEN, Will; BROADGATE, Wendy; DEUTSCH, Lisa; GAFFNEY, Owen; LUDWIG, Cornelia. The Trajectory of the Anthropocene: the Great Acceleration. In: The Anthropocene Review, jan. 2014.

A desinformação fascista sobre desastres como do RS veio pra ficar. Mas há sim como combatê-la. Leia um trecho do artigo de Natália Viana, da Agência Pública

 

Segue um trecho da coluna de Natália Viana:

É fato. Toda tragédia ou desastre, como a atual calamidade no Rio Grande do Sul, que chega a mobilizar a sociedade e unir as atenções, trará sempre consigo uma realidade alternativa, paralela, criada por redes de desinformação que acharão sempre uma maneira de se beneficiar do caos. Como bem sabe o leitor, vivemos em um ambiente informativo altamente concentrado, privatizado e sem regras, um faroeste digital, em que as mentiras se espalham sete vezes mais que as verdades porque plataformas e mentirosos lucram juntos. Então, enquanto não se regular o ambiente em que viajam as notícias, assim será. 

Haverá sempre alguém que ganha ao espalhar mentiras, por exemplo, corroendo a confiança em governos eleitos democraticamente, sejam locais, estaduais ou federal. Haverá quem lucra com o pânico, conseguindo alavancar doações para entidades de reputação duvidosa. Haverá quem lucra com golpes contra aqueles que estão desesperados. E haverá, fruto muito do nosso tempo, quem consegue encaixar todo e qualquer desastre em narrativas de mais longo prazo, como é o caso do bolsonarismo, que usa a atual crise não só para criticar o governo Lula, mas para criar desconfiança em relação a instituições governamentais essenciais, como a própria Anvisa, acusada de impedir a chegada de medicamentos ao Rio Grande do Sul, que teve que desmentir em nota oficial. (...).

Leia o artigo completo no site da Agência Pública

Reinaldo Azevedo: Quantos dilúvios e secas o Congresso reacionário bolsonarizado planeja para o futuro?

 Um congresso reacionário bolsonarizado, fomentado pela bancada ruralista do boi, da bala e da bíblia, contra o meio-ambiente e ecologia

Da Rádio BandNews FM:


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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Bolsonaristas ATACAM Daniela Lima e Ronny Teles REVELA O SEGREDO por trás disto

Sobre as táticas do fascismo bolsonarista e fake news pesadas contra Daniela Lima, assim como a teologia fundamentalista e roubo das ideias humanistas e socialistas em apoio ao plaono de poder de bolsonaristas.

Do Canal de Ronny Teles:




Martin Luther King e Malcom X – vidas e mortes cruzadas, por Dora Incontri

 

Para trazer Martin e Malcolm ao nosso tema frequente, ambos são exemplos da intersecção entre política e espiritualidade; entre ativismo e fé


Artigo de Dora Incontri publicado no Jornal GGN:

Não tenho nem o tempo, nem a paciência para assistir a séries de canais streaming. Mas, às vezes, alguma produção consegue furar o meu bloqueio. E falo hoje aqui de Genius (que pode ser vista na Starplus e que tem temporadas biográficas, numa produção da National Geographic). Foco mais especificamente na que trata de forma paralela e cruzada das vidas de Martin Luther King Jr. e Malcom X. Não fosse apenas pela beleza pungente dessas biografias, elas tocam no cerne do debate desta coluna.

A estrutura da narrativa, em oito episódios, tem muitos méritos de roteiro. Entre eles, o fato de que vai contracenando a infância, a juventude, as lutas pessoais e políticas e finalmente o assassinato desses dois grandes líderes da luta contra o racismo nos EUA. Os dois morreram aos 39 anos, com 3 anos de diferença, sendo Malcom, mais velho, o primeiro a ser assassinado. Um acompanhava o outro à distância, com discordâncias, convergências e respeito mútuo. Apertaram-se as mãos apenas uma vez na vida e foi um encontro fraterno e aberto.

