terça-feira, 14 de maio de 2024

Dias de Modernidade Tóxica: o desrespeito à civilidade e à estranheza, por Elusiane Prinz & Marcelo Henrique

 

Algumas ações essenciais, destacadas por especialistas, são possíveis e factíveis a todos os cidadãos brasileiros

Do Jornal GGN:




Dias de Modernidade Tóxica: o desrespeito à civilidade e à estranheza

por Elusiane Prinz e Marcelo Henrique

Abrimos este ensaio com uma citação de Bauman, (BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 122): “A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a abandoná-la ou a renunciar a alguns dos traços que os fazem estranhos”.

Diante disto, novas questões contemporaneamente têm surgido, materializando desafios à educação e à sociedade como um todo. Muitas delas decorrem de novas formas de comunicação e, consequentemente, das oportunidades que as novas tecnologias (TICs) proporcionam a um número cada vez maior de humanos. As maiores usuárias de tais instrumentos são as gerações novas e, ao mesmo tempo em que os benefícios se incorporam ao viver quotidiano, surgem riscos e malefícios.

Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou que “uma em cada seis crianças/adolescentes, afirma que sofreu cyberbullying no ano de 2022” (Agência Francesa de Notícias, AFP. Uma em cada seis crianças foi vítima de cyberbulling em 2022. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-em-cada-seis-criancas-foi-vitima-de-cyberbullying-em-2022-em-44-paises-diz-oms/>. Acesso em 10. Abr. 2024).

Cyberbullying é um tipo de assédio que decorre da utilização de tecnologias de comunicação e informação. Torna-se necessário, antes, conceituar bullying como o termo que deriva da palavra bully. A origem do termo nada tem a ver com o sentido que se dá, moderna e contemporaneamente a ele, pois que derivando do alemão boel o significado é “irmão ou amante – pessoa agradável, que ama”). A partir do Século XVI, o termo passou a se referir à “pessoa ameaçadora e barulhenta” e, mais à frente, referindo-se à “pessoa que ameaça ou constrange os mais fracos”. Ambos se relacionam a tipos de comportamentos intencionais (deliberados, propositados), de hostilidade, praticados por pessoas/grupos, para prejudicar outros, sendo mais comum entre jovens e adolescentes e jovens, mas visualizado entre adultos, inclusive os de idade mais avançada.

Vale salientar a adaptação fácil do bullying tradicional, comum em escolas de qualquer nível de ensino (básico ao superior), ao ambiente virtual, como cyberbulling, e, aí, seu espectro deixa de ser exclusivo dos ambientes que envolvem estudantes. O locus (virtual) proporciona uma sensação de maior liberdade e a exacerbação dos comportamentos e emoções, distanciando-se, pela “proteção” das telas, da costumeira e tradicional inibição de muitos, em ambientes presenciais.

Como o chamado trânsito cibernético possui baixo controle social, a variabilidade de tempo de interações virtuais (ambientes, plataformas, ferramentas ou redes) potencializa os casos de bullying. Nas redes sociais, nos aplicativos e em jogos em rede, online, muitas crianças, adolescentes e jovens interagem com conhecidos/desconhecidos, diariamente e por horas e esse contato online “facilita” a manifestação dos sujeitos, e acaba sendo um ambiente propício para ataques de todos os níveis.

Muitos equivocadamente acreditam ser seguro o espaço virtual é seguro, sobretudo na visão dos agressores, já que existe a possibilidade de serem apagados posts, comentários, vídeos e memes. Mas isso não é de todo verdadeiro, pela possibilidade de recuperação com o uso de sistemas específicos e a intimação dos “hospedeiros” (sites, blogs, programas ou aplicativos), para que forneçam informações e recuperem dados, sendo, portanto, quase impossível que esteja apagado o que foi virtualmente publicado.

Outra questão é o “anonimato”, com a utilização de perfis fakes ou sem identificação, sem a utilização de identidades ou fotos reais nas contas, que gera a falsa ideia de proteção e não culpabilidade. Mesmo nesses perfis, plataformas, sites e redes sociais possuem elementos suficientes para a identificação do usuário, na maioria dos casos.

Um abuso nas redes também precisa ser avaliado em relação à potencial ou real dimensão da audiência envolvida, em face da disseminação em larga e, por vezes, altíssima escala, especialmente se as postagens “viralizarem”, com replicação “ao infinito”, nem sempre quantificada em termos de alcance total e, neste caso, poderá haver a cumplicidade em relação ao autor original. Esta repetição, inclusive, gera o dano repetido, pois prejudica diversas e sequenciais vezes a vítima.

No âmbito jurídico-legal, a mensuração da culpa e a delimitação do dano (material e moral) para as quantificações financeiras na condenação e outras penas são avaliadas a partir do manifesto desejo de praticar o ato e prejudicar outrem (intencionalidade), mediante provas da autoria, do crime e do real prejuízo à vítima.

Entre os típicos exemplos típicos de tais ações violentas/criminosas temos as ações de envio, recepção ou repasse de mensagens prejudiciais, a revelação de assuntos sigilosos baseados na confiança interpessoal, a difusão de informações que provoquem vergonha ou embaraço, ou, ainda, a veiculação de fotos (íntimas, sensuais, íntimas ou relacionadas a situações privativas de alguém), bem como atitudes de ameaça e perseguição.

