I - Introdução
Manfredo Araújo de Oliveira é professor de filosofia
na Universidade Federal do Ceará e é considerado uma das cabeças
filosóficas mais brilhantes de nosso país. Neste artigo, com o título
singelo,TRAÇOS BÁSICOS DE NOSSA SITUAÇÃO HISTÓRICA: CONJUNTURA 2019
mostra a perversidade da nova face do neoliberalismo, totalmente
centrado no mercado a ponto de negar direitos humanos e qualquer limite à
lógica do mercado livre que visa a máxima acumulação possível. Este
estudo nos ajuda a entender o que querem impor ao nosso pais. Por isso,
embora longo, nos ajuda a entender nossa situação atual. - Leonardo Boff
II -
O ultra neoliberalismo perverso e anti-vida
Para que análise de conjuntura? “Evangelizar é tornar o Reino de Deus
presente no mundo”(AE 176) . Para realizar esta tarefa, exige-se uma
Igreja que seja capaz de buscar compreender o mundo em que está
inserida, de escutar a sociedade e compreender suas características,
seus problemas, suas necessidades específicas, de ter sensibilidade para
as gigantescas desigualdades sociais, de considerar com toda seriedade e
sem temor todas as questões que a sociedade levanta, conhecendo e
respeitando o ser humano em todas as suas dimensões, mostrando profunda
compaixão diante do sofrimento, das angústias, e confrontando-nos com as
inúmeras formas de injustiça. Os gritos que pedem justiça continuam
ainda hoje muito fortes. “O medo e o desespero apoderam-se do coração de
inúmeras pessoas…(AE 52)”.
Vivemos hoje numa nova era (LS 102) por isto se faz necessário antes
de tudo para a evangelização nos darmos conta dos traços gerais da forma
da sociedade moderna em que vivemos que é extremamente complexa e
diferenciada. Os Pastores, diz o papa, “acolhendo as contribuições das
diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre aquilo que
diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização
implica e exige uma promoção integral de cada ser humano” (EG 182).
A pergunta que se impõe é: como se configura nossa situação histórica? O Papa Francisco articula na Laudato Si um diagnóstico valoroso da atual crise social e ambiental assumindo os dados fornecidos pela comunidade científica atual. Sua afirmação básica é que há uma profunda relação entre a crise social e a crise ambiental de tal modo que elas não são propriamente duas crises, mas dois momentos de uma única crise socioambiental que se radica num sistema econômico tecnocrático. “As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS n. 139, p. 88).
Os bispos brasileiros em sua mensagem ao povo brasileiro
afirmam(2019): “A crise ética, política, econômica e cultural tem se
aprofundado cada vez mais no Brasil. A opção por um liberalismo
exacerbado e perverso que desidrata o Estado quase a ponto de
eliminá-lo, ignorando as políticas sociais de vital importância para a
maioria da população, favorece o aumento das desigualdades e a
concentração de renda em níveis intoleráveis, tornando os ricos mais
ricos à custa dos pobres cada vez mais pobres, como já lembrava o Papa
João Paulo II na Conferência de Puebla (1979)”.
Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, um braço da Fundação
Getúlio Vargas, o Brasil em dez anos tirou 30 milhões de pessoas da
pobreza e se tornou referência nas políticas de combate à fome. Do final
de 2015 até 2017 os indicadores dispararam e 6,3 milhões de pessoas
voltaram à miséria. Nos últimos 3 anos o aumento da pobreza foi de 33%. A
concentração de renda vem aumentando desde o último trimestre de 2014.
Segundo dados do IBGE, 15, 2 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da
linha de pobreza com menos de R$ 406 por mês. A lista de excluídos só
aumenta: entre 2016 e 2017 subiu de 25,7% para 26,5 o que significa a
exclusão de quase 2 milhões de pessoas. Segundo estes dados, 55 milhões
de brasileiros passam por privações dos quais 40% no Nordeste. Na crise,
a renda per capita dos ricos subiu 3% e a dos pobres desceu 20%.
Doenças já erradicadas retornaram e a mortalidade infantil avançou sobre
as famílias mais pobres.
Na última semana de maio, o IBGE divulgou que o PIB brasileiro caiu
0,2% de janeiro a março, a indústria extrativa caiu 0,6%, a indústria de
transformação 0,5% e a e construção 2,%, a pecuária 0,5%, o
agronegócio, porém, saiu ileso de tal modo que o risco de recessão este
ano é evidente. Já atualmente o Brasil, segundo o IBGE, tem 13, 2
milhões de desempregados, 28, 4 milhões subutilizados, 11,2 milhões sem
carteira assinada e 23,9 milhões trabalham por conta própria. Segundo o
Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial no ano a
indústria perdeu 2,7%. O Ceará tem a 5a pior renda do Nordeste com 44,7% de sua população na pobreza.
Estes dados confirmam o que sociólogos já vêm dizendo há muito tempo: O Brasil não é um país pobre, é um país injusto.
O Estado brasileiro recolhe uma grande quantidade de impostos sobretudo
dos pobres e da classe média e repassa a maior parte para os mais
ricos. Exemplo: 300 bilhões de reais como pagamento de juros da dívida
pública[a taxa de juros do Brasil é a 7a mais alta do mundo]
passam por ano para o 1% mais rico. Neste contexto, a ideia mesma de
justiça social parece ter desaparecido e “hoje, com a hegemonia da
cultura neoliberal, a noção de justiça de mercado sobrepujou e
deslegitimou a noção de justiça social”(SUNG J.M., Idolatria do dinheiro e direitos humanos, 2018, p. 14).
Que pretende dizer o Papa quando fala de que a crise se radica num
sistema econômico tecnocrático? E os bispos brasileiros quando falam de
liberalismo exacerbado e perverso? Que Projeto de Sociedade está sendo
implementado?
- A) Neoliberalismo: o projeto atual do Capitalismo
O projeto fundamentalmente consiste na implementação radical do que se denomina “Liberalismo Econômico”.
Esta corrente de teoria econômica é conhecida como a Escola de Chicago
que tem, contudo, seus fundamentos filosóficos nas teses da assim
chamada Escola Austríaca, cujo principal expoente é Ludwig von Mises
(entre nós há o Instituto “Mises Brasil’). Teses básicas: o direito de
propriedade é o único direito universal, fundamental e absoluto que
começa com o direito absoluto do próprio corpo e inclui todos os bens
que se possa adquirir. Deste direto se derivam o direito absoluto de não
agressão à propriedade e o direito de defender a propriedade.
O Estado é visto como o grande usurpador da propriedade e a
única instituição eticamente aceitável na esfera da atividade econômica é
o “Mercado Livre”. Todos no mercado livre têm os mesmos direitos. Cada
indivíduo é o único responsável por seus objetivos e as estratégias
escolhidas para alcançá-los. Suas regras constituem um mecanismo
semelhante às leis da natureza: elas são algo objetivo que o ser humano
não tem condições de modificar. Por esta razão, devemos estudar a ação
humana e a cooperação social como um físico estuda as leis da natureza
(naturalismo epistemológico).
Assim como não podemos julgar boa ou má a lei da gravidade, do mesmo modo não podemos julgar as
leis do mercado: elas simplesmente se impõem a nós, portanto…”o mercado
não pertence ao campo das ações e interações humanas e sociais” (SUNG
J.M., op. cit. p. 130), é algo superior e incontrolável e desta forma
não tem sentido aqui levantar questões éticas que pertencem a outro
nível. A única questão aqui é sua eficiência técnica. O mercado é
compreendido como um mecanismo auto-organizador e enquanto tal sua
avaliação tem como critério a eficiência e não a valoração ética.