A narrativa não é idealizada, porque heróis são seres humanos e têm seus defeitos – o que não arranca o mérito de suas ações para transformar o mundo. E uma das questões que nos desconcertam, principalmente a nós, mulheres feministas do século 21, é justamente a postura muitas vezes machista dos dois e de todo o contexto de então. Mas, o filme mostra, além de ambos, a vida das suas esposas, também desde a infância, enfatizando seu protagonismo e informando algo que pouca gente deve saber: as duas viúvas, Coretta e Betty se tornaram grandes amigas e tiveram um ativismo muito engajado, mantendo vivo o trabalho dos maridos. Ou seja, foram muitas vezes caladas durante a vida deles, mas assumiram suas respectivas missões depois de suas mortes.

Para trazer Martin e Malcolm ao nosso tema frequente, ambos são exemplos consistentes da intersecção entre política e espiritualidade; entre ativismo e fé. Malcom, que teve uma infância bem mais traumática que Martin, tendo seu pai assassinado e sua mãe internada por problemas mentais, muito jovem caiu na criminalidade e foi preso. Foi guiado para fora da tragédia por um líder muçulmano, Elijah Muhammad, chefe da organização Nação do Islã. Convertido ao islamismo e devotado a esse guru, reiniciou sua vida, aliando a luta pela igualdade racial à fé islâmica, como identidade mais enraizada na herança africana. Poucos anos mais tarde, Malcom descobriu os abusos sexuais praticados pelo líder da Nação do Islã e teve a integridade de enfrentá-lo e sair da organização. Mas não deixou o islamismo.

Já Martin nasceu filho de um pastor batista e teve uma infância protegida e estimulada pelos pais, graduou-se e doutorou-se em teologia e, seguindo a carreira do pai, tornou-se pastor.

No Alcorão, Malcolm encontrou forças para a luta e justificativa de que ela poderia recorrer à violência armada. Mas não chegou a matar uma mosca.

No Evangelho de Jesus, interpretado pela leitura de Gandhi, Martin achou inspiração para uma luta não violenta, baseada na desobediência civil e na resistência passiva. Essa proposta da não violência gandhiana foi trazida a Martin por seu conselheiro de campanhas, Bayard Rustin, ativista que foi perseguido e até pouco tempo apagado da história, por sua homossexualidade.

Ambos, porém, Martin e Malcom, extraíram de suas respectivas espiritualidades, força, inspiração, coragem e resiliência para enfrentarem a luta do dia a dia, as perseguições, o cansaço, as ameaças de morte e finalmente a morte. O último discurso de Luther King, reproduzido na série, feito algumas horas antes de ser assassinado é emocionante: ele sente que vai morrer, entrega-se a Deus, diz que não tem mais medo. É como se naquela despedida estivesse encontrando a plenitude de sua fé (que tinha às vezes hesitante, como todos os que têm fé) e agiganta-se no heroísmo e no martírio.

Essa a principal mensagem dessas duas vidas, a ideia de que temos falado aqui. O ativismo social, o ímpeto e o empenho de mudar o mundo, trazendo justiça, igualdade e fraternidade, não estão necessariamente desconectados de uma visão de mundo religiosa. Muito ao contrário, nela se enraízam com muito mais força, porque a esperança de que um dia esse Reino por que se luta virá, encontra maior garantia e serenidade na ideia de uma justiça que permeia a realidade da existência e não apenas uma justiça precária e mutável, construída socialmente.

Se há religiosos alienados e distantes da militância social e política, são eles os incoerentes e afastados das raízes profundas de toda tradição espiritual digna deste nome.  Egoísmo, indiferença com o sofrimento do mundo, cinismo social e distanciamento de movimentos e ideias que propõem mudanças na sociedade estão em oposição às mensagens essenciais das múltiplas espiritualidades e contrariam o exemplo das grandes lideranças que inspiram a humanidade a se reconhecer como humana, fraterna e, ao mesmo tempo, divina.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

Wilson Ferreira: Jornalismo metonímico (dúbio) da grande mídia empresarial e rentista dá munição às fake news de olho no impeachment de Lula

 


