"Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias." - Eliane Brum
do El País
Doente de Brasil
por Eliane Brum
Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e
preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz
de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo
de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de
quem é do seu sangue ou de quem abana o rabo para as suas ideias.
Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um
tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas
em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a serviço do
Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir
descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições
governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as
estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. O Brasil está nas
mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns
oportunistas. Submetidos a um cotidiano dominado pela autoverdade,
fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói
a possibilidade da verdade, os brasileiros têm adoecido. Adoecimento
mental, que resulta também em queda de imunidade e sintomas físicos, já
que o corpo é um só.
É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a
psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral,
medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se
de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos,
cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua
clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do
coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está
trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar
com algo para o qual não se sente preparado.
O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos últimos anos de
polarização política, que dividiu famílias, destruiu amizades e corroeu
as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em que a crise
econômica se agravava, o desemprego aumentava e as condições de trabalho
se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da campanha eleitoral
baseada no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018.
Com um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração
do ódio, não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de
crescimento do número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como
buscar a cura.
Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos chamar as
coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas porque
essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo
democrático” ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como
não havia “normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no comando da
Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser apenas
gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser
feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de
um perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um
mentiroso.
Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um presidente que
usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele mesmo e o
seu clã. Como chegamos a ter um presidente que mente sistematicamente
sobre tudo. Podemos – e devemos discutir – como chegamos a ter um
antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que a
experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se
reproduz, com particularidades próprias, em diferentes países.
Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação dos fatos e
de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também
responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate.
Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no
Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp.
Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem
escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem
demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me
que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de
esgotamento que descambam para ansiedade. Qual o diagnóstico para isso?
Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM
(o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico.
Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na
Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem
sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem
direito a aposentadoria até morrer de Brasil”.
Não há normalidade nem jogo democrático quando um perverso governa a partir da administração do ódio e da mentira.
Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez residência e
atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. Atualmente,
mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de um
sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que
cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com
sintomas como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento
corporal, dores de cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram
pessoas que estavam objetiva e subjetivamente esgotadas pela
precarização das condições de trabalho, como jornada excessiva, acúmulo
de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de perspectivas de
mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e, ao mesmo
tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam
acontecer com vários colegas.
O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses atrás.
“Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante de drogas legais.
Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E, de certo
modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer
mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” Na sua avaliação, o
adoecimento está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos
últimos anos, acentuada pela reforma trabalhista aprovada em 2017, e foi
agravado com a ascensão de um governo “que declarou guerra ao seu
povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma.
Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível da
toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos
agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um
dia poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos.
“Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao relatarem o
sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. Na
constatação de que o governo Bolsonaro já aprovou 290 agrotóxicos em
apenas sete meses, o envenenamento ganha uma outra camada. É como se os
corpos fossem um objeto atacado por todos os lados. País que ultrapassou
a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as
acepções.
Cresce nos consultórios os casos de depressão provocados e alimentados pelo contexto político e social
Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de Brasil”?
Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias
explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos
provocados pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas
ligadas à esquerda, mas não necessariamente ao PT, sentem uma total
perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a
tristeza sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica
de cada pessoa, às fundações e alicerces construídos na infância”,
explica. “O que temos vivido hoje nos consultórios é o aumento da
depressão com contexto, esta que não tem a ver com a estrutura do
indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o uso de
medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das
questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.”
O rompimento dos laços, como a divisão das famílias provocada pela
polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao
adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. Como
disse um filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra
no outro lado do mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com
isso, ele queria dizer que as pessoas perdiam o sono muito mais por
pequenas dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam,
como as relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes
barbáries que ocorriam no outro lado do mundo.
O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a política, que
sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado, passando a
ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. Dias atrás uma
amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os
critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria
dividir com uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso
de militantes mais radicais, dificilmente aconteceria anos atrás:
ninguém costumava perguntar qual era a orientação política antes de
dividir a casa com alguém.
