Quem ouve os povos originários sabe que não basta um discurso lógico e científico para darmos meia volta e evitarmos o suicídio coletivo.
Mãe Terra e seus filhos pedem socorro
por Dora Incontri, no Jornal GGN
Hoje vou falar de alguns lugares comuns, mas tão urgentes, e que apesar de todos os discursos, tratados e tragédias, pouco se move para soluções. Ontem, estava 35 graus em Bragança Paulista, cidade onde moro, antes tão fresca na primavera. Meu jardim ressecado, as flores retorcidas, tudo diferente. Muitas desabrocharam antes do tempo, algumas árvores frutíferas, que ofereciam regularmente e sem rega, jabuticabas, limões, limas e laranjas, estão mirradas e quase estéreis.
Todos, em toda parte do planeta, temos sofrido as altas temperaturas, os incêndios, a agricultura devastada, as enchentes, o ar sufocante, o horizonte esfumaçado e a perda de bens materiais, vidas animais e vidas humanas… e como avançamos na superação de toda essa tragédia, que ameaça a própria existência nossa aqui na Terra? Quase nada, ou nada mesmo!
Queria analisar dois aspectos da questão, ambos óbvios, mas não custa colocá-los na pauta de cada dia, para ver se acordamos algumas consciências.
O primeiro deles relaciona-se com o sistema predatório do capitalismo em que nos movimentamos. A essência desta lógica infernal é que nada importa para os donos do capital, nem morte humana, nem extermínio do ecossistema, nem envenenamento do solo, nem mesmo a ameaça da extinção da vida no mundo. O lucro de alguns poucos é o que vale, com absoluto descompromisso com qualquer princípio de justiça, respeito à vida e empatia humanitária. O filme Dark Waters – O preço da verdade (Dir. Todd Haynes, 2019) mostra um caso – apenas um – mas suficientemente emblemático, sobre a empresa Dupont, cuja fabricação de panelas de teflon envenenou a água, o gado e a população de uma cidade dos EUA, desde a década de 50. E embora, depois de processos e multas (sempre irrisórias diante do lucro obtido), a empresa tenha mudado a substância que provocava maiores problemas, ainda assim, o outro agente químico adotado não é completamente seguro para a saúde. E o antigo, que comprovadamente era prejudicial – e eles já sabiam disso – permanece para sempre conosco. Numa pesquisa de 2007, nos EUA, foi constatado que 98% das pessoas, carregavam no sangue o gás venenoso, que tem o bonito nome de ácido perfluorooctanoico (PFOA). Ou seja, quando se sabe de um caso desses e pensamos ainda nas toneladas de agrotóxicos na agricultura, na poluição da atmosfera, nas micropartículas de plástico na água e tantas outras aberrações, explica-se por que vivemos uma verdadeira epidemia de câncer no mundo.
Na outra ponta do problema, no ecossistema do planeta, tudo está revirado e fora do eixo, com o aquecimento global, o derretimento das calotas polares, as enchentes e as secas…
Mas o sistema continua indiferente, predatório, coadjuvado pelas próprias vítimas. Quantos incendiários contratados Brasil afora, para ajudar o agronegócio? Pessoas sem eira nem beira, pagas para queimar as terras e alastrar fumaça e morte sobre o país!
O outro aspecto que queria trazer para a questão é que estamos todos – os donos do poder e as vítimas do sistema, e ainda os que submetidos a esses poderes predatórios, se fazem coadjuvantes dos crimes humanos e ambientais, queimando matas e matando indígenas, por exemplo – estamos todos, dizia, desconectados da natureza, da nossa e da natureza de que fazemos parte, como seres viventes do planeta.
Quem ouve as lições dos povos originários – e temos um grande deles que entrou recentemente na Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak – sabe que não basta um discurso lógico e científico para darmos meia volta e evitarmos o suicídio coletivo. Aliás, o negacionismo científico é uma das tônicas dos extremistas de nosso tempo – e nesse negacionismo se inclui a rejeição da emergência climática planetária.
É preciso que resgatemos algo longinquamente perdido em nossa civilização: é a conexão com a natureza, sentirmo-nos (e não apenas sabermo-nos) parte integrante dela. É uma ligação profunda, que nos invade, que nos sustenta. E então, quando a natureza é ferida, sentimos em nós.
Nesse sentido, é preciso dizer que essa conexão mística com o todo é uma forma de espiritualidade que está presente em todas as correntes religiosas do mundo e mesmo não religiosas – André Comte-Sponville por exemplo fala de uma espiritualidade ateia, que entretanto, se vale desse sentimento de pertença ao todo. Freud se refere à sensação oceânica. Para os religiosos, essa conexão é a própria presença divina em todas as coisas e a comunhão com esta presença nos traz harmonia, felicidade e bem-estar.
Seja como for, é impossível, em minha visão, mobilizar as pessoas para retomarem sua integração com a natureza – e, portanto, fazerem ações concretas para protegê-la – sem esse forte sentimento interno de unidade com todas as coisas.
Espero apenas que dê tempo de unirmos ciência objetiva e consciência integrada para dizermos um basta a tanta destruição e salvarmos a nossa própria pele e podermos continuar a habitar esse belo planeta azul, onde devemos construir uma sociedade digna de sua beleza, em fraternidade e paz.
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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