quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

As religiões e a traição de seus próprios valores, por Dora Incontri

 

Passados 500 anos, temos alguns herdeiros da Reforma repetindo a comercialização da fé, a intolerância em relação a outras religiões


Conexões – espiritualidade, política e educação

As religiões e a traição de seus valores

por Dora Incontri

Nesta semana, um dos assuntos que percorreu o noticiário e as redes sociais, incluindo memes e charges, foi que o Governo Lula retirou a isenção de impostos para salário de pastores, benefício concedido pelo (des)governo anterior. O tema nos joga de imediato na questão do poderio político-econômico das igrejas evangélicas (sobretudo as neopentecostais), que se enraíza desgraçadamente no Brasil, sem nos esquecermos de que a Igreja Católica manteve domínio sem comparação, durante séculos, em todo o Ocidente. Aliás, os reformadores justamente se opuseram ao poder quase absoluto do papado e Lutero criticou veementemente a exploração financeira clerical, com a chamada venda das indulgências – espécie de passaporte para o céu.

Passados 500 anos, temos alguns herdeiros da Reforma repetindo a comercialização da fé, a intolerância em relação a outras religiões, que católicos praticavam com tanto afinco, e sobretudo, agarrando-se ao poder político.

Por que se dá essa espécie de degeneração das tradições espirituais, que parecem quase sempre trair suas bases? Se remontarmos a Jesus, que todas as igrejas cristãs dizem seguir, não encontramos nele nenhuma espécie de desejo de poder, nenhuma mercantilização da fé e muito menos algum tipo de hostilidade ao outro. Cristo dizia ter vindo servir e não ser servido; acolhia judeus e samaritanos (os hereges de então), curava marginalizados e romanos e a única vez que se indignou com palavras fortes foi justamente para expulsar os vendilhões do templo e para chamar os donos do poder religioso de então – os fariseus – de “cegos condutores de cegos” e de “sepulcros caiados”.

A obra As duas fontes da moral e da religião apresenta uma tese instigante a esse respeito, embora obviamente esteja longe de esgotar o tema (voltaremos a ele em outros artigos). Trata-se de um livro do filósofo francês Henri Bergson, por acaso um judeu, simpatizante do cristianismo, e que também se debruçou sobre os fenômenos psíquicos, tendo ocupado por pouco tempo, no ano de 1913, a presidência da Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres (Society for Psychical Research). Para Bergson, no início de uma religião ou às vezes dentro de uma mesma tradição, com a aparição de um líder importante, de um profeta, de uma personalidade arrebatadora, cria-se um influxo espiritual, um élan de evolução, um impulso sagrado. Depois, vem a institucionalização, a burocratização, a hierarquização e perde-se o espírito, a criatividade e a beleza daquele primeiro impulso. Passa-se da espontaneidade do bem, à regra imposta, ao esfriamento, e depois, acrescentemos, ao desgaste e esquecimento daquela essência original.

Podemos especular também que, sendo a religião um lugar em que se busca necessariamente a virtude, ela serve de refúgio para aqueles que querem aparentar o bem, para melhor praticar o vício, o abuso e o poder. Assim, a hipocrisia é a tônica de muitos – como era a dos fariseus, contra os quais Jesus se insurgiu. Falsos gurus, sacerdotes mal-intencionados, médiuns abusadores – em toda parte, a espiritualidade é manipulada para oprimir e enganar. Deve-se fazer um parêntese importante: em todos esses casos e tantos outros, o poder religioso também está arraigado no patriarcado.

Por isso mesmo, se quisermos (e acho que é bom insistir nisso), preservar práticas espirituais saudáveis, na vida em sociedade, devemos submetê-las sempre a uma crítica que desconstrua poderes, que horizontalize as relações, que esteja comprometida com a origem legítima, generosa, compassiva, profunda da tradição a que se pertence. A posição crítica diante dos abusos, violências e opressões, cometidos no campo da religião, pode se socorrer das leituras materialistas (como as análises de origem marxista ou psicanalítica por exemplo) mas também podem emergir da retomada dos valores prometidos na própria origem de uma dada espiritualidade, que são em geral sempre construtivos e elevados.

Temos visto acontecer nesse sentido, uma via de mão dupla nesse momento histórico no Brasil: ouvimos o tempo todo ateus citando Jesus para criticar cristãos que dele se afastam… E vemos cristãos que se servem de teorias sociológicas e filosóficas para entender as tendências alienantes das religiões… Nesse cruzamento benéfico, podemos talvez alcançar um ponto de equilíbrio, em que tenhamos condições de vivenciar uma espiritualidade que seja espontânea, aberta, despojada de poderes e hierarquias. Se conseguirmos despertar o povo para esse tipo de reflexão e consciência crítica, teremos erradicado, com o tempo, as ondas de conservadorismo opressor na sociedade, que se enraízam nos campos religiosos.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

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