Há tragédias tão dolorosas para o ser humano, que só alguma forma de fé pode emprestar algum sentido ou confortar um tanto o coração
O espiritismo pode consolar, mas não deve alienar
por Dora Incontri
A reencarnação não te ensina a esperar, mas a lutar!
José Herculano Pires (1914 – 1979)
Todas as tradições espirituais, desde que vividas de forma saudável, sem fanatismo e intolerância, têm o poder de dar resiliência, conforto e esperança diante das adversidades da vida. Nos últimos 40 anos, há pesquisadores em respeitáveis universidades internacionais, que estudam o impacto positivo da espiritualidade na saúde humana. Harold Koenig, psiquiatra da Universidade de Duke, por exemplo, escreveu um livro de mais de mil páginas estudando as relações entre Religião e Saúde, Handbook of Health and Religion, em coautoria com Dana King e Verna B. Carson, publicado pela Oxford University Press. Em português, temos dele um livro mais resumido que é Medicina, Religião e Saúde: o encontro da Ciência e da Espiritualidade, pela Editora LPM.
Os espíritas em geral apreciam esse tipo de pesquisa porque vem corroborar, primeiro, a ideia de Kardec de que seria possível estudar cientificamente aspectos da espiritualidade; segundo, porque confirma o que ele mesmo também dizia a respeito dos efeitos positivos da prece, da fé racional, do engajamento num caminho sincero de ligação com Deus.
Há tragédias tão dolorosas para o ser humano, que só alguma forma de fé pode emprestar algum sentido ou confortar um tanto o coração. É verdade que autores nihilistas consideram que buscar apoio numa crença qualquer de transcendência significa fraqueza e covardia, porque nesse caso, o ser humano não está vivendo autenticamente (para citar uma expressão de Heidegger), enfrentando a realidade de sua finitude, com toda a angústia dela decorrente.
Hoje, ficamos sabendo da triste notícia da morte do neto de Lula, uma criança que parte por uma doença fatal. Há dor mais terrível do que a morte de um filho ou de um neto? Sabem aqueles que passaram por isso, que uma crença, uma esperança ou uma certeza (que os espíritas afirmam ter) da realidade da vida após a morte é algo que alivia um pouco – embora apenas um pouco – uma tragédia dessas.
Como o espiritismo propõe uma prática de comunicação com os que partiram dessa vida, ter notícias de quem está do outro lado da margem é algo que conforta mais ainda, além de uma simples crença ou esperança de imortalidade da alma. Essa prática de comunicação com o além, dada a institucionalização do espiritismo no Brasil, perdeu a espontaneidade e a naturalidade com que Kardec a encarava. Nos primórdios do espiritismo na França e também durante as primeiras décadas do século XX no Brasil, até mesmo quando eu era criança nos anos 60, faziam-se sessões mediúnicas em casa e Kardec pressupunha que esse tipo de comunicações, em ambientes familiares, harmoniosos, eram mais confiáveis e mais propícias a entrarmos em contato com nossos queridos. Para isso, ele escreveu O Livro dos Médiuns, para orientar quem quisesse, numa prática mediúnica segura e controlada, em qualquer tempo ou lugar, sem necessidade da tutela de instituições.
No Brasil, nas últimas décadas, a mediunidade livre, espontânea, mas embasada nas orientações de Kardec, deu lugar ao estrelismo mediúnico, em que milhares de pessoas desesperadas vão em busca de um determinado médium (confiável ou não, ou às vezes inicialmente confiável, mas que depois se perde com a fama e com natural incapacidade de atender a todos). Isso acaba criando idolatria e dependência psíquica.
Também no Brasil, o espiritismo, visto nesse seu aspecto “consolador” – vai caminhando para formas de alienação social e política. A consolação passa a ser uma espécie de anestésico diante das injustiças, das calamidades sociais, da estrutura desumana da sociedade.
Porque sim, se há tragédias que independem da vontade e da participação humana, que simplesmente se abatem sobre nós, sem que ninguém tenha responsabilidade pelo ocorrido, há inúmeras outras, como todas as formas de violência, fome, discriminação, negligência, abandono, corrupção – que decorrem inteiramente da canalhice de muitos ou de alguns, da estrutura injusta da sociedade, da desumanização do humano. E então, não basta dar explicações reencarnatórias ou nos confortarmos na prece. É preciso assumir uma atitude de luta, uma consciência da necessidade de mudar as estruturas sociais que permitem as aberrações diárias a que assistimos.
Aí também é preciso reconhecer que a luta amparada por uma perspectiva de eternidade confere mais serenidade. Olhar o mundo caótico em que vivemos, com a plena consciência das forças e dos interesses econômicos que massacram milhões de pessoas, que arrasam com a natureza, que arrancam vidas prematuramente – pode sem dúvida nos deprimir profundamente e até nos paralisar a ação. A sensação de impotência diante da estrutura brutal em que estamos mergulhados talvez seja uma das causas mais importantes do adoecimento psíquico em massa que observamos hoje, e que inclusive induz muitos ao suicídio.
Então, sim, o olhar consciente do que é preciso mudar, com o olhar espiritual de que há uma espécie de garantia universal, eterna de que o bem sempre vence, de que um dia todos evoluem, confere um respiro para a luta, empresta uma esperança diante das perdas e dos obstáculos. Como dizia Gandhi, numa frase que nunca me esqueço e estou citando de memória, no filme de Richard Attenborough: “quando me desespero, lembro-me que todos os tiranos passaram e que todos os impérios caíram”. Nesse momento, o Mahatma compreendia que a dinâmica da vida é a mudança e que todo mal é efêmero.
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