segunda-feira, 11 de setembro de 2017
GATOS e MONSTROS, de Milton Hatoum
Às cinco e vinte da manhã, acendi a luz e comecei a limpar o banheiro dos dois irmãos. O mais magro é bagunceiro e leva jeito de destemido, mas se assusta até com uma sombra; Temis, a irmã dele, é mais quieta e, em certos momentos, se entrega à reflexão. Ambos mantêm uma postura elegante, altiva, sem falar na conduta ética, de fazer inveja nestes tempos...
Antes de jogar os dejetos nas folhas de um jornal de junho, dei uma olhada nas fotografias e manchetes. E o que vejo, ainda em jejum? Uma imagem de rostos monstruosos: um grupo de machos governamentais, jovens e velhos, uns oito ou nove velhacos, indiciados ou investigados. Ao lado desses homúnculos, uma chamada na capa: O presidente sancionou uma Medida Provisória que reduz em quase 40% a área da Floresta Nacional do Jamanxim (PA). São os grandes grileiros, em conluio com certos políticos do Pará, do Mato Grosso...
Quando dizem que vão fiscalizar uma área florestal liberada para extração de minérios ou plantação de soja, só um ingênuo é capaz de acreditar nessa mentira deslavada. Não fiscalizam nem mesmo o Parque Nacional, ali perto de Sobradinho, nas barbas do Planalto...
Por que somos tão passivos diante de tantos crimes? Onde estão as panelas de antanho?
Perguntas que faço a Temis, enquanto junto com uma pá a areia suja e cubro a imagem dos machos meliantes, todos eles mais empedernidos que os dejetos dos felinos, e mais rapaces que hienas, com a devida vênia a esses devoradores de cadáveres.
Embrulho tudo e escuto um miado melodioso: é um pedido para que eu abra a janela, pois está amanhecendo, e minha felina de pelagem cinza é crepuscular. Sei que essa bela palavra é batida, mas não encontro outra para expressar a atração de Temis pela primeira luz da manhã e a última da tarde, quando ela contempla com olhar parcimonioso, e não raramente sonhador, o mundo lá fora.
Ali embaixo se reúnem os primeiros operários que trabalham numa torre de concreto, alguns se benzem ao passar diante da igreja, ainda fechada. À direita, quase na esquina, um rapaz abre a banca de revistas e jornais e pendura as manchetes das iniquidades do Brasil: “país de caminhos fechados”, como escreveu o poeta.
Temis vê a faxineira do prédio na calçada, olha para mim e pisca: é o afeto felino, tão puro e espontâneo, que rima com cristalino. Nas raras andanças pelo térreo, a gata conversa com a faxineira sobre a vida, sempre mais dura e perigosa para milhares de mulheres que acordam às cinco da matina, rezam para não ser assaltadas e atravessam a cidade para ganhar o pão de cada dia.
No fim da tarde, a felina gosta de escutar o Magnificat e ver os noivos radiantes sob uma chuva de arroz na porta da igreja, antes de rumarem à primeira ou milésima noite. Ela não sai da janela, pois sabe que ainda ouvirá um réquiem na missa à memória de uma pessoa que passou para o outro lado do espelho.
Amanhã, bem cedinho, vou acender a luz e despejar os dejetos nos rostos dos farsantes monstruosos. Depois, no crepúsculo do dia e da noite, vou acompanhar o olhar da felina, que salta do mundo real ao imaginário, vai da tristeza à alegria, da esperança ao desencanto, numa onda de emoções que também me comove.
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