Não há direitos fora das leis do mercado. Portanto, a desigualdade e a
exclusão nada têm a ver com injustiça social. Assim, a pobreza não é um
problema ético, mas uma incompetência técnica. O maior erro dos
opositores do capitalismo é assim a acusação de injustiça social baseada
na ideia de que “a “natureza” concedeu a todas as pessoas certos
direitos só pelo fato de terem nascido”. Por esta razão, no que toca à
distribuição da riqueza…”não tem sentido referir-se a um suposto
princípio natural ou divino de justiça”(Cf. MISES L. von, The Anti-Capitalist Mentality, Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2008, p. 80, 81).
O Estado, quando me obriga a pagar impostos para garantir os chamados
direitos sociais (moradia, escola, saúde, etc.) me obriga à
solidariedade social e cria parasitas que vivem da minha propriedade.
Assim, o imposto é uma forma de confisco da propriedade. Portanto, nem
saúde, nem educação, nem previdência, nem segurança pública, nem justiça
se legitimam enquanto financiados pelo Estado. Os pobres não passam de
indivíduos que escolheram objetivos errados ou estratégias não adequadas
, ou seja, são indivíduos que por culpa própria perderam a competição
com outros. Assim, o mérito (a meritocracia) emerge como único critério
de ascensão social. Há muitos perdedores na sociedade que são
fracassados e vivem a exigir privilégios.
Como isto se traduziu depois num projeto de sociedade? Este
projeto foi pensado nos anos quarenta sobretudo por F. von Hayek e M.
Friedman e o objetivo fundamental foi contrapor-se ao surgimento do que
se chamou o Estado de Bem-Estar Social articulado basicamente a
partir das ideias do economista britânico J. M. Keynes com o objetivo
fundamental de salvar o capitalismo marcado por uma profunda crise desde
os anos 20 do século passado decorrente de problemas criados pela
lógica de exclusão e concentração de riqueza do mercado e das
reivindicações neste contexto da classe trabalhadora. Estas propostas do
liberalismo econômico ficaram esquecidas até que o capitalismo entrasse
de novo em crise nos anos 70.
A ideia básica que moveu Keynes era que a insuficiência da demanda
que marcava o capitalismo em crise só poderia ser superada através de
uma política de pleno emprego e de redistribuição de riqueza (promoção
do consumo para manter a acumulação, a eficiência econômica). Para que a
economia pudesse atingir isto, foi necessária a intervenção do Estado
como regulador e parceiro, ou seja, intervenção nos mecanismos do
mercado através de políticas econômicas e sociais de algum modo
limitadoras de sua lógica. Sem dúvida, aqui também o mercado é visto
como o sistema econômico que produz maior eficiência produtiva, mas não é
sempre um sistema justo na distribuição. Assim, o Estado aparece como o
grande parceiro do mercado que através de suas intervenções tem
condições de minimizar crises econômicas e recessão e agir na direção de
enfrentar os problemas sociais aqui gerados.
O grande mecanismo do Estado de Bem-Estar Social para realizar isto foi a criação do que se chamou de Fundo Público
para operar de duas maneiras básicas: Financiamento da Reprodução e
Acumulação do Capital, o que levaria a aumentar a taxa de lucro, e
Financiamento da Reprodução da Força de Trabalho através do que se
chamou o “salário indireto”, as chamadas políticas sociais: educação
gratuita, medicina socializada, previdência social, etc.
Numa palavra, trata-se de uma forma de articular a economia através
do financiamento simultâneo do capital e do trabalho. Durante a segunda
guerra mundial foi publicado na Europa um relatório (de Beveridge)
propondo um sistema universal de luta contra a pobreza que assim
articulou os objetivos desta forma de organizar a economia. Numa
palavra, o Estado de Bem-Estar foi instalado através dos seguintes
elementos: 1) Intervenção do Estado nos mecanismos de mercado; 2)
Política de pleno emprego (melhoria dos rendimentos dos cidadãos); 3)
Institucionalização do sistema de proteção; 4)Institucionalização de
ajudas para os que não conseguem estar no mercado de trabalho.
A partir daqui se articulou na Europa a ideia do que se chamou Estado Social de Direito
(no Brasil normalmente só se fala de Estado de Direito)que consiste
basicamente em incluir no sistema de direitos fundamentais não só as
liberdades individuais, direitos civis(direitos negativos que
protegem as pessoas contra as usurpações ilegítimas do Estado), e os
direitos positivos políticos, (direitos que garantem a participação na
formação da vontade pública), mas também os direitos econômicos, sociais
e culturais (direitos positivos ou direitos à prestação, direitos
sociais) [Cf. RICOEUR P., Percurso do reconhecimento, São
Paulo: Loyola, 2006, p. 213): satisfação das necessidades básicas e
acesso a bens fundamentais para todos como exigências éticas a que o
Estado deve responder o que só é possível através de intervenção
(pode-se falar aqui de uma justificação ética das políticas sociais).
Aqui a tese básica é de que é possível e irrenunciável proteger os
direitos sociais que caracterizam a cidadania social: a satisfação de
necessidades básicas e acesso a bens fundamentais a todos os membros da
sociedade o que implica que o Estado se torne um Estado interventor no
campo econômico e social o que pressupõe a consciência de sua
corresponsabilidade na condição social da sociedade sobretudo de seus
membros mais vulneráveis.
O resultado deste processo foi o aumento da capacidade de consumo das
classes menos favorecidas. E com isto nasce o que se chamou consumo de
massa. Isto levou a um endividamento do Estado e nos anos 70 a uma
profunda crise causada por muitas razões entre as quais uma muito
fundamental foi gerada pelo fato de que os grandes oligopólios
transnacionais não enviaram os lucros obtidos para seus estados de
origem e assim não alimentaram os fundos públicos nacionais.
Esta crise violenta dos anos 70 foi chamada de “colapso da modernização”
e provocou o reaparecimento das teorias econômicas elaboradas nos anos
40. Este foi o fenômeno que se denominou de Neoliberalismo. O básico
nesta proposta é a eliminação do duplo financiamento que caracterizou a
fase anterior. Agora o financiamento se dirige exclusivamente ao
capital: o neoliberalismo corta o fundo público no polo do financiamento
dos bens e serviços públicos, numa palavra, corte do salário indireto
(os programas de bem-estar social) através de reformas.
Para os adversários do “Estado Social” a insistência no financiamento
dos bens e serviços públicos, políticas consideradas irracionais e
populistas, de fato produz menos crescimento e mais desemprego a longo
prazo que são o resultado da não consideração da escassez de recursos e
da lógica de funcionamento dos mercados. Assim, a recomendação agora é
para os mercados financeiros a desregulamentação e a eliminação das
barreiras à entrada e à saída do capital-dinheiro; para os mercados de
trabalho, a flexibilização e a remoção das cláusulas sociais,
“ineficientes e danosas para os trabalhadores” (Cf. BELLUZZO L. B.,
Carta Capital n. 1054 p. 45).
O objetivo fundamental agora é maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos do capital o que faz com que os direitos sociais tendam a desaparecer e a serem reduzidas as alíquotas de impostos
sobre os maiores rendimentos, ou seja, impostos mais baixos para os
ricos (o sistema tributário estimula a especulação e não o trabalho),
desregulamentação dos mercados de trabalho, políticas que aumentam as
riquezas para os mais ricos (servem ao 1% mais rico), ampliam a
desigualdade econômica e não produzem o crescimento prometido. Uma das
políticas fundamentais a concentração excessiva no controle da inflação e
do orçamento ignorando as reais ameaças à prosperidade econômica que
são a crescente desigualdade, o sub-investimento e fosso crescente entre
produtividade (aumento de 161% em 40 anos) e salário(19%. 80% dos
empregos conseguidos é atividade de baixa remuneração. O problema é
mundial e nacional, plenamente demonstrado no caso dos Estados Unidos,
vistos como modelo, pelo relatório planejado e coordenado pelo prêmio
Nobel de economia J. Stiglitz no livro Rewiriting the Rules of American Economy,
Roosevelt Institute, 2015 mostrando também que é possível reduzir a
desigualdade e ao mesmo tempo melhorar o desempenho econômico .
