segunda-feira, 5 de julho de 2021

Bolsonaro, a serpente que Bergman previu, por Camila Koenigstein

 


No Brasil o ovo foi "chocado" antes do imaginado. Saiu do desejo de parte do corpo social ignorante, racista, completamente frustrado pela sua insignificância social, indivíduos que carregam o que há de mais vergonhoso no ser humano.

Salvador Dali - com modificações nas dimensões

Bolsonaro, a serpente que Bergman previu

por Camila Koenigstein

Em 1977, o cineasta sueco Ingmar Bergman dirigiu o filme O Ovo da Serpente. O longa-metragem tem uma atmosfera perturbadora, em que a pobreza, a fome, o medo e o desespero inundam a vida dos protagonistas, Abel Rosenberg (David Carradine) e Manuela (Liv Ullmann).

A personagem principal, Abel, um trapezista judeu crescido nos Estados Unidos, retorna a uma Alemanha empobrecida durante o período da República de Weimar (1919-1933), juntamente com seu irmão e a cunhada. O irmão aparentemente se suicida, e Abel fica à disposição da polícia, que tenta entender o caso. Logo, sua cunhada começa a trabalhar em um bordel frequentado por empresários e políticos.

Em alguns momentos o filme exibe certo surrealismo, pois mesmo com o desamparo total da sociedade os bordéis seguem abertos e a vida noturna funciona dentro do caos absoluto que vivem tanto os protagonistas como as demais personagens.

O trapezista, perdido, não consegue compreender o que está acontecendo. Em muitas cenas caminha pelas ruas sozinho, e vê a destruição. Um cavalo morto, feito em pedaços, e alguém oferecendo uma parte do animal mostram a extensão da fome extrema, que também se revela em outras cenas.

O desamparo inicial, que, precisamente, surge da fome e faz com que o bebê busque o seio materno que emana leite, ou seja, a busca por sobrevivência, permeia todo o filme.

Não sabemos exatamente qual o período retratado pelo diretor, mas os indícios apontam para o pior ano de Weimar, o terrível ano de 1924.

Abel, diferentemente das personagens dos outros filmes, não está de lado algum. Esta é sua tragédia: ele desistiu do circo e não acha nada atraente a violência que toma forma nas ruas, nos mesmos becos pelos quais passa em voltas noturnas. Para o cineasta, Abel é a resposta àqueles que decidiram saudar os nazistas: a vítima que compartilha apenas o olhar, com dificuldades para fugir, sem posição a tomar.

A luz do dia é quase inexistente e, na escuridão da noite, o medo e a decadência ficam evidentes – um divertimento deprimido que gera constrangimento no espectador, corpos em contato, mas vazios, quase sempre desesperados, homens e mulheres divididos entre um riso triste e o pranto completo. Uma Alemanha que em nada recorda a beleza da cultura desenvolvida no fim do século XVIII, começo do XIX.

Conforme o filme avança, Abel já sente que de alguma maneira sua identidade é um problema, embora não entenda exatamente do que se trata, e chora. Uma tristeza profunda está instalada nele e também na sociedade.

Entre as dificuldades que os protagonistas enfrentam, falas sobre Adolf Hitler surgem como pequenos enunciados, ainda que banalizados. Seus primeiros movimentos sem êxito são motivo de piada, ninguém leva a sério o soldado ressentido e sua verborragia, quase sempre em um tom agressivo. O filme termina com o desaparecimento de Abel, que representa a morte física ou simplesmente seu sumiço como ser social dentro da massa apática que percorre as ruas de Berlim.

Em diversos momentos fica clara a intenção do diretor de expor que a estrada para a chegada do nazismo estava sendo pavimentada. A base tinha sido construída no desamparo social oriundo de um sistema político sem estabilidade, com repetidas crises entre os partidos políticos de esquerda e de direita. Um sistema econômico corroído não só pela inflação descontrolada[1], mas também pelas sucessivas crises geradas após a 1ª Guerra Mundial e posteriormente à queda da bolsa de valores em 1929. Para o historiador Eric Weitz, nenhum país resistiria a tantas catástrofes juntas. 

Diante do cenário político/social, a violência se instaurou, o que gerou a carência e o esvaziamento da vida política. Weimar[2], com sua constituição progressista, acabando em ruínas nas mãos de Adolf Hitler.

O que Weimar nos ensina

O ofício do historiador não permite comparar o incomparável. Contextos distintos, tempos, processos e mentalidades são fundamentais quando fazemos análises sociais. No entanto, podemos utilizar determinados fatos para compreender alguns fenômenos. 

Em 31 de agosto de 2016, a presidente Dilma Rousseff sofreu um golpe de Estado camuflado de impeachment. Todo o processo foi rápido, o que possibilitou que Michel Temer, então vice-presidente, assumisse a Presidência do Brasil. Durante sua gestão nada ocorreu, nenhum tipo de progresso social, um período de inércia, uma espécie de ”gestação” que permitiu a ascensão de Jair.

É importante ressaltar que, desde o início da gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2003 – o primeiro partido de esquerda a chegar ao poder após a redemocratização do país –, houve um forte rechaço à presença de um homem vindo do campo popular.