Vivemos mais um hype na grande mídia sobre as chamadas “fake news”. Que agora miram a calamidade ambiental no Rio Grande do Sul. Os “colonistas” do jornalismo corporativo mostram todo o seu repertório de indignação moral e amaldiçoam essa praga supostamente exclusiva das redes sociais. Mais uma vez, o hype midiático sobre fake news ocorre como estratégia diversionista para esconder algo. Dessa vez, a forma inovadora pela qual o chamado “jornalismo profissional” está fornecendo munição para algo que vai muito além das “fake news”: uma estratégia ampla de contrainformação com dois objetivos: tirar o protagonismo de Lula e espalhar cascas de bananas orçamentárias (sob a lupa do TCU) para, quem sabe, servir de álibi para um processo de impeachment. A novidade semiótica é o “jornalismo metonímico para recorte”: como passar munição para a extrema-direita por baixo da mesa. 

Texto de Wilson Ferreira no site Cinegnose:

Não obstante o fenômeno da desinformação ou notícias falsas se confundirem com a própria história do jornalismo, de repente a nova geração de jornalistas descobriu o fenômeno das “fake news”, surgindo uma nova especialidade no ramo: os checadores em agências (ou “plataformas”) de “fact-checking”.

Essas expressões, faladas na língua inglesa, certamente ganham uma aura hype (“fake news” e congêneres como “pós-verdade” foram eleitas “palavras do ano” pela Universidade de Oxford em 2016 – popularizado pela vitória de Trump) e de novidade para um fenômeno que existe desde que Gutenberg inventou a prensa em 1447.

Se sabemos que as notícias falsas e campanhas de desinformação sempre acompanharam a grande mídia (do caso da Escola Base dos anos 1990 à ficha falsa de Dilma Rousseff do DOPS publicada na primeira página da Folha de São Paulo), por que o jornalismo corporativo, além de pesquisadores e acadêmicos da área, apressou-se a definir “fake news” como uma grande novidade?

Ao longo de diversas postagens (veja links ao final), esse Cinegnose descreveu como o hype das fake news foi CONVEEEEENIENT para o chamado “jornalismo profissional”:

(a) Motivo de marketing: assim como como o “orgânico” e o “saudável” criou o selo diferencial “premium” no mercado industrializado de alimentos, da mesma forma no mercado de notícias o “fact-checking” criou a notícia supostamente livre de toxinas, isto é, mentiras – mas não livre da “manipulação”.

(b) Motivo mercadológico: o avanço das mídias de convergência tecnológica na virada de século confrontou a hegemonia das mídias de massas. O debate em torno das “fake news” surgiu como uma engenharia de opinião para criminalizar a Internet e redes sociais: elas seriam intrinsicamente criminógenas – um ecossistema de informação que viabiliza golpes cibernéticos, pedofilia, bullying, mentiras, vício etc.

(c) Motivo epistemológico: somente o jornalismo profissional e corporativo, com o complexo de gatekeepers, editores e hierarquia na produção das notícias garantiriam à informação qualidade. Sob a grife do “jornalismo investigativo” – que confunde “investigação” com “apuração” e “checagem”. “Checagem” ou “apuração” é tautológico (checar se o conteúdo de um release corresponde à fonte emissora), enquanto “investigação” tem a ver com busca de informações que criem cenários, contextos e relações de causa e efeito.



Jornalismo de Guerra 2.0

Neste momento de Jornalismo de Guerra 2.0 (a volta do modo alarme do jornalismo corporativo para desestabilizar o governo Lula e garantir as conquistas neoliberais dos governos Temer e Bolsonaro) a retórica das fake news ganha uma nova utilidade, o item (d)

(d) Ocultar a forma como o jornalismo corporativo está abastecendo as redes de extrema-direita com munição para a criação de fake news – na verdade, uma grande campanha de desinformação. Principalmente nesse momento da catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul. Tudo porque para a grande mídia, o protagonismo de Lula deve ser, no mínimo, relativizado. Enquanto o ativo político midiático, o governador Eduardo Leite, deve ser protegido e empoderado com manchetes em construções frasais assertivas.   

Até aqui, a grande mídia vem dando pernas à agenda bolsonarista e de extrema-direita (p. ex., a polêmica das “saidinhas”), tornando temas diversionistas em debates relevantes para a opinião pública. Porque debatido pelos seus “colonistas” em canais fechados de notíciais.