- B. Beluzzo traduziu isto assim: …”é preciso libertar as forças criativas da iniciativa privada e permitir a fluência mercantil desimpedida das restrições impostas pela intervenção estatal” (Carta Capital 1054, p. 45). Daí a cruzada global contra a intervenção estatal e os direitos sociais e econômicos criados pelas políticas do Estado Social, que, segundo seus adversários, constituem um obstáculo à operação das leis de concorrência e por isto são políticas irracionais e populistas. Elas, a longo prazo, produziriam menos crescimento e mais desemprego e por isto devem ser substituídas por políticas que não se contraponham às hipóteses científicas do indivíduo utilitarista. Por isto, os defensores do “mercado totalmente livre” (considerado condição para a realização do ser humano enquanto ser livre) se contrapõem radicalmente a estas políticas consideradas ineficientes e perturbadoras do processo produtivo e, sobretudo, pelo que elas pressupõem: seu financiamento através de impostos.
O caminho agora, então, proposto era outro por levar em
consideração as restrições de recursos e o funcionamento dos mercados
competitivos: desregulamentação dos mercados financeiros e eliminação
das barreiras de entrada e saída do capital-dinheiro, flexibilização do
mercado de trabalho e remoção de cláusulas sociais, política monetária
controlada por um banco central independente, etc. Aqui está, diz J.M.
Sung (op. Cit. p. 16), “a grande novidade “espiritual” e cultural do
nosso tempo”, é este o “novo espírito” do capitalismo, seus novos valores fundamentais em contraposição ao desenvolvimentismo anterior: confiar plenamente no mercado enquanto sistema auto-organizador
que uma vez libertado de regulações e intervenções indevidas soluciona
por si mesmo todos os problemas econômicos e sociais, satisfazendo “a
sempre crescente gama de desejos”(CF. HAYEK F.A. von, The Road to Serfdom,
Chicago: Uni. of Chicago Press, 2007, p. 70). Deste modo, o mercado e
não o ser humano é o construtor da história: no lugar de um sujeito
consciente entra em cena um mecanismo inconsciente, impessoal, que é
politicamente incompatível com a democracia. As atividades das
organizações da sociedade civil, dos sindicatos, dos movimentos sociais
são simplesmente inúteis, desprovidas de sentido, baseados em conceitos
primitivos.
Assim, o Neoliberalismo significa um processo de contração do espaço público dos direitos e
um processo de ampliação dos interesses privados de mercado o que levou
a um aumento significativo do papel das ciências e da tecnologia no
processo de produção o que faz com que muitos cientistas sociais
contemporâneos afirmassem que a ciência a tecnologia se transformaram
nas forças produtivas mais importantes.
Neste contexto se mostra que agora o eixo básico de nosso projeto de civilização
é a subordinação da qualidade de vida dos seres humanos ao crescimento
econômico (acumulação do capital). Aqui o aumento do PIB é o sinal mais
claro de progresso. A sociedade do crescimento é igualmente a sociedade
do consumo ilimitado e a ideia hoje difundida fortemente de que nisto
consiste propriamente a felicidade humana. Os resultados deste processo
ameaçam a vida humana e toda vida no planeta. A exploração ilimitada da
natureza, cujos efeitos se mostram nas catástrofes socioambientais que
experimentamos e constitui elemento central neste modelo, alertam-nos
para o fato de que o modelo econômico vigente pode encaminhar a
humanidade a um colapso ecológico-social.
O ser humano radicalizou este processo no século XX utilizando-se para isto das ciências da vida
que tornaram possível a intervenção humana no mundo vegetal e animal. É
neste novo contexto que podemos compreender os problemas que emergem em
nossos tempos que são ainda mais agravados pela incerteza a respeito
dos efeitos das novas tecnologias altamente eficientes que parecem
ameaçar a identidade do mundo através das novas manipulações agora,
sobretudo, no campo dos organismos (vegetais e animais)através da
descoberta do íntimo dos organismos, da identificação e manipulação dos
genes, da técnica da transferência e recombinação do patrimônio genético
e, portanto, a possibilidade de se produzir em laboratório combinações e
variações dos mais diversos seres com grande repercussão, sobretudo na
agricultura, na economia e na medicina como também na vida dos
trabalhadores (LS 134), tudo isto vinculado a negócios financeiros
gigantescos como o patenteamento de genes, a produção de órgãos para
transplantes e o desenvolvimento de oligopólios. Neste contexto social
não se descarta a possibilidade de uma guerra bioquímica e
bacteriológica.
As consequências são desastrosas: o mercado absolutizado
vinculou produtividade progressiva e miséria progressiva, processos de
desenvolvimento e processos de exclusão. Elemento ideológico fundamental
neste contexto é a defesa do mercado como único elemento regulador da
vida societária o que implica a recusa radical da intervenção estatal a
não ser quando ela se põe a serviço das políticas neoliberais: liberação
do movimento dos capitais, privatizações, combate à inflação através de
uma alta taxa de juros, afrouxamento fiscal, etc. A ideia aqui
pressuposta é que o movimento do capital, deixado em si mesmo, tenderia
ao equílibrio, ou pelo menos à harmonia, tese cada vez mais ameaçada
pelos resultados produzidos (Cf. FAUSTO R., Caminhos da esquerda. Elementos para uma reconstrução, São Paulo: Companhia das Letras, 2017 p. 97-98).
Neste contexto, o desemprego se tornou estrutural porque a
forma atual do capitalismo não objetiva incluir toda a sociedade (pleno
emprego) no mercado de trabalho e consumo, mas atua por exclusão: o
custo da força de trabalho tem que diminuir. Daí também o aumento
acelerado da terceirização. (No Brasil, para Giannotti: “…o medo de
rebaixamento do padrão de consumo transforma as classes médias num
barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento, mas logo se
recolhe”. Cf. GIANNOTTI J. A., Savonarolas oficiais, in: Democracia em Risco?, op. cit., p.165-166).
- Neckel, do Instituto de Sociologia da Universidade de Hamburgo, mostra-nos em seus trabalhos que em muitas sociedades modernas está em andamento uma transformação da própria desigualdade com surgimento de privilégios “neo-feudais” para os ricos enquanto as classes populares enfrentam a exclusão (entre 30 e 35 milhões de trabalhadores vivem hoje em condições de privação de direitos próximas à escravidão, privados de qualquer forma de segurança social) e retorno do trabalho forçado (21 milhões no mundo, OIT).
Está assim acontecendo uma re-feudalização do capitalismo moderno
(expressão usada por J. Habermas), uma vez que processos atuais de
modernização estão conduzindo a padrões sociais pré-modernos que recriam
o antigo como se fosse o novo. Isto se traduz em vantagens
significativas para as elites (rendimentos gigantescos sobretudo dos
mercados financeiros. Aqui a herança e o casamento voltam a ter um papel
essencial. 10% do topo da pirâmide detêm 80% a 90% da riqueza global
aponta Th. Piketty. Cf. PIKETTY Th., O Capital no século XXI,
Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca Ltda., 2014, p. 231 e ss) que se
beneficiam de uma oportunidade de enriquecimento única na história
enquanto as camadas inferiores não só empobreceram, mas se encontram
cada vez mais expostas a condições de trabalho que não correspondem aos
padrões modernos elementares em matéria de relações contratuais
(salários não garantem a sobrevivência). Os trabalhadores estão, em
diferentes situações, em dependência pessoal nas relações de trabalho e
de exploração, sem contrato ou estabilidade, que favorecem a violência
e a correção social.
