Para se entender o capítulo “mídia” das conspirações que levaram aos golpes de 1964 e 2016, é preciso recuar uns 70 anos.
No pós-guerra, montados em dinheiro num volume jamais visto aqui, os americanos vieram às compras. Inicialmente, associaram-se a Assis Chateaubriand, que lhes pareceu versão latina e engraçada do self-made-man de sua mitologia empresarial: deram-lhe o suporte tecnológico necessário à implantação da televisão e conviveram por bom tempo com a loucura administrativa dos Diários Associados.
A ocupação de espaços culturais teve lances sutis e outros violentos. O mais agressivo destes foi o estrangulamento da nascente indústria cinematográfica paulista, montada em grandes estúdios (Vera Cruz, em São Bernardo do Campo; Maristela, no bairro paulistano de Jaçanã) com o aproveitamento de pessoal técnico deslocado pela guerra em países da Europa, notadamente a Itália: as distribuidoras americanas retiveram a distribuição internacional dos filmes, área que monopolizavam. e pressionaram os distribuidores locais para que fossem mal programados no mercado interno.
Uma operação de relações-públicas que envolveu várias formas de suborno de jornalistas promoveu a crítica negativa mesmo para obras excelentes. Anselmo Duarte, autor e diretor de O pagador de promessas, Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França (único filme brasileiro a ter esse prêmio, até hoje). Jamais se recuperaria da campanha de desmoralização e descrédito montada contra ele.
O avanço sobre as agências de publicidade resultou quase automaticamente da invasão de marcas americanas em setores que mais programam publicidade: indústrias alimentícias, produtos de higiene, cosméticos e eletroeletrônicos. Em 1964, a maioria das agências já pertencia a empresas americanas ou a grupos locais a eles associados.
As gravadoras musicais foram todas compradas. Os novos donos suprimiram os tradicionais catálogos de carnaval e meio-de-ano e impuseram, além de gravações de sucesso nos Estados Unidos, uma enxurrada de melodramáticos boleros mexicanos Os compositores locais recuperaram algum espaço, lentamente, incorporando novos componentes – até o sotaque – a seus trabalhos, aproximando o samba-canção do bolero (sobretudo na fase da fossa – Dolores Duran, Antônio Maria), ou recriando laboriosamente o samba com acento de jazz, na bossa-nova que, afinal, se consagrou como gênero internacional.
As histórias em quadrinhos tinham um passado de criação local, de inspiração principalmente francesa, com heróis infantis ingênuos como Reco-reco, Bolão e Azeitona, criados por Luís Sá em 1931 e que protagonizavam suas aventuras na revista Tico-Tico. A liquidação dessa concorrência ingênua começou com o rápido êxito de tiras americanas traduzidas pela Editora Brasil-América, Ebal (com heróis como Superman), logo seguida pela Editora Globo, de Roberto Marinho, com as tiras importadas do Gibi e do Globo Juvenil. Essas publicações, que atingiam circulação gigantesca, foram rapidamente superadas quando Victor Civita, americano de Nova York, obteve contrato de exclusividade dos heróis de Walt Disney para sua Editora Abril, que fundara nove anos antes, em 1950.
Marinho recebeu o golpe sem reclamar. Bom publisher, mau editor, admirava as estratégias comerciais da mídia americana; empregou-as (do estilo gráfico à ênfase nos temas locais e comunitários) no vespertino carioca que herdou do pai, Irineu. No pós-guerra, mostrou-se dedicado cliente da expansão americana no Brasil. Prestou serviços memoráveis no processo que levou ao suicídio de Getúlio Vargas e à superação de seu projeto nacionalista. Com área de influência restrita ao Rio de Janeiro – onde circulava O Globo e era ouvida a Rádio Globo – recebia atendimento secundário até que se configurou a doença neurológica de Assis Chateaubriand, no começo dos anos 1960, e ele criou o condomínio dos Diários Associados, em que os americanos, por bom senso, não confiavam.
Imediatamente após o golpe de 1964, que tanto ajudou a promover, Marinho firmou um contrato de parceria com aTime (na época, Time-Life) que lhe permitiu montar emissora de televisão no Rio e – importante para ele – em São Paulo, mercado até então impenetrável.
A invasão americana no pós-guerra foi muito bem recebida pela elite paulista, oriunda do ciclo do café, sempre disposta a se vingar da derrota do levante de 1932 (a chamada “revolução constitucionalista”) e combater o projeto nacional de Getúlio Vargas, a quem culpava pela perda posição hegemônica que mantinha na República Velha (até a revolução de 1930). A intelectualidade orgânica acantonada na Universidade de São Paulo e a oligarquia do estado encontraram nos americanos o modelo do liberalismo capitalista “moderno” que poderia rejuvenescer seu projeto político. Em ambiente ainda provinciano, em que pontificava O Estado de São Paulo, o espírito era – e seria sempre – de franca colaboração.
Texto extraído do Tijolaço.
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