Uma espécie de pavor começou a perturbar determinados setores da sociedade. A ameaça comunista, a possibilidade de ascensão de pobres às universidades, algo de igualdade social e certos planos de governo eram insuportáveis para muitos, o que se tornou um problema que deveria ser eliminado. Embora Lula tenha tentado conciliar os interesses de classes, uma tarefa complexa em um país que tem como principal característica o classismo e racismo, ele enfrentou o preconceito e a resistência da elite e a classe média brasileira, uma “lumpemburguesia’’ que sempre almejou ser elite, ainda que saiba que o capital exigido para pertencer a este grupo reduzido seja quase impossível.

Após quatro mandatos – o último marcado pela decadência política e ideológica – ocorreu o golpe de Estado. Os escândalos diversos de corrupção, as alianças equivocadas e uma série de fake news destruíram absolutamente tudo o que o PT ergueu.

Os erros do partido são inegáveis. No entanto, o peso das camadas que sempre estiveram descontentes com o partido e daqueles que ascenderam socialmente mas não desenvolveram consciência de classe teve um papel preponderante. O giro à extrema direita foi a via que muitos encontraram para minar qualquer projeto social progressista.

Segundo Francisco Luiz Lopreato, professor do Instituto de Economia do Centro de Conjuntura da Unicamp, “a crise que levou à queda do PT no poder foi, em grande parte, produzida pela atuação da própria política brasileira […] O PT introduziu uma nova forma de governo no país, chamada de ‘desenvolvimentista social’, um contraponto à política neoliberal adotada por Fernando Henrique Cardoso nos anos anteriores. Dentro desse desenvolvimento social a proposta básica foi avançar, e isso tem uma presença mais forte do Estado […] A partir da eleição de Dilma para o segundo mandato, há uma turbulência política que alterou completamente e contaminou todos os indicadores [econômicos] e, em grande medida, tem o reflexo da rixa política que se criou na eleição e isso influenciou diretamente todos os índices porque houve uma suspensão [do governo], as expectativas foram contaminadas”.

Assim como em Weimar, o contexto de instabilidade política e imaginários sociais que ainda perduram nas estruturas da sociedade brasileira abriram as portas para o desamparo social que se alojou com o golpe de 2016.

É inegável que essa fragilidade democrática, que também esteve presente em Weimar, com sucessivas mudanças de primeiros-ministros, foi formando a fina membrana que o médico insano pronunciou na última fala do filme: “Observe toda esta gente. São incapazes de uma revolução. Estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas em dez anos… em dez anos […] eles terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência, alguém se adiantará e colocará seus sentimentos sem palavras. Alguém prometerá um futuro – alguém fará suas exigências –, alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos. E então haverá uma revolução e nosso mundo se fundirá em sangue e fogo”.

No Brasil o ovo foi “chocado” antes do imaginado. Saiu do desejo de parte do corpo social ignorante, racista, completamente frustrado pela sua insignificância social, indivíduos que carregam o que há de mais vergonhoso no ser humano. O comportamento deles é similar ao que hoje vemos como absurdo quando nos deparamos com os comícios organizados durante o nazismo. São orgulhosos da nação, ainda que a mesma esteja em total decadência moral.

Dai nasceu o presidente messiânico, cheio de promessas, incorruptível, limpo, mas que hoje é responsável pela morte de mais de meio milhão de brasileiros.

Envolvido em um dos maiores escândalos da história recente, lucrando por meio das vidas perdidas dentro de uma grande pandemia, Bolsonaro é a serpente que Bergman de maneira esplêndida retratou.

ALMEIDA, Angela de Mendes. A República de Weimar e a ascensão do nazismo. São Paulo. Brasiliense, 2008.

WEITZ, Eric D. La Alemania de Weimar – Presagio y Prelugio. Madrid. Turner Publicaciones, 2019.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-08/apos-13-anos-pt-deixa-o-poder-com-avancos-sociais-mas-economia-debilitada


[1] Um dos problemas enfrentados pela Alemanha nesse período era a inflação. Os dados de sua ascensão podem demonstrar seus efeitos sobre a população em 1919 o marco de papel moeda valia 14 de marcos, em 1920, 13 em 1920 em outubro de 1922, 11000 em janeiro de 1923, 1.40000. As principais vítimas do processo inflacionário foram os assalariados e a classe média, que haviam feito suas economias em dinheiro. Em compensação, os meios financeiros, os proprietários rurais e os industriais nutriam-se da inflação.

[2] Não cabe dúvida que a Revolução Alemã de 1918-1919 e o estabelecimento da República de Weimar deveriam ser motivos de celebração tanto dentro como fora da Alemanha. As mobilizações populares anteriores à revolução forçaram que o kaiser Guilherme II abdicasse, assim como o resto dos reis e príncipes que regiam os estados alemães. (A Alemanha era então um sistema federal, permanece igual.) O Reich alemão, desenvolvido por Otto von Bismarck entre 1870 e 1871 com uma união das famílias dinásticas, havia desaparecido, derrotado pela imensa pressão do Exército, da Marinha e da classe trabalhadora, por meio das mãos daqueles homens que saíram às ruas pedindo o fim da Primeira Guerra Mundial e a imposição de um sistema mais aberto e democrático, inclusive socialista. (Eric Weitz)

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Um comentário:

  1. Obrigado pela leitura muito esclarecedora,as vezes me perguntava como o caos se instalou na Alemanha e mais recentemente no Brasil e o texto conseguiu demonstrar com muita clareza.

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