O PM, suposto negociador de vacinas, parece ter sido plantado para bagunçar as investigações de prevaricação de Bolsonaro no caso Covaxin.
Artigo de João filho
O DEPOIMENTO DOS IRMÃOS MIRANDA colocou a CPI da Covid em uma rota bastante perigosa para o governo Bolsonaro. Se antes a comissão investigava a negligência na compra de vacinas e a falta de oxigênio em Manaus, agora ela aumentou o escopo de investigação e mira um esquema de corrupção envolvendo a compra de vacinas.
Na quarta-feira, o empresário bilionário Carlos Wizard, apontado como integrante do “gabinete paralelo”, evocou o direito de ficar calado para todas as perguntas dos senadores, garantido por um habeas corpus dado pelo STF. É estranho que um inocente abdique da oportunidade de provar sua inocência para todo o país depois de uma avalanche de acusações. Wizard perdeu a oportunidade, por exemplo, de explicar sua ligação com Francisco Maximiano, o dono da Precisa Medicamentos, que intermediou a compra da Covaxin para o Brasil. Os dois empresários tiveram sócios em comum em algumas de suas empresas. O silêncio do bilionário acabou soando como um berro de confissão.
Na quinta, o cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, Luiz Paulo Dominguetti, foi convocado para depor sobre uma acusação que fez em entrevista à Folha de S. Paulo. Ele contou ao jornal — e confirmou na CPI — sobre a existência de um esquema de corrupção envolvendo a compra de 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca. O policial se apresentou como representante da empresa Davati Medical Supply, que estaria intermediando o negócio com a AstraZeneca. Segundo ele, o governo pediu propina de 1 dólar por dose.
Um policial militar da ativa que faz bico para intermediar um negócio milionário envolvendo venda de vacinas é, inequivocadamente, um picareta. A biografia do cidadão atesta isso. À medida que ele respondia os senadores, mais a picaretagem ficava flagrante. Quando perguntado se já havia sido preso, disse não se lembrar. Quem nunca esqueceu se já foi preso, não é mesmo? Quando perguntado se já havia feito postagens favoráveis a Bolsonaro em suas redes sociais, também disse não se lembrar, apesar de ter sido um militante bolsonarista bastante atuante no Facebook. Há em sua página uma série de postagens exaltando Bolsonaro e seus aliados e outras atacando políticos de esquerda. Além de bajular o presidente, o policial também usava a rede para divulgar a BBom — uma pirâmide financeira que abrigou a turma da Telexfree, uma outra pirâmide que rodou na justiça após dar calote em milhares de brasileiros.
A picaretagem do depoente, portanto, é ponto pacífico. Tudo isso ficou ainda mais evidente quando ele mostrou um áudio em que o deputado Luis Miranda teria enviado a Cristiano Alberto Carvalho, que também seria um dos representantes da Davati. No áudio aparece a voz de Luis Miranda intermediando a venda de algum produto não identificado. Mas o policial tentou de maneira sorrateira induzir os senadores a acreditarem que o deputado estava intermediando a venda de vacinas em conluio com o seu irmão. Não havia nada no áudio que indicasse isso.
Foi uma tentativa ridícula de descredibilizar a denúncia dos irmãos Miranda e transformar os denunciantes em denunciados. O áudio descontextualizado daria ao bolsonarismo uma nova narrativa para chamar de sua. Segundo Luis Miranda, o áudio não tem nada a ver com compra de vacinas, mas com compra de luvas para um cliente seu nos Estados Unidos. Miranda registrou em ata notarial que o áudio é de 2020 e refere-se a compra de luvas. O próprio Cristiano, representante da Davati que teria enviado o áudio, desmentiu Dominguetti e confirmou que o áudio não se tratava sobre compra de vacinas.
A flagrante mentira do depoente em relação ao áudio fez com que a tensão tomasse conta dos senadores bolsonaristas na CPI. Quando a comissão decidiu periciar o celular de Dominguetti, Flávio Bolsonaro se mostrou preocupado: “Tem que analisar só o áudio (de Miranda), não pode ver outras mensagens”. Jorginho Mello, do PSL de Santa Catarina, reiterou por diversas vezes ao depoente que ele poderia retificar as informações que havia prestado “para não se complicar”.
Os senadores oposicionistas suspeitaram do amadorismo da coisa toda e levantaram a possibilidade do policial ser um cavalo de Troia do governo para atrapalhar as investigações. Tudo indica que o policial militar bolsonarista foi escalado pelo bolsonarismo para turvar as investigações da CPI colocando esse bode na sala. O factoide de Dominguetti parece ter sido criado para tirar o foco da prevaricação do presidente da República no caso da Covaxin e colocá-lo no Ministério da Saúde, mais precisamente no ex-secretário executivo Élcio Franco e seu chefe, o ex-ministro Pazuello. A denúncia fake tirou a bucha do colo do Planalto e a colocou no colo dos militares que comandavam o MS.
Enquanto o bolsonarismo faz o diabo na CPI, o cerco político continua se fechando para o presidente. Após as denúncias de Luis Miranda, partidos de direita e de esquerda se juntaram para fazer um “super pedido” de impeachment, que unificou as acusações de mais de 100 denúncias apresentadas à Câmara dos Deputados. Na sexta, 2, a PGR pediu a abertura de investigação contra Bolsonaro por prevaricação no caso Covaxin, que já foi autorizada pelo STF. Enquanto isso, o presidente segue fazendo ameaças golpistas ao colocar dúvida sobre as urnas eletrônicas. O objetivo óbvio é o de contestar o resultado se sair derrotado e preparar a cama para um golpe.
O imbróglio todo é complexo, difícil de entender, e ainda tem muitas pontas soltas que precisam ser explicadas. Mas alguns fatos levantados por Dominguetti já foram confirmados. O ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, acusado pelo policial de pedir propina, lançou nota confirmando que o governo Bolsonaro negociou as vacinas com a Davati. Ele também confirmou o encontro com Dominguetti em um restaurante de um shopping em Brasília e entregou o nome de um outro militar do ministério da Saúde que esteve presente: o tenente-coronel Marcelo Blanco. A AstraZeneca afirmou que nunca negociou vacinas com a Davati e que, no Brasil, trata do assunto apenas com a Fiocruz.
Um resumo dessa opereta cafona: dois militares importantes do MS tiveram um encontro fora da agenda e longe do local de trabalho com um policial militar que fazia bico de vendedor para uma empresa que intermediava a venda de vacinas que nunca existiram. Ladrões de galinha negociavam propinas milionárias de fazer inveja a qualquer propineiro que já passou pela República. É uma bizarrice sem tamanho, mas que está em conformidade com o que se espera do bolsonarismo.
Essa bagunça é resultado direto da intervenção militar que Bolsonaro implantou no Ministério da Saúde, que transformou a pasta em um cabidão de emprego para militares sem competência para suas funções. Quando falta competência, sobra espaço para a corrupção.
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