"A primeira coisa que chama atenção é a grosseira agressão à lógica da imputação contra Lula: se um Presidente da República, que decide sobre políticas econômicas de bilhões de dólares, que define projetos nas áreas financeiras, industriais ou comerciais de centenas de milhões de dólares, decidisse enriquecer de forma ilícita, então se locupletaria com centenas de milhões de dólares, nunca, jamais com esses miseráveis 3,7 milhões de reais – no mínimo 500 ou 1.000 vezes menos do que ganharam os verdadeiros corruptos do País -, que seriam objeto de pilhéria dos homens de negócio. A acusação, mais do que um disparate jurídico, é uma rematada tolice dos órgãos repressivos." - Prof. Doutor Juarez Cirino dos Santos, Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC
Do site Justificando:
Domingo, 21 de Janeiro de 2018
Prova documental inocenta Lula
Foto: Lula Marques/ AGPT. Arte: André Zanardo/Justificando
Episódio n. 8 da Série “A guerra de Moro contra Lula” tem por base a sentença de Sérgio Moro. Não deixe de conferir os Episódios n. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9. Série visa qualificar a cobertura jornalística de demais veículos sobre o tema (com indicações de onde checar a informação no processo pela palavra “Evento”, bem como nos números entre parênteses para consultar a sentença), bem como trazer a análise do Professor Juarez Cirino dos Santos, que teve íntimo contato com o caso, para além das visões comuns.
1. O cenário de fundo da acusação
1.1. O Caso do Tríplex está limitado aos contratos da Petrobrás com a OAS, em que teria havido pagamento de vantagens indevidas a agentes políticos e ao ex-Presidente Lula (290-1), mencionado em delações premiadas de diretores da OAS – definidas como inválidas por causa da coação ligada à tortura da prisão. No caso concreto, o pagamento de vantagens indevidas pelos consórcios CONEST/RNEST, CONPAR e REPAR (292), através de uma conta corrente informal (293), teria destinado o valor de R$3.738,738,00 pela OAS ao ex-Presidente Lula (294), corporificado na disponibilização do apartamento 164-A, sem o pagamento do preço correspondente (295), diz o Juiz Moro.
1.2. A primeira coisa que chama atenção é a grosseira agressão à lógica da imputação contra Lula: se um Presidente da República, que decide sobre políticas econômicas de bilhões de dólares, que define projetos nas áreas financeiras, industriais ou comerciais de centenas de milhões de dólares, decidisse enriquecer de forma ilícita, então se locupletaria com centenas de milhões de dólares, nunca, jamais com esses miseráveis 3,7 milhões de reais – no mínimo 500 ou 1.000 vezes menos do que ganharam os verdadeiros corruptos do País -, que seriam objeto de pilhéria dos homens de negócio. A acusação, mais do que um disparate jurídico, é uma rematada tolice dos órgãos repressivos.
2. Como o Juiz Moro explica a inserção de Lula no esquema
2.1. Segundo o Juiz Moro (296-7), o ex-Presidente Lula adquiriu da BANCOOP o apartamento 141-A, pelo preço de R$ 209.119,73, mas a OAS teria disponibilizado ao ex-Presidente (ainda em 2009) o apartamento 164-A (o famoso tríplex), valorizado por reformas e benfeitorias posteriores, sem pagamento da diferença de preço e do custo das reformas, no valor global de R$ 2.424.991,00, definidos como vantagens indevidas na sentença.
2.2. O contraditório processual, segundo a sentença, seria o seguinte: a) a Acusação afirma que a OAS concedeu ao ex-Presidente Lula o tríplex do 164-A, com as reformas posteriores (299), sem pagamento da diferença de valor entre os imóveis, mais o custo das reformas, definidas como vantagem indevida (300); b) a Defesa afirma que o tríplex do 164-A não é propriedade de Lula, embora tenha sido oferecido pela OAS em 2014, mas sem interesse de aquisição do ex-Presidente (301).