Outro efeito deste processo e ao mesmo tempo seu impulso fundamental foi a Financeirização. No caso do Brasil, como nos mostra JESSE SOUZA, A Elite do atraso. Da escravidão à Lava Jato,
2017, a sociedade brasileira foi vítima desde 2013 de um violento
ataque do capitalismo internacional com um duplo objetivo: a) quebrar a
experiência nascente do BRICS (autonomia do país na inserção
internacional; b) transformar o orçamento público por meio da dívida
pública. Isto é efeito da nova configuração do capitalismo, agora
transnacionalizado, ou seja, possuindo um espaço de ação além dos
estados nacionais. Desta forma, hoje no centro deste sistema está um
descompasso suicida entre o “capital produtivo” e o “capital improdutivo
(rentista) com enormes impactos na vida humana. O mercado, portanto, é
hoje em primeiro lugar o mercado financeiro (nacional e internacional):
em nossos dias o trabalhador é muito mais explorado pelo capital
financeiro, pela taxa de juros: não podendo pagar à vista, ele com a
taxa de juros paga proporcionalmente o dobro ou mais pelo que compra.
Com isto, a fração financeira do capital passa a comandar o processo
econômico, o processo político e a esfera do Judiciário. Isto conduz do
ponto de vista político à criminalização dos movimentos sociais, ao
ataque aos sindicatos e à difamação dos partidos de esquerda tentando
eliminar a mediação política dos interesses das classes populares.
Na realidade hoje, quem ganha dinheiro, são aqueles que podem fazer
aplicações financeiras. No mesmo semestre em que a indústria desabou, o
lucro dos maiores bancos cresceu 22,3%. Desta forma, as instituições de
crédito sugam a capacidade de compra da população e esterilizam o
processo produtivo, pois seu principal motor, o consumo das famílias,
fica paralisado. Daí porque se pode hoje falar da hegemonia do “capital
improdutivo”: ele não produz e não cria emprego. Isto gerou uma espécie
de elite que vive de juros e não da produção. Este capital se apropria
de volumes enormes de recursos que deveriam servir ao desenvolvimento da
capacidade produtiva e ao desenvolvimento social, ou seja, é um
processo de desmantelamento das políticas do Estado de Bem-Estar Social e
uma financeirização radical do capitalismo. Passa para o centro o
aumento vertiginoso das finanças especulativas e o Brasil se destaca no
mundo como a maior e mais influente presença do rentismo na sociedade e a
classe rentista se vai apoderando das instituições estatais.
A acumulação financeira toma o lugar da acumulação produtiva.
Trata-se de uma transferência do dinheiro do povo para beneficiar os
bancos e uma minoria de aplicadores, portanto, de drenar o trabalho de
todos para o bolso da elite do dinheiro. Desaparece do horizonte a meta
de uma política consistente de distribuição de renda que possa efetivar
transformações profundas dos padrões de vida das maiorias. Ao contrário,
o receituário é definido com o objetivo de preservação dos interesses
minoritários dos poderosos e isto é lamentavelmente a repetição do mesmo
em diferentes formas na história do Brasil.
Foi no seio da nova revolução tecnológica no âmbito da informação,
dos transportes e das comunicações, que se gestou um modo novo de
acumulação e regulação do capital: a Globalização ou Mundialização
do capital. Está em jogo aqui um tipo de “liberalismo transnacional” já
que por decisões políticas desregulamentou o mercado mundial, sobretudo
os mercados financeiros produtores da especulação em grande escala e
estimuladores da criação dos paraísos fiscais, uma “financeirização que
sufoca a economia real”(LS 109). Trata-se da formação de uma “sociedade
mundial”, porque o mercado e o sistema de comunicação produziram uma
conexão global estratificada. O objetivo fundamental aqui é a construção
de um mercado consumidor mundial.
Revela-se aqui com clareza que o desenvolvimento tecnológico se faz
exclusivamente em função da maximização dos ganhos sem preocupação “com o
justo nível da produção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado
responsável do meio ambiente ou dos direitos das gerações futuras”(LS
109). Neste contexto, as pessoas são avaliadas de acordo com sua
capacidade de participação no mercado e assim de poderem tonar-se
consumidoras efetivas. O consumo se transforma em medida da felicidade
e, portanto, da realização humana e conduz a um profundo individualismo.
Os seres humanos são nesta mentalidade reduzidos a instrumentos úteis
ou não para a consecução deste objetivo fundamental.
A globalização aprofundou os processos de interconexão econômica,
política e cultural, provocando uma permuta mais ampliada entre os
países e os povos aumentando a interdependência ainda que de forma
assimétrica: o super-desenvolvimento dissipador e consumista convive em
nosso mundo com a miséria desumanizadora(LS 109). Este sistema foi
possibilitado por muitos fatores entre os quais ocupam um lugar
fundamental os progressos tecnológicos com a revolução dos meios de
comunicação(LS 47). Fez-se, assim, possível ultrapassar as fronteiras do
tempo e do espaço, tornando a comunicação mundial instantânea,
estendendo para todo o planeta a difusão não só de imagens e sons no
seio de um bombardeio publicitário permanente, mas também de capitais,
de tecnologias, de ordens de bolsas e transações, informações, etc. Uma
mudança do núcleo de acumulação se vai configurando, ou seja, a passagem
do Ocidente para a Ásia, sobretudo para a China.
Na realidade, nesta dinâmica o capital angariou para si um espaço de
ação para além do espaço dos estados nacionais instituindo uma economia
global através de uma onda de desregulamentações, fusões e
privatizações, reestruturação empresarial e produtiva, expansão das
empresas transnacionais, aumentando a produção e a riqueza mundiais com
distribuição desigual de seus resultados já que privilegiando elites
hegemônicas e degradando os ecossistemas. A globalização transformou
profundamente a organização econômica, as relações sociais, os modelos
de vida e cultura, os estados, a política e acelerou enormemente
mudanças. Recorre-se hoje à lógica da globalização para legitimar o
desmantelamento das instituições de proteção social e de controle de
mercados, do exercício do papel equilibrador do Estado e da proteção dos
direitos dos cidadãos. Há grandes massas de indivíduos que são os
perdedores deste processo. Para o Papa, os problemas da fome e da
miséria no mundo não serão, como se propala, resolvidos simplesmente
pelo mercado, pois “o mercado, por si mesmo, não garante o
desenvolvimento humano integral, nem a inclusão social”(LS 109). Numa
palavra, como diz o Nobel da Economia J. Stiglitz, esse projeto tem sido
um fracasso espetacular de tal forma que o neoliberalismo deve ser
declarado morto e enterrado.
Confrontamo-nos hoje todos com a possibilidade de autodestruição da humanidade e de todas as formas de vida do planeta.
Temos consciência de que a ação humana, tecnicamente qualificada, pode
arruinar definitivamente a natureza e o próprio ser humano: o processo
de intervenção na natureza produziu um aumento considerável do bem-estar
e um aumento extraordinário do consumo, que, por sua vez, originou
tanto um aumento enorme do metabolismo com o meio-ambiente natural que é
essencialmente finito em seus recursos quanto uma assimetria entre a
capacidade de produzir e a capacidade de consumir. O que hoje se faz
cada vez mais manifesto é que a civilização técnico-científica é marcada
por uma problemática básica: a notória incompetência do ser humano em
finalizar o processo previsivelmente destruidor de si mesmo e da
natureza.
Vivemos hoje numa Sociedade essencialmente Pluralista:
multiplicidade dos imaginários sociais, multiculturalismo, diferentes
propostas éticas e religiosas, diferentes concepções da realidade,
enfraquecimento das tradições e das instituições sociais entre as quais
sobretudo a família e o Estado. Experimentamos hoje a perda de evidência
e validade incondicional de valores, convicções, formas de
comportamento, sistemas normativos, instituições o que gera uma crise
radical dos sistemas normativos, levando frequentemente a uma
relativismo difuso e mesmo ceticismo.