Porém, com a involuntária volta por cima de Lula, após o fracasso das comemorações do Primeiro de Maio, no protagonismo pelo socorro à calamidade no RS, o jornalismocorporativo mais uma vez está tapando o seu nariz para mexer na lama psíquica da extrema-direita. Se bem que “remotamente”, como em uma guerra por procuração: apenas fornece a matéria-prima, a munição para as redes bolsonaristas processarem com o expertise alt-right de comunicação.

Como? Através da grande novidade semiótica: o jornalismo metonímico de recorte.



Jornalismo metonímico

O jornalismo metonímico não é uma novidade. Principalmente na forma de “contaminação semiótica”: relativo ao conceito de metonímia, figura de retórica que retira a palavra do seu contexto semântico normal por ter uma relação de significação de contiguidade, material ou conceitual. 

No caso do jornalismo, caracteriza-se pela “contaminação metonímica” entre signos de natureza diversa (texto, imagem etc.) segundo a seguinte fórmula: 1 + 1 = 3, isto é, uma notícia que contamina outra notícia totalmente diversa pode produzir uma terceira notícia totalmente diversa e ideologicamente intencional.

Uma contaminação produzida por relações de contiguidade textuais ou espaciais (diagração, proximidade texto e foto etc.), como no exemplo acima em que a proximidade do numeral “1 milhão” (relativo à notícia do censo escolar) contamina foto de manifestação bolsonarista em São Paulo. 1 + 1= 3: tinha 1 milhão na Avenida Paulista?

Claro, uma contaminação subliminar, fenomenológica.

Jornalismo metonímico de recorte e impeachment

Porém, a grande novidade é o jornalismo metonímico de recorte: uma parte é tomada pelo todo: a construção frasal da manchete sugere um significado contraditório em relação ao lead da matéria; ou, no caso do jornalismo eletrônico, o GC no rodapé da tela contraria aquilo que o entrevistado está dizendo.

O objetivo é oferecer material para recortes para serem ressignificadas nas postagens dos perfis de extrema-direita. Vejamos os exemplos abaixo:




No programa Estúdio I, do canal fechado Globo News, o ministro da Agricultura e Pecuária Carlos Fávaro explicava o motivo da negociação do Governo em importar arroz, diante do caos climático de RS. O ardil das perguntas dos “colonistas” de plantão (Andreia Sadi et caterva) era bombar a ameaça de desabastecimento com a destruição das plantações de arroz no Estado.

Pacientemente explicava que o abastecimento estava garantido porque a maior parte da safra já estava colhida. O arroz importado seria uma forma para reconstruir os estoques reguladores do Governo (desmantelado por Bolsonaro) para evitar movimentos especulativos de preços. Principalmente nesse momento de movimentos deliberados de contrainformação.

Não obstante, o GC no rodapé da tela permanecia “negociação de arrozpara evitar desabastecimento”. O contrário do que o ministro dizia.

A imagem da tela é um ótimo material para contrainformação (muito mais sério do que a acusação moral das “fake news”) – recorte o vídeo ou, quem sabem, coloque uma voz em Inteligência Artificial na boca do ministro.

O segundo caso da CNN é a munição perfeita para a atual onda de contrainformação de que Lula não quer ajudar um Estado que não votou nele. 

Enquanto a manchete sugeria que foi o Governo Federal repassou menos verbas do que deveria (deliberadamente ou por incompetência – afinal... é o Estado), o lead da matéria estampava o contrário: o atraso está relacionado à falta de projetos que precisam ser apresentados pelas prefeituras.


Uma armadilha para o impeachment


O que ficou claro na tentativa de “lacração” nas redes do prefeito de Farroupilha, Fabiano Feltrin. Histérico, o prefeito grava um vídeo da conversa com o ministro da Secom, Paulo Pimenta, que o ataca de maneira hostil, afirmando que não recebeu recursos do Governo Federal.

Pimenta falou do envio de R$ 300 mil para as primeiras 72 horas e de que a prefeitura ainda não tinha enviado o plano de trabalho para a formalização do pedido e a definição do tamanho da verba, para o envio de mais recursos. Quando Pimenta propôs um debate racional, o prefeito bateu o telefone na cara do secretário.