A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da esfera
pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o
inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de
cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser
discutidas publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada
um considerava incondicionais, como os familiares, laços com os quais
se contava para enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os
quadros depressivos e persecutórios, aumentando ansiedade e angústia,
corroendo a saúde.
O sofrimento é agravado pela constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do governante
Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se identificar,
acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a radicalização
da impotência. As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto
civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como
Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos
os dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como faz
com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir
compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as
atropela e esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse
“imparável”, porque percebem que já não podem contar com as instituições
– constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a
sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns.
A documentação das experiências de autoritarismo em diferentes épocas
e países costuma relatar o sofrimento físico e psíquico das vítimas,
mas geralmente em condições explícitas. Como, por exemplo, um judeu num
campo de concentração nazista. Ou uma das mulheres torturadas no
Doi-Codi, em São Paulo, durante a ditadura militar do Brasil
(1964-1985). Perceber essa violência explícita como violência é
imediato. O que a experiência autoritária do bolsonarismo tem
demonstrado é o quanto pode ser difícil resistir (também) à violência do
cotidiano, aquela que se infiltra nos dias, nos pequenos gestos, na
paralisia que vira um modo de ser, nas covardias que deixamos de
questionar.
O cotidiano de exceção tem se infiltrado e realizado em milhões de pequenos gestos de autocensura, silêncio e ausência no Brasil
Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de conformação
acontecendo neste exato momento no Brasil. Em silêncio. Pequenos
movimentos de autocensura, ausências nem sempre percebidas. Uma autora
me conta que conseguiu manter seu livro no catálogo da editora sem usar a
palavra sexualidade…. para falar de sexualidade. Uma diretora me diz
que vestiu os corpos de suas atrizes, até então nuas, numa peça de
teatro. A professora de uma das mais importantes universidades públicas
do país me relata que muitos colegas já deixaram de analisar
determinados temas em salas de aula por medo do “poder de polícia” dos
alunos, que têm gravado as aulas e se comportado de forma ainda mais
violenta que a polícia formal. Um curador de eventos preferiu não fazer o
evento. Mudou de assunto. Outro deixou de convidar uma pensadora que
certamente levaria bolsocrentes para a sua porta. Nunca saberemos o que
poderia acontecer, porque o acontecimento foi impedido para não sofrer o
risco de ser impedido.
Há tantos que já preferem “não comentar”. Ou que dizem,
simpaticamente: “me deixa fora dessa”. É também assim que o
autoritarismo se infiltra, ou é principalmente assim que o autoritarismo
se infiltra. E é também assim que se adoece uma população por aquilo
que ela já tem medo de fazer, porque antecipa o gesto do opressor e se
cala antes de ser calada. E em breve talvez tenha medo também de
sussurrar dentro de casa, num mundo em que os aparelhos tecnológicos
podem ser usados para a vigilância. Chega o dia em que o próprio
pensamento se torna uma doença autoimune. É assim também que o
autoritarismo vence antes mesmo de vencer.
Um dos sintomas do cotidiano de exceção que vivemos é a colonização
de nossas mentes. Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não têm
recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os
dias no presidente da República. Bolsonaro administra o horror dos dias,
com suas violências e mentiras, de um modo que o torna onipresente.
Faça o teste: quantas horas você consegue ficar sem pensar em Bolsonaro,
sem citar uma bestialidade de Bolsonaro? É isso o autoritarismo. Mas
sobre isso poucos falam.
Se Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalítica do mundo, é
preciso sublinhar que os brasileiros não estão sós. Um amigo estrangeiro
me conta que, desde que Donald Trump assumiu, a primeira coisa que ele
faz ao acordar é conferir qual é a barbaridade que o presidente
americano escreveu no Twitter, porque sente que isso afeta diretamente a
vida dele. E afeta.
Mario Corso, psicanalista e escritor gaúcho, aponta que não é
possível pensar no que ele chama de “ethos depressivo” deste momento
fora do contexto do Ocidente. “Veja o Reino Unido. O novo
primeiro-ministro (referindo-se ao pró-Brexit Boris Johnson) é um
palhaço. E eles já tiveram Churchill!”, exemplifica. “O problema, no
Brasil, é que além de toda a crise global, elegemos um cretino para
presidente”, diz o psicanalista. “O que assusta é que não há freios para
impedi-lo. E, assim, ele segue atacando os mais frágeis. Como Bolsonaro
é covarde, ele não engrossa com os maiores que ele.”