2.3. Essa é a questão crucial para o Juiz Moro: a) se o tríplex do 164-A foiconcedido ao ex-Presidente Lula sem pagamento do preço do imóvel e das reformas, haveria vantagem patrimonial ilícita, com a procedência da acusação (302); b) se o tríplex do 164-A não foi concedido ao ex-Presidente, a acusação seria improcedente (303).
Mas a sentença reduziu os parâmetros do juízo, delimitando a prova: a solução não dependeria da transferência da titularidade formal da propriedade (304), mas da transferência subreptícia (sic) do imóvel, com a titularidade formal permanecendo em nome da OAS para ocultar/dissimular o ilícito (305), diz o Juiz Moro. Assim, o registro do imóvel não resolveria o caso, porque a propriedade formal não seria necessária à consumação, conforme a sentença: para o ilícito imputado seria suficiente solicitação ou aceitação da vantagem indevida (306), porque a discussão não é civil (titularidade do imóvel), mas penal (corrupção e lavagem de dinheiro) (308). Logo, segundo palavras textuais do Juiz Moro, tudo o que a sentença pretende demonstrar (a) para comprovar corrupção, é se Lula solicitou ou aceitou vantagem indevida da OAS e (b) para comprovar lavagem, se Lula ocultou ou dissimulou as vantagens indevidas (307). E, conforme a sentença, para demonstrar isso a melhor e mais confiável prova é a documental (310). Assim, o Juiz Moro examina a prova documental para demonstrar os fatos imputados.
3. A prova documental do processo: até onde vai a obsessão humana?
3.1. Documentos apreendidos na residência de Lula. Medida de busca e apreensão requerida pelo MPF e deferida pelo Juiz Moro, realizada no domicílio de Lula (310-320), teria apreendido quatro documentos, que formam o núcleoda prova documental contra Lula:
a) termo de adesão e compromisso de participação de 01.04.2005, tendo por objeto aquisição de direitos sobre a unidade residencial do apartamento 141, do Edifício Navia, do Residencial Mar do Caribe, no Guarujá, pelo preço de R$ 195.000,00, assinado por Marisa Letícia (321, Evento 3, comp192, 2-15);
b) termo de adesão e compromisso de participação de 01.04.2005, tendo por objeto aquisição de direitos sobre a unidade residencial do apartamento 141, do Edifício Navia, do Residencial Mar Cantábrico, no Guarujá, pelo preço de R$ 195.000,00, assinado por Marisa Letícia (322, Evento 3, comp192, 16-26);
c) termo de adesão e compromisso de participação, tendo por objeto aquisição de direitos sobre a unidade residencial do apartamento 174, no Edifício Navia (não informa se situado no Mar do Caribe ou no Mar Cantábrico), então um duplex que se transformaria no tríplex 164-A, sem data, também sem preço e também sem qualquer assinatura (324, Evento 1, comp192, 27-39);
d) cópia carbono de proposta de adesão sujeita à aprovação de 12.04.05, tendo por objeto unidade habitacional rasurada, no Edifício Navia do Residencial Mar Cantábrico, no valor de R$ 195.000,00, assinado por Marisa Letícia (325, Evento 3, comp192, 40).
3.2. Documentos apreendidos na BANCOOP. Medida de busca e apreensão requerida pelo MPF e deferida pelo Juiz Moro, realizada na BANCOOP (327-9), teria apreendido o documento original da cópia de carbono apreendida no domicílio de Lula, descrito na letra d, acima, assim descrito (330):
e) original da proposta de adesão sujeita à aprovação de 12.04.2005, tendo por objeto unidade habitacional rasurada, no Edifício Navia do Residencial Mar Cantábrico, no valor de R$ 195.000,00, assinado por Marisa Letícia (325, Evento 3, comp192, 40).
3.2.1 A Perícia oficial e complementar. A rasura no espaço destinado à unidade habitacional existente no original e cópias do documento foi objeto de perícia oficial, realizada pela Polícia Federal (333), e perícia complementar, realizada por Assistente Técnico, indicado por Lula (Eventos 474-81).
