quarta-feira, 24 de julho de 2019

A Nova Democracia e a Missão Histórica do Estado de direito, por Ion de Andrade



Sublinhe-se que a ideia de Nova Democracia não é de fazer “tavola rasa” das formulações anteriores, mas de recontextualizá-las numa nova totalidade, uma reengenharia das experiências precedentes à luz de novas necessidades.



Do GGN:
A Nova Democracia é uma dessas elaborações que deveria ser saudada como boa notícia mesmo que estivéssemos ainda sob aquela (cinzenta) normalidade institucional anterior ao golpe.
Porém como a bonança dificulta a percepção das ameaças o mais provável é que, se estivéssemos sob normalidade, a ideia da Nova Democracia provavelmente não seria valorizada. Agora, no entanto, seus princípios surgem como um novo horizonte de acúmulo e sedimentação, como foi a própria ideia de democracia durante a ditadura, uma perspectiva a partir da qual o itinerário anterior pode ser redefinido e um Norte ser buscado. Para uma visão de conjunto mais aprofundada, sugiro a leitura do artigo de Nassif publicado em 16 de julho sobre isso (clique aqui).
Sublinhe-se que a ideia de Nova Democracia não é de fazer “tavola rasa” das formulações anteriores, mas de recontextualizá-las numa nova totalidade, uma reengenharia das experiências precedentes à luz de novas necessidades. Nela, por exemplo centralidade do Homem nas políticas públicas, recontextualiza o próprio Poder Estatal cuja formação e acúmulo ganham com essa visão uma capilaridade inédita que desce à singularidade dos indivíduos. Investir no Homem e Democratizar a Sociedade são duas faces da mesma moeda.
Porém, qual é a força motriz dessa Nova Democracia no campo da Política? Essa é uma questão importante porque por trás de cada proposta histórica há sempre um ou mais protagonistas. Quem seriam os sujeitos históricos dessa Nova Democracia e o que fazer, portanto, para empoderá-los?