Neste contexto exerce enorme influência a chamada “guerra de 4a. geração” (KORYBKO A., Guerras híbridas, São Paulo: Expressão Popular,2018)em que a arma fundamental de combate é a informação. “Trata-se de produzir informações parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake-news),
mas plausíveis para quem as recebe, e difundi-las pela combinação da
mídia corporativa (TVs, rádios e jornais), mídias digitais (whatsapp,
facebook e twitter) e instituições com credibilidade, como Igrejas
cristãs, ONGs ou institutos de pesquisa” (OLIVEIRA P. A. R.de, Análise d
conjuntura, 2019, mimeo, p. 4). Esta guerra constitui o resultado da
combinação entre dinheiro, poder e conhecimento, que direta ou
indiretamente estabelecem conexões mútuas entre si na construção de uma
grande rede sem qualquer tipo de controle como existe na mídia
tradicional. De algum modo, há uma espécie de democracia direta em jogo
aqui e, como tal, foi vista como um processo de descentralização do
poder da comunicação. Sem dúvida se tratava aqui de um instrumento
importante para protestar contra a corrupção, o autoritarismo e defender
uma democracia autêntica. No entanto, criou-se também com isto um
espaço utilizado para a manipulação, a difusão de notícias falsas, para a
recuperação de concepções que se imaginava terem sido superadas e de
estímulo ao populismo e ao fundamentalismo religioso, defesa de racismo,
homofobia e autoritarismo. A influência é simplesmente decisiva na
formação da opinião pública.
Numa sociedade pluralista, a problemática do reconhecimento das diferenças se
transformou numa das forças motrizes dos movimentos sociais. Isto nos
faz perceber que as lutas na sociedade não se reduzem apenas a lutas de
natureza econômica. Verdade é que surgiram nas últimas décadas novas
lutas e novos movimentos relativos aos direitos fundamentais, por
exemplo: sem-terra, sem-teto, quilombolas, indígenas em defesa de seus
territórios e de sua cultura, pescadores, movimentos socioambientais,
segurança lazer etc. Mas começaram a surgir também neste contexto
pluralista lutas e movimentos novos em torno da defesa de direitos
especiais ou, como normalmente se diz, lutas por reconhecimento da identidade como como questões de gênero, sexuais, culturais, de deficientes, de mulheres, de etnias, etc. (Cf. AQUINO JÚNIOR F. de, Teologia em saída para as periferias,
São Paulo: Paulinas/Pernambuco: Unicap, 2019, p. 122 e ss). De maneira
geral, pode-se dizer que as igrejas estão pouco preparadas para
enfrentar sobretudo estas questões.
- B) Implementação deste projeto no Brasil
As novas tecnologias das redes digitais, que se tornaram
amplamente disponíveis para os brasileiros entre 2013-2018 introduzindo a
experiência da massa digital (Cf. DUNKER C. I. L, Psicologia das massas digitais: análise do sujeito democrático, in: Democracia em Risco?,
op. cit., p. 120) constituíram um elemento fundamental para a vitória
eleitoral deste projeto que foi alimentado por um enorme bombardeio
ilegal de Fake News (torna-se cada vez mais difícil fazer-se escutar por
argumentos) a respeito sobretudo de três questões básicas: corrupção,
violência e costumes. Isto aconteceu no Brasil, mas também nas vitórias
de Trump (Estados Unidos), Salvini (Itália), Orbán (Hungria) e Duterte
(Filipinas). Estas vitórias se inscrevem num movimento mundial de forças anti-emancipatórias que é pró-capitalista, antidemocrático, antifeminista, racista e antiecológico. A questão dos costumes
e sua interpretação religiosa se tornaram aqui questões decisivas e com
o projeto neoliberal este é um dos pilares da visão de mundo do novo
governo.
Como diz R. de Almeida: “Boa parte da argumentação dos atores
pró-conservadorismo dos costumes apela para a constatação, repetida por
eles, de que “o Estado é laico, mas a sociedade é religiosa”… o Brasil é
majoritariamente cristão. Logo o cristianismo (ou versões dele) deve prover o parâmetro moral e legal dos comportamentos”.
Portanto, as minorias se devem submeter à maioria. Com isto se está
negando a liberdade religiosa, um dos fundamentos das liberdades
modernas como diz J. Habermas (ALMEIDA R. de, Deus acima de todos, in: Democracia em Risco? 22, op. cit., p. 47). Esta problemática é apresentada numa linguagem salvacionista (retórica messiânica): este governo vai salvar o Brasil de seu câncer que são os políticos corruptos!
Um elemento importante que teve papel decisivo neste processo foi o papel assumido pelo Judiciário
na crise político-econômica das sociedades atuais (cf. entre nós, a
operação Lava Jato e o Manifesto assinado por cem procuradores e
promotores a favor da Escola sem Partido [proibição de os professores
assumirem diante dos alunos suas posições políticas e religiosas] que,
aprovada, poderá levar muitos professores ao afastamento ou à prisão).
(Cf. FAUSTO R., Depois do temporal, in: Democracia em Risco?, op. cit., p. 150 e ss).
Não se pode pensar a situação do Brasil simplesmente a partir somente
do Brasil, mas precisamente no contexto da situação do sistema global
antes apresentado. No caso brasileiro, o objetivo de implementação do
projeto neoliberal de sociedade entre nós se faz agora mais visível
através dos “Projetos de Reforma” (também denominados de “Processo de Ajuste”)
que constituem o desmonte sistemático dos direitos sociais: (é
impressionante a velocidade dos esforços para mudar a Constituição). Há
um forte retrocesso social (eliminação de conquistas sociais de décadas
com intensa participação democrática) com a perda de direitos,
desmantelamento dos programas sociais, a informalidade em crescimento
(as vagas no setor privado neste ano em sua grande maioria são informais
aponta o IBGE), a volta da fome e aumento acentuado da desigualdade.
A tendência é o agravamento da situação com a plena implementação da Reforma Trabalhista,
cujo objetivo básico é reduzir o valor da força de trabalho barateando
os custos do empresariado e precarizando o trabalho (informalidade,
contratação por hora, redução drástica de salário) o que significa
aumento do grau de exploração da força de trabalho. Cai com isto a CLT
que era o conjunto de normas que protegiam os empregados desde os anos
30 do século passado (hoje apenas um terço do total dos trabalhadores
está na CLT). As condições do mercado de trabalho começaram a piorar
desde 2015 e depois de sua implementação cresceu muito o contingente de
trabalhadores sem acesso aos mecanismos de proteção social vinculados à
formalização do trabalho como salário mínimo e aposentadoria e mesmo sem
emprego(temos a maior taxa de desemprego das Américas, 12, 7% e há
poucas perspectivas de melhora do mercado de trabalho para os próximos
anos), numa situação em que as perspectivas apontam para uma
substituição das tarefas do trabalhador por robôs. Que nos espera o uso
cada vez mais intenso dos produtos da inteligência artificial? A
Organização Internacional do Trabalho decidiu denunciar o Brasil por
violação de convenções internacionais. O país será investigado por tirar
a proteção dos trabalhadores permitindo que o negociado entre
empregados e patrões se sobreponha à lei.
Por sua vez, isto se aprofunda com a implementação da Reforma da Previdência,
reduzida a uma simples questão fiscal prescindindo dos valores éticos
aqui em questão o que se mostra por exemplo na inviabilização da
aposentadoria da maioria dos trabalhadores (um elemento muito visível
aqui é o não enfrentamento das diferenças gritantes na aposentadoria
entre o setor público e o setor privado). É importante compreender que
uma Reforma da Previdência tem um impacto geral sobre a qualidade de
vida das pessoas e expressa que tipo de sociedade se pretende construir.