A conclusão do Laudo Pericial 1.576/2016, da Polícia Federal (sem divergência do Laudo Complementar, do Assistente Técnico), foi a seguinte:
“A numeração original aposta no campo APTO/CASA sofreu alteração por acréscimo denominada inserção, sem prévia alteração subtrativa, isto é, os lançamentos anteriores não foram suprimidos”.
E conclui o Juiz Moro: a proposta foi preenchida com o número “174” e, em seguida, sobreposto a ele o número “141” (334).
3.2.2. Outros dados da perícia. A perícia constatou ainda, que (a) do lado esquerdo superior do documento existia a palavra “tríplex”, igualmente rasurada (337) e que (b) era impossível identificar a autoria do manuscrito e o momento das rasuras (338).
4. A vida e as provas da vida: uma reinterpretação da prova
4.1. O pressuposto da reinterpretação. Marisa Letícia não era uma mulher de negócios, habituada a assinar contratos ou discutir cláusulas contratuais, cujas decisões pudessem engendrar responsabilidades jurídicas estritas, menos ainda fundamentar complexas condenações criminais (a de Lula e, em princípio, dela própria), como o MPF e o Juiz Moro pretendiam fazer e, de fato, fizeram! Ao contrário, originária das camadas mais pobres da sociedade, Marisa Letícia era uma mulher simples e humilde que queria apenas comprar um apartamento BNH, onde sonhava morrer feliz, um dia… Mas veio a Denúncia contra Lula e contra ela, fundada nas assinaturas dela em documentos contratuais, a “melhor e mais confiável prova”, segundo o Juiz Moro – e a ex-Primeira Dama não pôde explicar para o Juiz Moro o conteúdo das hipóteses: foi excluída do processo por morte (uma causa legal de extinção da punibilidade) – uma morte explicável pela obsessão punitiva do Juiz Moro, na opinião popular.
4.2. Os termos de adesão assinados. Marisa Letícia assinou os dois contratosque lhe apresentaram para assinar (324-5, Eventos 1 e 3) – assim como teria assinado outros mais que lhe pedissem para assinar -, sem saber se era do Mar do Caribe ou do Mar Cantábrico, ou de qualquer outro mar, sabendo apenas que era um apartamento simples no valor de R$ 195.000,00 – e nada mais!
4.3. As propostas de adesão sujeitas à aprovação. A Acusação apresentou dois formulários relativos a propostas de adesão sujeitas à aprovação, uma não assinada e outra assinada, que exigem exame separado.
4.3.1. A proposta de adesão sujeita à aprovação não assinada. O formulário apresentado (324, Evento 1) teria por objeto aquisição de direitos sobre a unidade residencial do apartamento 174, no Edifício Navia, então um duplex que se transformaria no tríplex 164-A (324, Evento 1), mas é um simples formulário que não tem data de preenchimento, que igualmente não tem o preço do imóvel e que, ainda por cima, não tem a assinatura de Marisa Letícia – como reconhece o Juiz Moro na sentença (324) – e, por tudo isso, o formulário não só não é um contrato, como também não é nenhum documento, mas um papelucho que só não está na lata de lixo porque faz parte daquela melhor e mais confiável prova com a qual o MPF e o Juiz Moro pretendem iludir os ingênuos, dizendo:- olha, tem aquele papel apreendido na residência do Lula! Apreendido ou não, esse papelucho não vale nada – e, ninguém sabe se foi apreendido na residência, ou se foi plantado na residência para ser apreendido! Seja como for, nenhuma teoria jurídica seria capaz de transformar um papelucho não assinado em documento jurídico válido, em nenhum Tribunal civilizado.