Neste cenário, as situações podem desencadear impactos físicos, emocionais e/ou psicológicos, alcançando as vítimas e ou pessoas próximas, como familiares. Registra-se um conjunto de sentimentos de dor e sofrimento, raiva e humilhação, de violação e vulnerabilidade. Muitas pessoas, chegam a mudar de residência, cidade ou trabalho, em razão de não suportarem os efeitos danosos para suas vidas habituais.

O que começa no território das redes sociais pode continuar em espaços presenciais, quando, assim, a violência inicialmente digital acaba se tornando convivial, em consequências de ordem moral e física, podendo gerar diversos efeitos na saúde física e psíquica da vítima, resultando, inclusive, óbitos.

Preocupante é a circunstância de que jovens e adolescentes, desde tenra idade (e sem qualquer supervisão ou orientação), expõem, muitas vezes, suas identidades, localizações e costumes, em perfis públicos nos múltiplos contextos digitais atuais, em face das novas gerações terem destacada facilidade em operar equipamentos, tecnologias e sistemas, inclusive compartilhando informações e dados pessoais. E empresas de tecnologia e os donos das redes e plataformas também colaboram com a retroalimentação, atendendo públicos e demandas.

Então, como mensurar o impacto na saúde mental das crianças, adolescentes e jovens? No contexto clínico, registram-se sentimentos de humilhação, vergonha, inadequação, isolamento, aliados ao aumento dos níveis de ansiedade, exponencialmente. Também solidão, insegurança, timidez, baixa autoestima, medos e fobias, raiva e estresse. Os relatos dos pesquisados também alcança, em número significativo, o uso/abuso de álcool e drogas. Problemas psicossomáticos variados, assim como ansiedade e depressão, inclusive o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com ocorrências da ideação suicida e da tentativa ou consumação de suicídios também figuram presentes.

Muitas das vítimas acaba tendo receio de informar a seus pais, responsáveis ou especialistas educacionais que estão sofrendo o cyberbullying, porque podem ser tolhidos em sua liberdade de acessibilidade à internet, ou, ainda, no caso de pessoas próximas – como colegas de estudo, por exemplo – ficarem sujeitos a retaliações do agresso. Um número significativo de pessoas atingidas, também, acredita que tais adultos nada poderiam fazer em relação ao agente que lhe prejudica, nem podem alterar a situação vivida.

Estamos conscientes de que o assédio generalizado, materializado nas ocorrências de bullying e cyberbullying ultrapassou os limites físicos e psíquicos e se configura como um grande assédio energético e espiritual, já que a energia não está sujeita nem ao tempo nem ao espaço. O contato online, assim, alcança a psicosfera de todos, influenciando pensamentos, sentimentos e comportamentos. Espaços que seriam de aproximação convivial, fraterna e de inclusão na interação, por aproximarem pessoas geograficamente distantes, para o compartilhamento de ideias e a troca salutar de experiências e desenvolvimento humano, em espaços democráticos, tem se tornado um prejudicial vespeiro.

Nosso país conta com avançada legislação a respeito, citando-se, por exemplo, as Leis Federais ns. 12.307/2012, 13.185/2015, 13.277/2016 e 14.811/2024, voltadas seja à instituição de um dia nacional de combate a tais práticas, seja para o acompanhamento e apoio psico-sócio-jurídico às vítimas (mas também aos seus agressores, em face de destacadas patologias), atuando, também, na capacitação de docentes e outros profissionais pedagógicos e da saúde, pais e familiares, alcançando ainda ações dentro da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente.

Algumas ações essenciais, destacadas por especialistas, são possíveis e factíveis a todos os cidadãos brasileiros: a) observação do comportamento dos discentes, para alerta e orientação em relação ao uso e aos abusos da tecnologia, previamente às agressões, realizando ações preventivas; b) promoção de ações de atenção às vítimas, concomitante ou posteriormente, de acolhimento incentivando as denúncias, conjunturalmente nas instituições de ensino; c) inclusão de pais, familiares e a comunidade correlata, de forma permanente, em colaboração às ações preventivas, repressivas e de esclarecimento.

Outrossim, como esta realidade deve ser um mote de preocupação e ação dos governos, é primordial o envolvimento de setores especializados (Administração, Jurídico, Educação, Assistência Social e Saúde, por exemplo) em projetos específicos voltados à conscientização das comunidades das nossas cidades, ao combate de práticas nocivas e de apoio integral às vítimas, mas também aos agressores, já que estes são portadores de enfermidades ou patologias.

Neste tempo de permanentes lutas contra retrocessos e barbáries de toda a sorte e de afirmação democrática, ações efetivas que contemplem a discussão da temática e estejam orientadas à prevenção, à orientação e à solução dos problemas reais da nossa sociedade são fundamentais.

Não por outra razão trouxemos o pensamento de Bauman na abertura deste artigo: é imperioso universalizar o princípio do respeito às diferenças (as estranhezas de que fala o autor), ampliando-se a convivência pacífica e inclusiva, como característica essencial da civilidade contemporânea.

***

Os autores: Elusiane Prinz é Terapeuta Sistêmica, graduanda em Psicologia (UNISUL/SC). Marcelo Henrique é advogado e administrador, ambos pela UFSC, tendo cursado Mestrado em Ciência Jurídica (UNIVALI/SC), Doutorado em Direito (Universidade Católica de Santa Fé – Argentina) e está cursando Doutorado em Administração (UFSC).

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