Este tipo de reforma é apresentada pelo governo como solução
fundamental de todos os problemas do país hoje. Acima de tudo, afirma-se
com força que não há alternativas para a proposta. No entanto, a
pressão popular e o medo dos deputados em função das consequências de
seus votos fizeram retirar da proposta a diminuição dos benefícios para
idosos miseráveis (BCP) e a proposta de aposentadoria para os
trabalhadores rurais. Estados e municípios foram retirados da reforma e a
situação fiscal aqui é dramática, pois, tirados os pequenos estados
criados a partir de 1980, todos os outros apresentam déficit. Há três
dos maiores que gastam mais 25% (RJ, RGS e MG) das receitas para pagar
aposentados e pensionistas. Mantida esta situação, o rombo nas
previdências estaduais pode quadruplicar até 2060.
Este projeto atual é profundamente diferente de projetos anteriores
que ocorreram nos governos de F. H. Cardoso e Lula aqui não há apenas
mudanças nos parâmetros (por exemplo, mudança no tempo de contribuição,
de idade, etc.) como dizem os especialistas, mas mudanças estruturais.
As reformas anteriores procuravam viabilidade financeira, embora haja
algumas questões problemáticas. Além disto, há impacto direto das
aposentadorias e benefícios previdenciários na movimentação da economia:
para 70% dos municípios esta é a fonte principal de recursos. Agora há
uma mudança de estrutura. Passa-se de um Modelo de Repartição para um modelo de Capitalização,
(foi excluída do texto, mas o Ministro da Economia diz que ela volta)
que em última instância significa uma privatização da previdência. Por
isso, os grandes beneficiados da reforma são justamente os maiores
privilegiados do país: banqueiros, rentistas, especuladores, ou seja, o
capital financeiro.
A Capitalização é um modelo oposto ao da seguridade social. Quebra
sua espinha dorsal. O sistema atual é um sistema de solidariedade entre
gerações (no ano passado, o INSS arrecadou 391 bilhões de reais) e por
isto é essencial à distribuição de renda no nono país mais desigual do
mundo e a proposta é desmontá-lo. Na capitalização, cada trabalhador é
responsável por poupar para a própria previdência, ele tem uma conta
individual e vai capitalizá-la a vida inteira. Ele se aposenta com o que
é recolhido numa espécie de poupança individual num fundo de pensão
privado. Se um empregado não consegue capitalizar o mínimo (há muitos
trabalhadores que pensam longos períodos desempregados ou na
informalidade que é muito alta) para ter depois um benefício também
mínimo é um problema dele: ele se aposenta com o que conseguir guardar e
sabemos que a regra para a grande maioria não é sobrar, mas faltar
dinheiro até porque, por exemplo, para os trabalhadores que passam
longos períodos desempregados ou na informalidade o montante poupado não
é suficiente para manter a aposentadoria.
Além do mais se trata de uma Financeirização do sistema: são empresas
que recebem o recurso da contribuição e vão aplicar cobrando os custos.
Isto é entregar as pessoas ao mercado financeiro, porque entrega a
gestão das aposentadorias aos bancos. Aqui se apresenta como óbvia e
necessária a administração dos recursos por bancos privados. Nos países
que aprovaram este sistema, isto gerou lucros bilionários para os
administradores e uma massa de idosos em situação de pobreza (60% dos
países que adotaram a capitalização já voltaram atrás). Como fica a
situação dos que não conseguem arranjar emprego: agora com a indústria
4.0 (inteligência artificial) milhões de empregos vão acabar. O avanço
da pobreza é previsível. O tempo de contribuição de 40 anos para a
aposentadoria integral é inalcançável para a maioria. Trabalhadores
pobres e da classe média vão trabalhar mais, contribuir por mais tempo e
receber menos, o topo da pirâmide social, porém, vai continuar com seus
privilégios, embora o ministro da economia repete sempre de novo que a
reforma é para combater privilégios (Cf. caso dos parlamentares e
oficiais militares[a economia com eles representa 1% do que se pretende
tirar dos demais trabalhadores]).
A ideia de fundo é acabar com a Previdência Pública (mais
profundamente ainda, destruir o modelo de sociedade pactuado em 1988),
pois aqui não há redistribuição, pois o dinheiro que se quer economizar
vai sair dos mais pobres. A reforma é profundamente injusta, pois retira
direitos (Segundo E. Fagnani, Unicamp, 75% da economia virá da retirada
de direitos de quem ganha até dois salários mínimos, 100 milhões de
brasileiros, portanto, retiram renda dos que poderiam consumir
estimulando investimentos e geração de empregos) e dinheiro dos mais
pobres. Este é o receituário mundial do neoliberalismo tomado como
programa de governo. Só de sonegação de pagamento da previdência
por parte dos ricos são 500 bilhões de reais e o projeto não toca na
questão. A Receita Federal sabe quem são os sonegadores, mas nada faz.
Além disto o país abre mão de 350 a 400 bilhões por ano com isenções fiscais.
O governo atual não interrompeu estas politicas, mas as aprofundou com a
política dos cortes não do lucro dos banqueiros, mas das políticas
sociais. Com as políticas de ajuste já está havendo mais desemprego o
que significa redução do mercado interno, porque há muito menos dinheiro
nas mãos de muitas pessoas. Além de tudo isto já foi anunciada a
privatização das empresas estatais que porá à disposição do governo 70
bilhões a mais para serem transferidos para os mais ricos. A reforma da
previdência é apresentada pelo governo como condição necessária para que
o Brasil retome o crescimento econômico e isto é repetido
permanentemente na mídia.
O Brasil precisa de uma Reforma Tributária verdadeira que
reverta radicalmente a situação atual: hoje 70% dos impostos são
cobrados sobre o consumo e o salário e apenas 30% sobre o patrimônio. A
urgência aqui é diminuir o peso sobre o consumo da população e aumentar
sobre a riqueza e a renda o que significa que esta reforma pode ser o
grande mecanismo para combater privilégios. Acabar com a Lei Kandir que
isenta de ICMS todas as exportações agrícolas e primárias, penalizando o
povo e as contas públicas nos estados e municípios. O presidente e seu
ministro da economia estabelecem como objetivos fundamentais da reforma
tributária a simplificação dos impostos e sua redução para os grandes
empresários.
Vinculado a isto está o Congelamento por 20 anos das despesas primárias do governo federal
(traduza-se isto para gastos sobretudo em educação e saúde)(PEC 55
promulgada no governo Temer e não revogada) que praticamente paralisa as
funções públicas no país (isto é a política de Ajuste Fiscal que
começou no segundo mandato da Dilma (Já havia sido votada no governo
Temer a lei da Terceirização. O aumento do setor de serviços se tornou
estrutural, porque a produção agora opera por fragmentação em todas as
suas esferas e compra serviços no mundo inteiro). No entanto, apesar dos
cortes enormes, o déficit público continua crescendo afetando
fortemente a educação, a saúde, o programa de moradias, a reforma
agrária, os programas de apoio à agricultura familiar, etc., em
contraposição radical ao sentido social de nossa constituição.
Portanto, trata-se de um projeto de país em que não há lugar para a inclusão e a justiça social,
mas é voltado a garantir os lucros dos endinheirados inclusive tratando
todas as esferas sociais como empresas. Tudo tem indicado que até agora
o governo golpista não dá sinais de conseguir cumprir as promessas
voltadas a reequilibrar as contas públicas e retomar o crescimento
econômico. Na realidade, persistem a agonia fiscal e a instabilidade do
sistema produtivo com efeitos dramáticos a nível social: sem
emprego a desigualdade aumenta e são os pobres que pagam. Em março de
2019, a concentração de renda atingiu o maior patamar em uma pesquisa
feita desde 2012 pela Fundação Getúlio Vargas e a economia brasileira
recuou segundo o IBGE 0,2% no primeiro trimestre deste ano. Ao menos 63
milhões de consumidores, ou seja, 40% da população adulta, estão com
dívidas atrasadas informa a Serasa Experian, os preços dos ítens da
cesta básica subiram até 30% nos últimos 12 meses diz o Dieese, todos os
meses o mercado reduz a projeção de crescimento para este ano, a
arrecadação de tributos está em queda, o consumo em queda constante, o
nível de investimento em 2018 ficou no mesmo patamar de uma década
atrás.