4.3.2. A proposta de adesão sujeita à aprovação assinada. Finalmente, a proposta de adesão sujeita à aprovação, de 12.04.2005, no valor de R$ 195.000,00, tendo por objeto uma unidade habitacional rasurada (superposição do número 141 ao número 174) – cuja cópia carbono foi apreendida na residência de Lula (325, Evento 3) e o original dessa cópia carbono, com idêntica rasura na unidade habitacional, apreendido na BANCOOP (330, Evento 3) -, foi assinado por Marisa Letícia, que teria assinado qualquer contrato que lhe apresentassem para assinar, na boa-fé de que ninguém tentaria enganar a Primeira Dama do País. E, de fato, ninguém tentou enganar Marisa Letícia, apenas um funcionário ou vendedor (da BANCOOP ou da OAS) escreveu o número 174 no local da unidade habitacional (o que jamais Marisa Letícia teria feito), por inúmeras razões: era a esposa do Presidente da República e poderia comprar uma unidade melhor, ou porque a compra do imóvel por Lula iria promover as vendas do empreendimento, ou porque a venda do imóvel a Lula sempre foi um projeto da empresa, ou pelo simples desejo de aumentar a comissão com a venda de um imóvel mais caro, não importa o motivo, o funcionário/vendedor escreveu o número 174 no espaço da unidade habitacional. Mas em seguida o funcionário/vendedor abandonou o propósito da ação, ou porque verificou o equívoco, ou porque Marisa Letícia indicou o erro, ou porque Marisa Letícia rejeitou a ideia do vendedor, o certo é que o número foi corrigido com a sobreposição do número 141, assumindo o aspecto visual de uma rasura, porém identificando o imóvel correto, que estava realmente sendo adquirido, mediante inserção ou sobreposição do número 141 sobre o número 174, tudo exatamente como informa a perícia oficial.
E com alguns detalhes relevantes, que confirmam a reinterpretação da prova, além de qualquer dúvida:
a) primeiro, o valor do imóvel consta de modo correto no documento, porque se refere à unidade habitacional 141, e não à unidade habitacional 174: afinal, como constatado pela perícia, se o documento comprova alguma coisa – ou melhor, a única coisa que documento pode comprovar – é a aquisição da unidade habitacional 141 – e não, a unidade habitacional 174;
b) segundo, o documento assinado admitia a rasura realizada, porque era uma proposta de adesão sujeita à aprovação, com eventual correção definitiva, na redação posterior do documento;
c) terceiro, a sobreposição constituiu ato normal de correção do número errado: logo, se a sobreposição não tivesse tido o propósito de corrigir a numeração original – como, de fato, teve -, mas tivesse sido realizada com algum hipotético objetivo de adulterar o documento original – objetivo que, de fato, não existiu –, então subsistiria esta pergunta: por que Marisa Letícia guardaria um documento com uma rasura incriminadora?
d) quarto, se existisse a preocupação de disfarçar, camuflar ou esconder o 174, então sobrepor o número 141 seria a última coisa que se faria – e a primeira a ser feita seria substituir o formulário por outro, com o espaço da unidade habitacional pronto para ser preenchido com o número correto.
5. O laudo pericial como prova da inocência de Lula.
Como se vê, a prova definitiva que demonstra a inocência de Lula, é o Laudo pericial 1.576/16, da Polícia Federal (333), que comprova: a numeração original sofreu uma alteração por inserção (e não uma alteração subtrativa), de modo que o número 174 era o número original, e o número 141 era o número sobreposto (334).
Na verdade, esta reinterpretação é uma bela ironia do processo penal: quando tudo indicava que a melhor e mais confiável prova fundamentaria a condenação de Lula, então (a) uma prova documental produzida pela Acusação destrói a imputação da Denúncia, e (b) a bisonha interpretação da prova documental pelo Juiz Moro destrói a tese da sentença condenatória – e assim, segundo a lógica jurídica, Lula deve ser absolvido! Afinal, a rasura representada pela sobreposição do número 141, na unidade habitacional da proposta de adesão sujeita à aprovação descrita no Evento 3 (325), não constitui fraude praticada por Marisa Letícia, mas correção de erro pela inserção prévia do número 174, com a finalidade de identificar o imóvel correto objeto do contrato. E não é preciso dizer mais nada! A reinterpretação da prova documental, fundada na perícia oficial, determina a absolvição de Lula! O resto é bobagem – ou alucinação delirante do Juiz Moro.
Juarez Cirino dos Santos é Advogado criminalista, Professor Titular de Direito Penal da UFPR, Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC e autor de vários livros.
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