Sabemos de que essa ausência de formalizações, enquanto os prefeitos gritam por envio de bilhões a fundo perdido, é uma armadilha para Lula – sob a lupa do TCU, o presidente facilmente poderia, em três ou quatro meses, ser alvo de processo de impeachment. Enquanto o Congresso bombaria uma “CPI das Enchentes no RS”.

No caso do jornalismo metonímico de recorte da CNN o propósito é bem claro: recortar a manchete e soltar nas redes como prova da beligerância política de Lula, sob a “credibilidade” do jornalismo corporativo.

Por isso, toda a escandalização da grande mídia com as “fake news” sobre a calamidade em RS é hipócrita. Por baixo da mesa, trafica munição para a estratégia de contrainformação da extrema-direita.

Pelo menos, o presidente dos EUA, John Biden, é mais transparente: diz com todas as letras que continuará enviando armas, tanto para a Ucrânia quanto para Israel.

Rio Grande do Sul: a catástrofe provocada e a Chance para superar as suas causas, por Jessé Souza

 

É a chance de mostrar na cara dos negacionistas que a culpa não é da natureza, mas sim deles próprios


Do site ICL Notícias:

Todos nós ficamos chocados com as cenas de uma Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, arrasada, e um estado que enfrenta a destruição social e econômica.

Nessa hora trágica, a desigualdade onipresente brasileira se manifesta, mais uma vez, já que os ricos podem se movimentar e se resguardar, mas os pobres, com casas e sonhos destruídos, não têm a mesma mobilidade.

Apesar de toda a destruição e da compaixão com as vítimas — o estado vai ter que ser reconstruído — existe um aspecto de oportunidade e de chance nesta tragédia.

É a chance de mostrar na cara dos negacionistas que a culpa não é da natureza, mas sim deles próprios. É uma oportunidade também para expor as contradições do agro (suposto pop) selvagem nacional e do seu potencial destrutivo.

Refazer a cadeia de causa e efeito é fundamental agora. E ela nos leva à crítica de todo um modelo de capitalismo selvagem baseado na destruição da natureza e no saque da riqueza de todos. É preciso aproveitar as janelas de oportunidade que se abrem.

O Rio Grande do Sul e o calor intenso em muitas capitais no outono mostram, sobejamente, que não temos tempo a perder. E quem atrasa qualquer projeto nacional para uma transição de matriz energética é o agronegócio e seus aliados no sistema financeiro.

É preciso apontar o dedo e mostrar o verdadeiro culpado. O negacionismo bolsonarista também pode ser contraposto de outra maneira a partir de agora.

O fundamental é que essa janela de oportunidade seja percebida pelos que podem alavancar e elevar a racionalidade mínima de uma sociedade entregue à propaganda e a manipulação do pior tipo. A humanidade e seu aprendizado, infelizmente, vivem das catástrofes.

A Segunda Guerra Mundial pariu um mundo, para citar apenas um exemplo dentre muitos, que elevou a humanidade a outro patamar civilizatório. A democracia, o respeito a autonomia dos povos, o acordo social-democrata, todos são decorrentes do aprendizado do pós-guerra.

As situações limite impõem a reflexão sobre o que é essencial e o que é secundário, e este é um grande processo de aprendizado civilizatório.

A tragédia do Rio Grande do Sul é a nossa maior catástrofe até aqui. Precisamos usar este fato, além de ajudar as vítimas, obviamente, para nos contrapor aos negacionismos, que servem ao capital predador, e conseguir também um outro patamar civilizatório para o país.

A luta contra a desigualdade e o cuidado da natureza precisam andar juntos e serem postos acima de qualquer outra coisa. E a inundação do estado gaúcho nos fornece a melhor janela de oportunidade que poderíamos ter.

Mas é preciso primeiro inteligência, para compreender a importância da chance, e, depois, coragem para agir. A urgência deste assunto é para ontem.


Rio Grande do Sul e o grande desafio da reconstrução da democracia, por Luís Nassif

 

É preciso devolver ao país o sonho do pacto nacional de reconstrução, sabendo que uma falha será explorada vilmente pela turba bolsonarista.