Nossa indústria patina, ela que foi a base do avanço de todos
os atuais países desenvolvidos, entre nós depois de desacelerar em 2018,
recuou 2,7% nos primeiros meses de 2019. O país está em contramão à
situação da indústria mundial. O avanço da indústria mundial foi puxado
pelos ramos de maior intensidade tecnológica que são precisamente os
mais atingidos pela crise brasileira. Estes segmentos são decisivos para
a economia “por empregarem mão de obra mais qualificada, pagarem
salários maiores e formarem o polo mais dinâmico nas áreas de pesquisa,
desenvolvimento e inovação…muitos deles líderes da atual revolução
tecnológica que está na origem da atual da chamada indústria 4.0…(Cf.
DRUMMOND C., A indústria em farrapos, in: Carta Capital n. 1060, p. 42).
Em obediência ao projeto neoliberal, ataca-se a intervenção estatal
para garantia de direitos. A trajetória de nossa economia confirma que,
além disto, sua coordenação foi decisiva para a obtenção de taxas
elevadas de crescimento. A tese agora é que o Estado é sinônimo de falta
de eficiência e liberdade. Há grande pressão para a redução do Estado
(daí a venda de estatais) em articulação com os interesses do grande
capital. “Bolsonaro, Paulo Guedes e seus “seguidores”, dentro e fora do
governo, empenham-se na desconstrução do arcabouço institucional que sustentou o desenvolvimento do País ao logo de cinco décadas” (Cf. BELLUZZO L.G., Na contramão, de patinete, in: Carta Capital n. 1060, p. 45).
As elites, na realidade, diante do Estado sempre perseguem o mesmo
objetivo: aprisioná-lo em função de torná-lo instrumento da acumulação
do capital o que significa uma particularização do Estado que conduz
tanto a uma precarização dos direitos quanto a uma ordem jurídica e
policial contra os pobres, os índios, os afrodescendentes, as mulheres e
outros grupos minoritários, à perpetuação da desigualdade e da pobreza.
Perde-se o Estado como meio de universalização de direitos, de justiça e
de igualdade. Os grupos da ultradireita em manifestações por todo o país defendem o fechamento do Congresso e do STF
por serem obstáculos ao governo Bolsonaro. Trata-se de uma espécie de
autoritarismo de fundamentação religiosa. Neste contexto, o que ainda
cativa os eleitores do atual governo é o discurso moralista, o apelo à
religião e à família e a promessa de reestabelecimento da segurança
pública.
Justamente aqui se situa a cruzada contra o que se chama de “marxismo cultural”
que se afirma ser a visão de mundo hegemônica da intelectualidade
brasileira amplamente difundida na Universidade que é marcada por forte
doutrinação de esquerda. Reaparece uma tese conhecida desde a ditadura
militar de que na universidade se valoriza em demasia o ensino das humanidades, sobretudo sociologia e filosofia, que não dão retorno financeiro ao Brasil. Diante das primeiras medidas de corte do orçamento no ministério da educação
e as reações fortes da sociedade, o ministro estendeu a poda de 30% a
todas as universidades e institutos técnicos (mais de 2 bilhões de reais
continuam bloqueados o que significa 29,74% dos recursos previstos para
este ano e também se confirmou o bloqueio de mais de 2.700 bolsas de
mestrado e doutorado) e anunciou uma redução de 2,4 bilhões no Fundeb, o
fundo federal destinado às escolas primárias que devem, segundo o plano
do governo, mudar radicalmente seu método e seu conteúdo sem
doutrinação e sexualização precoce. Houve reação forte também em
universidades renomadas no exterior contra a redução dos investimentos
no ensino no Brasil (o país hoje é o 13o maior produtor de
ciência no mundo, 95% da pesquisa se faz nas universidades federais). O
trágico entre outras coisas é uma classe dominante incapaz de
compreender que, sobretudo hoje, a educação é simplesmente decisiva para
o desenvolvimento econômico e social (basta lembrar que nas
universidades federais 70% dos estudantes possuem renda per capita
familiar de até 1,5 salario mínimo) e para preparar as pessoas para a
cidadania.
Na realidade, isto se situa dentro de um anti-intelectualismo radical que marca a visão de mundo do grupo
que está no poder. A. Alonso fala de uma “comunidade moral” que elegeu
Bolsonaro, “um conjunto de valores de orientação de conduta e
interpretação da realidade”…que divide o mundo em códigos binários_
cidadãos de bem e bandidos, éticos e corruptos, etc._ capazes de
simplificar a realidade e ativar sentimentos de alta voltagem como medo,
ódio, afeto, etc. (Cf. ALONSO A., A comunidade moral bolsonarista, in: Democracia em Risco?,
op. cit., p. 52).Esta comunidade tem basicamente três pilares: o
nacionalismo beligerante (que teme sobretudo a ameaça comunista, nega as
classes sociais e defende o protagonismo de técnicos desligados de
partidos), o moralismo hierarquizador [contra a corrupção e a degradação
dos costumes]e o antielitismo[divide o país entre uma elite social
esnobe e intelectualizada e a classe média sem sofisticação e verniz
cultural].
Tudo isto é vinculado ao que Adorno chamou de “síndrome fascista”
cuja atitude determinante é o ódio segregativo. Dunker exemplifica isto
no caso brasileiro: “Aqui, predomina a identificação de massa e uma
espécie de reação hipnótica de ódio que age por contaminação. Por
exemplo, se o PT tem casos de corrupção, as pessoas que simpatizam com
ele são automaticamente defensoras da corrupção, ou, até, corruptas elas
mesmas. A contiguidade do ódio passa do PT para o comunismo, daí para o
esquerdismo, gênero, ideologia e disso para qualquer sintagma que
contenha a expressão “social”’…(Cf. DUNKER C. I. L., op. cit., p. 128).
Por outro lado, analistas políticos apontam para uma novidade no
cenário político: teria sido instalado em Brasília o que se tem
denominado de “Parlamentarismo Informal”, ou, semiparlamentarismo
com o “Centrão”, grupo de partidos direitistas e fisiológicos, em
sintonia com o Presidente da Câmera, assumindo o protagonismo e
aumentando cada vez mais sua própria força à revelia do Presidente da
República, enquanto no senado há quem trabalhe para a introdução de um
regime parlamentarista formal. Numa palavra, não só se projeta uma
reestruturação do Estado brasileiro, mas concretamente são dados passos
que de alguma forma já efetivam propostas. É importante notar que
Bolsonaro no Legislativo não recorre primeiramente aos Partidos, mas às Bancadas,
eliminando, o quanto possível o jogo partidário. De modo geral, há
sinais claros de tentativas de atacar militantes políticos,
intelectuais, artistas e a impressa crítica seja através de processos
judiciais, seja por degradação moral.
Importante neste contexto é também o protagonismo cada vez mais claro dos Militares.
Com mais de 100 representantes nos ministérios e autarquias, os
generais constituem a força mais visível de sustentação do presidente no
poder. Eles, na realidade, estão determinando o destino da nação,
embora se nota um deslocamento de grandes consequências em sua postura.