Em primeiro lugar diria que vivemos hoje um protagonismo irremediavelmente travado (e predatório de outros protagonismos) que se dá essencialmente pelos  partidos políticos na arena restrita das instituições estatais. Independentemente da sua coloração ideológica os partidos atuais acumulam Poder essencialmente para a luta institucional, a disputa do Estado, limitado aos Três Poderes. Seu propósito e missão é o de garantir os seus espaços institucionais e dar enfrentamento aos demais partidos ali representados e que lhes são opostos. Apesar de importante, é claro, trata-se de uma dinâmica autocentrada que não transborda para uma mudança da correlação de forças na sociedade, afinal a matriz do que se desenrola nas instituições. Para a esquerda, sempre minoritária em níveis inferiores ao que seria necessário, por exemplo, para ao menos barrar as emendas constitucionais, as lutas institucionais acabam se configurando numa contínua gestão de perdas, onde o que se festeja são os discursos.
Sob esse prisma, essa política é eminentemente simbólica e se concentra num discurso ideologicamente posicionado sobre aquilo que parece ser, no nível imediato, o “fato político”. Ela é, em razão disso, incapaz de produzir consensos ou de desenhar um projeto de sociedade. Atua, por assim dizer, no varejo sem se preocupar com a formação do Poder, ou com o horizonte de médio e longo prazos. A que serve a esquerda nesse contexto? A lutar contra a direita e não à propositura concreta de uma nova sociedade.
A disputa nesses termos é favorável à direita que, apesar do seu inegável primitivismo e ignorância é quem detém o grosso da iniciativa política no plano concreto. Isso não decorre apenas do fato de que a direita detém o Poder político, decorre sobretudo do fato de que a esquerda abandonou a política como mediadora de um projeto concreto de humanidade e de sociedade em função da concepção (infelizmente não explicitada e pior naturalizada) de que o único papel que lhe parece legítimo é o da polarização com a direita ou com a extrema direita no restritíssimo campo da institucionalidade.
Como sair desse círculo vicioso?
Há duas coisas a considerar.
A primeira é que, para além da esquerda e da direita, há um outro elemento que toma parte da dinâmica da construção da superestrutura da sociedade que é o que vai sendo criado como uma espécie de materialidade histórica e que é, no melhor cenário, o Estado de direito. Portanto, a institucionalidade interessa aos democratas não apenas como locus onde ocorrem as lutas, (a Arena) mas sobretudo como expressão da própria civilidade (uma “Cidade”). Isso significa que uma iniciativa estratégica de aperfeiçoamento do Estado de direito no Brasil, para que experiências como a atual não se reproduzam mais, é o dever de casa para quem quer que tenha um mínimo de responsabilidade enquanto força política.
Isso significa que a primeira tarefa, para além da contínua expressão do inconformismo político na institucionalidade e da gestão das perdas, é a de planejar responsavelmente o aperfeiçoamento institucional para que, ao sairmos da crise atual, tenhamos efetivamente saído de uma vez, por meio (preventivamente) de um novo desenho institucional.  Isso exige estudo, alianças e coragem para não defender, por exemplo, esse presidencialismo de coalizão, como se ele fosse, porque deu poderes imperiais a esquerda por um tempo, a expressão do apogeu da democracia brasileira pois, na sequência levou a extrema direita entreguista ao Poder também com poderes imperiais…
No tocante a isso Nassif apontou para a necessária reforma do Judiciário, mas a construção dessa Ci(vili)dade, dada a profundidade da nossa crise, atravessa os três poderes.
A segunda coisa é que se estamos falando de Ci(vili)dade, obviamente que quem a opera e é seu protagonista é a Cidadania. Sobre a questão de um conceito marxista para  Cidadania, que pessoalmente entendo como a expressão política do proletariado na superestrutura, e que seria muito longo aprofundar aqui, sugiro a leitura do artigo “Lula, a crise do paradigma gramsciano e da nossa democracia” em que aprofundo um pouco mais essa ideia  (clique aqui).
Portanto, quanto ao fomento da cidadania, a ideia de colocar o Homem/Mulher no centro das políticas é convergente, e está inscrito nos princípios da Nova Democracia explicitados por Nassif no artigo de 16 de julho.
Mas isso não é assim tão simples quanto parece. O que é realmente colocar essa humanidade no centro das políticas e que conexão isso tem com a sustentação do Estado de direito?
Em 2018, o professor de sociologia da Universidade de New York, Erick Klinenberg publicou o livro Palaces for the People. O livro, classificado como um dos melhores de 2018, foi apresentado da seguinte forma pelo New York Times: “O livro argumenta que a luta pela democracia é conquistada através do compromisso com uma forte infraestrutura social. Bibliotecas, piscinas comunitárias ou parques servem como centros que unem as comunidades…”
Portanto, um dos elementos em jogo na centralidade do Homem/Mulher nas políticas públicas é a percepção de que nossa sociedade está profundamente desnutrida de uma infraestrutura social capaz de dar sentido à vida de milhões de brasileiros e de formar cidadãos, o que ocorre com tons ainda mais dramáticos nas nossas periferias e zonas rurais onde a própria noção de cidadania talvez se veja desfigurada e incompreensível diante da inenarrável precariedade da vida.
A formação dessa Cidadania não pode ser confundida com o velho ideário social-democrata que pretende apenas assegurar passivamente “qualidade de vida” às pessoas. Formar cidadãos vai além dessa percepção, como expresso na Carta de Natal dos Movimentos Sociais (clique aqui) que temos tentado irradiar como ideia em muitos artigos, aqui no GGN e em outros veículos, pois posiciona a formação dessa Cidadania como um processo em prol da emancipação dos sujeitos.
De fato a centralidade da humanidade nas políticas fala dessa ideia de emancipação do Homem que atraiu o interesse de Hegel a Paulo Freire, passando por Marx e por Gramsci. Isso repõe, portanto, no centro do tabuleiro a questão da emancipação na sua singularidade (o indivíduo) e no seu coletivo (as comunidades em seus diversos níveis) como parte do processo de formação e acumulação do Poder no e para o Estado de direito em favor da democracia.
A infraestrutura social, portanto, se estiver a serviço dessa ideia de emancipar sujeitos, não poderá estar a serviço da ideia politicamente insossa, passiva e limitada de uma  “qualidade de vida”de viés social-democrata. Na verdade, a qualidade de vida é que será a resultante de um processo mais amplo e profundo de emancipação dos sujeitos ancorado que deverá estar numa sólida infraestrutura social focada na replicação de cidadãos emancipados em escala populacional. A qualidade de vida é aí o ganho de uma emancipação multidirecional.
Esses equipamentos coletivos (culturais, desportivos, sociais, para a dignidade, etc) ausentes em toda parte, mormente onde propositadamente o Estado brasileiro abandona a sua população à própria sorte (as periferias e zonas rurais) é que são a ferramenta estratégica para multiplicar esse sujeito em quantidade e qualidade, o que produzirá também um Estado de direito mais estável e mais capaz de ir adiante no seu processo de democratização. Não estamos excluindo o fato de que a renda deva também ser parte do processo emancipatório. Estamos apenas acentuando o elemento estratégico normalmente ausente da formulação dos economistas: a emancipação dos sujeitos e as tecnologias sociais de que depende.
Atenção aqui: A missão histórica do Estado de direito é a emancipação da cidadania, que retorna para a ele uma massa crítica cidadã capaz de sustentar a democracia e assegurar o cumprimento de sua agenda a um só tempo democratizante e emancipatória num processo que ao ganhar irreversibilidade nos conduz ao que Nassif exprime no seu artigo de 16 de julho como uma “revolução em câmara lenta” processo esse que eu tenho chamado (clique aqui) de Revolução Progressiva.

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