Do Jornal GGN:

Repito o que escrevi no “Xadrez do segundo tempo de 8 de janeiro e o New Deal de Lula“. O movimento de fakenews atual, em torno da tragédia do Rio Grande do Sul, emula em tudo a conspirata de 8 de janeiro.

  1. Bolsonaro esconde-se em um bunker. Em 2022, em Miami; agora, no hospital.
  2. Há um movimento articulado de redes, tentando desqualificar a ação do governo na tragédia, da mesma maneira com que tentaram fazer em relação às urnas eletrônicas.
  3. Junto, o discurso de ódio articulado por influenciadores, dos quais o mais ostensivo é um tal de Pablo Marçal, que parte para a agressão ostensiva contra os poderes, nitidamente esperando um confronto.

Todo esse alvoroço do bolsonarismo tem uma razão de ser: uma tragédia, da proporção da gaúcha, permitirá a consolidação de um pacto de solidariedade nacional, dependendo da maneira como o governo se conduzir nesse episódio.

O exemplo óbvio é o New Deal, de Franklin Delano Roosevelt, que salvou os Estados Unidos – e a própria democracia – após a crise de 1929.

No artigo detalhamos aspectos centrais do plano. Os pontos centrais foram a constituição de vários comitês para organizar o plano de ação e de gastos do governo; o foco central na questão social e na construção da solidariedade.

É curiosa a comparação da tragédia gaúcha com aquela produzida pelo furacão Katrina nos Estados Unidos.

O furacão Katrina inundou uma área superior a 225.000 km², afetando severamente os estados da Luisiana, Mississipi e Alabama. As cidades de Nova Orleans e Gulfport sofreram os danos mais extensos, com grande parte de suas áreas submersas sob as águas da inundação.

Calcula-se que houve o deslocamento de mais de 1 milhão de pessoas, saindo de suas casas e abrigando-se em outras regiões. O custo total ficou entre US$ 100 e US$ 200 bilhões, representado pela reconstrução de casas, empresas, estradas e pontes, além dos esforços humanitários.

A reconstrução da infraestrutura básica, energia e água potável, foi completada nos primeiros meses. Mas a reconstrução de casas, empresas e comunidades foi um processo mais lento, exigindo um esforço conjunto de governos, organizações sem fins lucrativos e moradores locais.

Assim como em Porto Alegre, a principal causa do desastre foram as falhas nos sistemas de diques de contenção de Nova Orleans. Os maiores afetados foram as comunidades de baixa renda.

Ainda não há um cálculo da extensão da área alagada no Rio Grande do Sul. Mas o número oficial de famílias desabrigadas é de 537.380. Mais de 81.285 pessoas estão em abrigos temporários espalhados pelo estado.

Há um mar de possibilidades à frente, se houver planejamento, determinação política e foco na responsabilidade social e ambiental.

No plano fiscal, há uma série de medidas possíveis, já adotadas em outras épocas, como empréstimo compoulsório, CPMF para financiar a transição ambiental do país, além das aguardadas tributações sobre renda e patrimônio. Há ainda os recursos orçamentários disponíveis.

Mas o grande desafio será o do planejamento da reconstrução do estado. Será demorado, custoso, polêmico e com o gabinete do ódio explorando maciçamente as dificuldades de atuação oficial na região.

Administrar esse desastre será uma questão de vida ou morte para a democracia brasileira. Um fracasso do governo abrirá espaço para a volta do bolsonarismo. Daí a responsabilidade de Lula, de espelhar-se no planejamento do New Deal, cercar-se de gestores competentes e valer-se da criatividade e da ousadia para o redesenho do Rio Grande do Sul.

Tem que explorar com eficiência o sentimento de solidariedade que brotou em todo país; articular adequadamente as parcerias com o estado e os municípios; envolver o setor privado, especialmente o setor bancário – puxado pelo Banco do Brasil e BNDES. E, principalmente, devolver ao país o sonho do grande pacto nacional de reconstrução, sabendo que qualquer falha será explorada vilmente pela turba bolsonarista.