Tiveram durante muito tempo um projeto nacionalista o que hoje se revela
inteiramente superado. Isto se revela em sua leitura da situação atual
do mundo, sobretudo de sua postura frente à China. A compra de produtos
nacionais, sobretudo de commodities, pela China para muitos economistas
livra o Brasil de um colapso econômico garantindo um superávit no
comércio entre os países de 30 bilhões de dólares. No entanto, as Forças
Armadas parecem convencidas de que a China constitui hoje para o mundo a
ameaça que no século passado representou a União Soviética de modo que a
única maneira de evitar o desastre seria a submissão aos Estados
Unidos, única potência capaz de defender os valores ocidentais e
cristãos. Assim, aderindo claramente ao neoliberalismo, não veem
problema em ceder o patrimônio mineral, energético e tecnológico a
potências estrangeiras (cf. casos urânio, pré-sal, Embraer, base de
Alcântara).
Na relação com a natureza põe-se no Brasil em primeiro lugar o desmatamento da região amazônica
que emite 200 milhões de toneladas de carbono, o que coloca nosso país
entre os cinco países mais poluidores do mundo. Num período de 150 dias
neste ano, os órgãos de controle liberaram, para ir de encontro aos
interesses da indústria do ramo, 199 pesticidas para o uso na
agricultura dos quais 43% estão terminantemente proibidas em diversos
países, sobretudo na União Europeia. O Brasil hoje é um dos maiores
mercados de agrotóxicos do planeta (consome 20% da produção mundial).
Por sua vez, o agronegócio desmata impiedosamente, desperdiça e consome
boa parte da água utilizada no país, mas contribui juntamente com a
exportação de minerais para que o país tenha recursos para pagar o
déficit resultante das transações de mercadorias e serviços com o mundo
assim como com os custos da dívida interna e externa. Daí a submissão
sem problemas ao capital vinculado ao agronegócio e à mineração. Neste
contexto, a preocupação ecológica emerge como um obstáculo fundamental ao crescimento econômico.
O resultado desses processos é um cenário humano de
sofrimento, de incerteza e de insegurança, de violência contra a pessoa
humana e a vida, desemprego, tráfico de drogas e outros negócios
ilícitos, corrupção, sonegação fiscal, poder discricionário dos meios de
comunicação social, abuso de poder político e econômico, crimes
ambientais. O que importa é a abertura a novas frentes de expansão do capital.
Isto levou estruturalmente à concentração da renda e da riqueza e à
exclusão social, ao aumento das carências na educação, na saúde, na
cultura, na degradação ambiental, na falta de moradias (o déficit
habitacional do país atinge 7 milhões de famílias concentradas nos
grupos com rendimentos de até 1,8 mil reais por mês).
A exigência básica de nossa realidade social é uma política
consistente de distribuição de renda. Para sua efetivação se faz
necessário tomar medidas que afetem o patrimônio, a renda e os
privilégios da minoria mais rica. É uma necessidade básica aumentar as
oportunidades de emprego, educação e renda para a maioria da população.
Usar os recursos da União e dos estados prioritariamente para ampliar os
serviços públicos de forma eficiente e gratuita para toda a população.
Que o corte de gastos públicos defendido com força por certos segmentos
de nossa sociedade seja feito no superávit primário e no pagamento dos
juros da dívida pública que é certamente a maior despesa do Orçamento da
União nos últimos dez anos.
Trata-se de uma transferência de dinheiro do povo para beneficiar os
bancos e uma minoria de aplicadores. Em 2007, o governo federal pagou R$
160,3 bilhões em juros, quatro vezes mais de tudo o que gastou no
social e correspondente a 6, 3% de nosso Produto Interno Bruto (PIB).
Nunca se pode esquecer que pobreza é um grande obstáculo ao crescimento
econômico, mas sobretudo um desastre humano. Não é de espantar que numa
sociedade assim estruturada a violência chegue a explodir e estabelecer
áreas nas cidades controladas por facções criminosas vinculadas ao
comércio de drogas e se constituam como instituição paralela ao próprio
Estado de Direito.
- C) Juízo Ético
O Papa Francisco descreve com lucidez os efeitos das causas
estruturais deste processo: nessa sociedade com tanta produtividade, há
milhões de pessoas que morrem de fome no mundo. Quando a especulação
financeira condiciona o preço dos alimentos tratando-os simplesmente
como mercadorias milhões de pessoas morrem de fome. Reina a ambição
desenfreada por dinheiro. O serviço do Bem Comum fica em segundo plano.
Quando o capital se torna um ídolo e dirige todas as ações humanas
arruína a sociedade, condena o ser humano, transforma-o em escravo,
destrói a fraternidade inter-humana, põe em risco a casa comum.
Isto acontece quando no centro de um sistema econômico está o deus “dinheiro” e não a pessoa humana.
Este sistema dá primazia ao mercado em detrimento da pessoa humana e
por isto esta economia mata. Daí a raiz última da crise: é uma crise
antropológica, porque se nega a primazia do ser humano sobre o capital. O
critério que deve reger as políticas econômicas é a promoção do
desenvolvimento social: elas devem atender à população especialmente a
que é mais vulnerável. Não tem futuro uma sociedade em que se dissolve a
verdadeira fraternidade. Por isto “hoje precisamos imperiosamente que a
política e a economia em diálogo se coloquem decididamente ao serviço
da vida, especialmente da vida humana (LS 189)”.
Para isto, diz o Papa, faz-se necessário superar uma concepção mágica
do mercado que acha ser possível resolver todos os problemas “apenas
com o crescimento do lucro das empresas e dos indivíduos”. Antes isto
torna as pessoas obcecadas com a maximização dos lucros(o Papa fala de
“idolatria do dinheiro”), insensíveis e indiferentes ao sofrimento dos
pobres, aos efeitos ambientais destes processos e às suas consequências
para a vida humana. Dentro do esquema do lucro não há lugar para pensar
nos outros e na natureza, não é possível considerar seriamente o valor
real das coisas, “o seu significado para as pessoas e as culturas, os
interesses e as necessidades dos pobres”. É urgente para nós redefinir
aquele conceito que marcou tão fortemente a cultura moderna: o
Progresso. “Um desenvolvimento tecnológico e econômico, que não deixa um
mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior não se pode
considerar progresso” (LS 190)”.
O papa Francisco conclamou os cristãos a escutar o clamor por justiça
no mundo atual o que é uma exigência que concerne a todos
independentemente se têm alguma fé religiosa ou não. Isto implica entrar
num autêntico diálogo que procure sanar efetivamente as raízes
profundas e não a aparência dos males do nosso mundo. Esta tarefa tem
dois momentos complementares: 1)A cooperação para resolver as causas
estruturais da pobreza e para promover o desenvolvimento integral dos
pobres; 2) Os gestos mais simples e diários de solidariedade para com as
misérias muito concretas que encontramos. Solidariedade aqui significa a
gestação de um nova mentalidade: pôr em primeiro plano a comunidade,
dar prioridade à vida de todos frente à apropriação de bens por parte de
alguns, reconhecer a função social da propriedade e o destino universal
dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A
solidariedade significa, assim, a decisão de devolver ao pobre o que lhe
corresponde o que exige igualmente mudanças estruturais e novas
convicções e atitudes. Não se trata apenas de garantir comida ou um
sustento decoroso, mas prosperidade e civilização em seus múltiplos
aspectos o que engloba educação, acesso ao cuidados da saúde e trabalho.
Por isto a urgência em atacar as causas estruturais da pobreza só pode acontecer renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira
e enfrentando as causas estruturais da desigualdade já que ela
constitui a raiz dos males sociais. Isto permite articular um horizonte
que deve nortear toda a política econômica: a dignidade de cada pessoa
humana e o bem comum são os valores de base e por isto não devem ser
reduzidos a apêndices acrescentados de fora para ampliar discursos
políticos que não possuem nem perspectivas nem programas de um
desenvolvimento integral.
Manfredo Araújo de Oliveira dz UFC é assessor de vários grupos ligados aos direitos humanos e às questôes éticas atuais, especialmente, vinculados ao sistema econômico vigente.
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