“Se nos empenharmos em continuar tentando harmonizar – e até identificar – “religião” e “Evangelho”, a maioria dos cidadãos não colocará em prática a religião e a gente religiosa não vai entender o Evangelho vivendo o seguimento de Jesus. Como é lógico e inevitável, nestas condições, o presente e o futuro da Igreja torna-se cada vez mais problemático.”
A reflexão é de José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado porReligión Digital, 19-07-2016. A tradução é de André Langer. Extraído do Instituto Humanitas Unisinos.
Eis o artigo.
Costuma-se dizer (e é verdade) que a religião cristã tem sua origem em Jesus de Nazaré. Como também se costuma dizer (e também é verdade) que a Igreja teve seu início na vida e nos ensinamentos de Jesus. Mas, tão certo como o que acabo de dizer é que Jesus não fundou (ou instituiu) uma religião, nem fundou (ou instituiu) uma Igreja.
Como iria fundar uma religião um homem que provocou um conflito mortal com os dirigentes da religião, com o Templo, com os sacerdotes, os rituais e normas que a religião impunha às pessoas, de forma que tudo aquilo terminou na condenação de Jesus como um criminoso subversivo? E, no que se refere à Igreja, nem mesmo o Concílio Vaticano II se atreveu a dizer que Jesus foi seu “fundador”, mas se limitou a indicar que a Igreja teve sua origem na pregação de Jesus sobre o Reino de Deus (LG 5, 1).
Evidentemente, São Paulo colocou o nome de “igrejas” às “assembleias” que ele foi organizando em suas viagens apostólicas. Mas sabemos que Paulo foi um judeu de cultura grega, na qual o termo “ekklesía” designava a assembleia dos cidadãos livres, que se reuniam para votar democraticamente as decisões importantes.
Então, o que é que Jesus deixou àqueles que creem n’Ele e, portanto, pensam que seu legado é importante, inclusive determinante e até decisivo? Lendo e analisando a fundo os Evangelhos, o que neles fica claro é que Jesus foi um profeta que transmitiu à sua posteridade um projeto de vida, uma forma de estar e de agir neste mundo.
Um projeto de vida que se coloca em prática a partir do que foram as três preocupações fundamentais que o próprio Jesus viveu:
1) A saúde (relatos de “curas de enfermos”).
2) A alimentação (relatos de “comensais”, a mesa compartilhada).
3) As relações humanas (ensinamentos sobre a “felicidade, misericórdia, justiça, perdão, amor...).
Este “projeto de vida”, na linguagem e na teologia do Evangelho, resume-se e condensa-se no “seguimento” de Jesus. De forma que a Cristologia se constitui primordialmente, não a partir de determinados dogmas e saberes, mas a partir do seguimento de Jesus.
Pois bem, se o que acabo de dizer foi constitutivo e determinante nas origens do cristianismo, na sequência se compreende – e sem dificuldades – como e por que a Igreja encontrou acolhida na Antiguidade ou, pelo contrário, como e por que a Igreja encontra indiferença e até rejeição na Modernidade.
Quero dizer que, nos primeiros séculos da sua história, quando a Igreja foi se organizando e se fez presente na sociedade de forma que o central e determinante da sua vida foi a luta contra o sofrimento e a acolhida de todo tipo de gente marginalizada, excluída e desprezada, foi quando a Igreja se expandiu por todo o Império, até chegar a ser a instituição central e mais valorizada naquele tempo.
Como bem explicou o professor Eric R. Dodds, quando o Império viveu uma autêntica “época de angústia” (desde meados de século II até o século IV), “a Igreja oferecia todo o necessário para constituir uma espécie de segurança social: cuidava dos órfãos e viúvas, atendia os anciãos, os incapacitados e os que careciam de meios de subsistência...”.
E o próprio Dodds acrescenta: “Deveriam ser muitos os que se sentiram desamparados: os bárbaros urbanizados, os camponeses chegados às cidades em busca de trabalho, os soldados dispensados, os rentistas arruinados pela inflação e os escravos libertos. Para todo esse pessoal, passar a fazer parte da comunidade cristã devia ser o único meio para conservar o respeito para consigo mesmo e dar à própria vida algum sentido. Dentro da comunidade se experimentava o calor humano e tinha-se a prova de que alguém se interessa por nós, neste mundo e no outro”.
Ao longo do tempo, o centro das preocupações da Igreja foi se deslocando: da luta contra o sofrimento dos pobres e excluídos para o estabelecimento e fortalecimento da própria autoridade. O que desembocou no deslocamento do eixo centrado no Evangelho de Jesus para a religião dos sacerdotes. O “seguimento” evangélico deixou de ser central na Igreja. E passou a ser central, a partir de então, o “poder” eclesiástico, que traz para o primeiro plano – na prática – a submissão dos fiéis, em vez da solidariedade com os pobres, marginalizados e excluídos.
Sendo assim, enquanto a religião foi um componente central da cultura e da sociedade, a Igreja se viu a si mesma como fiel à missão que tinha que cumprir neste mundo. Até que, no século XVIII, o Iluminismo escancarou as contradições que a Modernidade encontra no fato religioso. Contradições que, nos séculos XIX e XX, ganharam força e presença na mentalidade dos cidadãos da moderna “cultura secular”. O que nos trouxe à desconcertante situação que estamos vivendo hoje.
Se nos empenharmos em continuar tentando harmonizar – e até identificar – “religião” e “Evangelho”, a maioria dos cidadãos não colocará em prática a religião e a gente religiosa não vai entender o Evangelho vivendo o seguimento de Jesus. Como é lógico e inevitável, nestas condições, o presente e o futuro da Igreja torna-se cada vez mais problemático. Continuaremos confinados em nossa tradicional religiosidade ou nos decidiremos pela fidelidade definitiva do seguimento de Jesus?
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