Boris Johnson não chega a ser um Donald Trump. E nem Donald Trump chega a
ser um Jair Bolsonaro. Mas a diferença maior está na qualidade da
democracia. Tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, as
instituições têm conseguido exercer o seu papel. No Brasil, não chega a
ser perda total – ou não bastou (ainda) “um cabo e um soldado” para
fechar o STF, como sugeriu o futuro possível embaixador do país nos
Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro, o garoto zerotrês. Mas a precariedade
– e com frequência a omissão – das instituições – quando não conivência
– são evidentes. “Enquanto Bolsonaro não consegue uma ditadura total,
porque isso ele quer, mas ainda não conseguiu, ele antecipa a ditadura
pelas palavras”, diz Corso. “Bolsonaro usa aquilo que você definiu como
autoverdade para antecipar a ditadura. Os fatos não importam, o que ‘eu’
digo é o que é.”
Para Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de
São Paulo, a autoverdade é a amputação da palavra no sentido pleno.
“Este é um grande disparador do sofrimento das pessoas, ao constatarem
que estão fora no nível mais importante. Não é que você está fora porque
não tem uma casa ou um carro, hoje você está fora das possibilidades de
leitura do mundo. O que você diz não tem valor, não tem sentido, não
tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse lugar na
gramática”, diz o psicanalista. “O que é a guerra? A guerra acontece
quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas
pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente
ao ato violento.
A autoverdade, como escrevi neste espaço, determinou a eleição de
Bolsonaro. E seguiu moldando sua forma de governar pela guerra, o que
implica a destruição da palavra. Assim, desde o início do governo,
Bolsonaro tem chamado os órgãos oficiais de mentirosos sempre que não
gosta do resultado das pesquisas. Como quando o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística mostrou que o número de desempregados tinha
aumentado no seu governo.
Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão da
verdade, esta que torna a verdade uma escolha pessoal, à radicalidade.
Decidiu que a jornalista Míriam Leitão não foi torturada – e ela foi.
Insinuou que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria
sido executado pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes
do Estado na ditadura militar. Decidiu que ninguém mais passa fome no
Brasil – o que é desmentido não só pelas estatísticas como pela
experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que os dados que
apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo
conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos.
Isso porque apenas no mês de julho de 2019 foi destruída uma área de
floresta maior do que a cidade de São Paulo, e o índice de desmatamento
foi três vezes maiores do que em julho do ano passado. E Bolsonaro
decidiu ainda que “só os veganos que comem vegetais” se importam com o
meio ambiente.
Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle. Bolsonaro domina o noticiário porque criou um discurso que não precisa estar ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a que ele quer que seja. Assim, além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder que conquistou pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade da verdade.
O que vivemos não é mal-estar, mas horror
“Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não é por
acaso que Bolsonaro quer adulterar a história. A história da ditadura é
construída por muitos documentos, é uma produção coletiva. Mas ele
decide que aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum documento para
comprovar o que diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o
mal-estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que, para ter
mal-estar é preciso civilização. E hoje, o que está em jogo, é a própria
civilização. Isso não é da ordem do mal-estar, mas da ordem do horror.”
Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado pela
destruição da palavra como mediadora? Como resistir a um cotidiano em
que a verdade é destruída dia após dia pela figura máxima do poder
republicano? Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert Einstein e
Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível
deter o processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que
favorece a cultura combate a guerra.
Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a cultura e a
educação. A cultura não é algo distante nem algo que pertence às elites,
mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a palavra que nos
apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os
cantos onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós,
reamarrando os laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo
comum é criando o comum – em comum.
É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá... Aqui há um espaço para seus comentários, se assim o desejar. Postagens com agressões gratuitas ou infundados ataques não serão mais aceitas.