segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O desmonte do Brasil-Nação e a sintonia neoliberal-evangélica, por Roberto Bitencourt da Silva




GGN. - Lendo o noticiário desse domingo, tropecei em uma curiosa matéria do Brasil 247 que trata da aproximação do czar da economia brasileira, o reacionário e entreguista ministro Henrique Meirelles, com o mundo religioso evangélico. Um fenômeno que não causa surpresa.
A relação entre neoliberalismo – uma corrente teórico-dogmática abstrata e semirreligiosa, propagada pelas escolas de economia, fóruns multilaterais e conglomerados de mídia – e seitas evangélicas é razoavelmente natural. Por outro lado, trata-se de um “casamento” que elucida, em parte, o desmonte do “Brasil-Nação” (para usar terminologia cara ao patriota e grande pensador social brasileiro Manoel Bomfim).
A respeito, cumpre observar que há duas décadas o cientista político estadunidense Samuel Huntington explorou uma peculiar tese sobre o ordenamento internacional entre os Estados, após o desmoronamento da guerra fria: a eventualidade de um “choque de civilizações”.
A preocupação maior do autor era, por óbvio, a defesa dos interesses dos EUA na ordem mundial, a capacidade do império do Norte de modelar as normas que regem o sistema, bem como as possibilidades de defesa frente aos desafios erguidos por civilizações não-ocidentais. Uma obra erudita, mas controversa.
Contudo, apresenta uma temática de fundo, ressaltando a dimensão cultural nas relações internacionais e nas políticas domésticas dos países, que me parece instigante do ponto de vista da questão nacional e para o exercício de reflexão a que se propõe esse texto. A saber: as civilizações possuem identidades delineadas conforme as suas culturas e trajetórias, ordenando valores e percepções sobre si mesmas e o mundo.
Baseados em suas trajetórias civilizatórias, em seus parâmetros éticos, políticos e culturais, os países tendem a enxergar a si mesmos, reconhecendo linguagens, visões e aspirações minimamente comuns. Partilham uma gramática e comportamentos mais ou menos previsíveis, que atravessam suas subculturas nacionais, reconhecendo, pois, minimamente que seja, o que são, o que querem e não querem enquanto nações.
Nesse sentido, gostemos ou não, aquilo que se pode chamar de civilização brasileira foi construída, em nossa formação histórica, a partir de um caldeirão cultural organicista. Isto é, o todo tende a ser considerado mais importante do que o indivíduo e as partes.
Pode-se dizer que o catolicismo foi o terreno cultural original, desde a colonização portuguesa. A emergência política e intelectual do positivismo deu sequência, nas últimas décadas do século XIX.
Em boa medida, à esquerda, a partir dos anos 1930, as próprias correntes políticas trabalhista e comunista no Brasil pagavam tributo ao catolicismo e, em especial, ao positivismo. Não à toa, Getúlio e Prestes foram seus respectivos ícones. À direita, o integralismo de Plínio Salgado não deixava de render suas homenagens ao catolicismo. Depois dos anos 1980, à esquerda, o PT opera(va) com ingredientes da fonte católica.
Não entro em detalhes se a cosmovisão organicista é boa ou ruim. Isso é demasiadamente subjetivo. Grosso modo, pode-se alegar que é as duas coisas ao mesmo tempo. Como qualquer outra visão de mundo.
O que interessa dizer é que o organicismo é (ou foi) traço fundamental da civilização brasileira, senão mesmo latino-americana. Influía ou influi no nosso jeito de ser, inclusive no hibridismo cultural e político, que, evidentemente, nunca deixou de hierarquizar temas, expressões culturais, aspirações, grupos e classes sociais. Em todo caso, o organicismo brasileiro é (era) tipificado pela abertura a alguma margem à tolerância e incorporação da diferença, religiosa, cultural, política.
Não gratuitamente, o organicismo, sobretudo em suas matrizes católica e positivista, sempre foi radicalmente contrário ao liberalismo, em particular ao liberalismo econômico (o “liberismo”, como definia Norberto Bobbio).
A convergência circunstancial entre liberalismo e catolicismo, à Lacerda, nos anos 1960, guardou algum êxito, mas a variável anticomunista é que acimentava. No regime ditatorial civil-militar de 1964, o positivismo militar aliou-se ao liberalismo econômico transnacionalizante. Porém, com o tempo, senão o hegemonizou, equilibrou, conforme o “comunismo” deixava de servir de preocupação.  
Na contramão, o chamado neoliberalismo e as seitas evangélicas, mormente neopentecostais, são frutos de outras civilizações, principalmente anglo-saxãs. Dotados de esquemas de percepção peculiares e que pouca ou nenhuma relação possui com o organicismo. São expressões intelectuais, culturais e religiosas, por natureza, individualistas, egóicas. Fundamentalmente: o indivíduo, a parte, tem primazia sobre o todo.
Oportuno frisar que o crescimento da influência e da força de incidência cultural e política do neoliberalismo e das igrejas evangélicas se deu na esteira da crise da dívida externa dos anos 1980 e, particularmente, com a inserção subordinada da economia nacional na “globalização”. Culturalmente, o resultado tem sido a intensa absorção de valores anglo-saxões, individualistas, egoístas, os quais Huntington classifica como “ocidentais”.
Diga-se de passagem, o pensador norte-americano preconizava a tomada de iniciativas voltadas à “ocidentalização” da América Latina, à maneira de um “soft power”, de sorte a melhor proteger os interesses hegemônicos de poder mundial dos Estados Unidos.
Assim, temos a equação formada por uma subordinação incontrolada do setor produtivo e financeiro brasileiro ao capitalismo internacional, associada ao dilatado proselitismo (inclusive televisivo) e recursos financeiros amplos entre as seitas evangélicas. Poderosas forças econômicas, políticas e culturais de incidência estranhas à civilização brasileira.
Hoje, vemos o País esfarelar-se de maneira abjeta. Vê-se a predominância de polêmicas e temas adentrando a agenda pública, que sequer resvalam nos principais problemas que ameaçam a Nação. Polêmicas, não raro falsas, promovidas por intolerantes setores antinacionais, liberalóides e religiosos, que mais obscurecem e embotam as necessárias discussões sobre os decisivos desafios e dilemas brasileiros.  
Não mais sabemos o que somos, o que queremos. Isso não é gratuito. Qualquer esforço intelectual, cultural, em nossos dias, de mapeamento, pior ainda de construção, da identidade nacional brasileira seria um exercício sobremodo hercúleo.
Se não conseguimos mais nos enxergar compartilhando valores, princípios e linguagens minimamente comuns, é válido não esquecer ao menos isto: o território brasileiro possui 25% da água doce do planeta; reservas mineiras e energéticas extraordinárias, sob a cobiça internacional. Cercado por bases militares estadunidenses (são mais de vinte).
A crise ecológica internacional da escassez de terras férteis e agricultáveis, de fontes de energia e água potável, está logo ali se insinuando na esquina do tempo. Se quisermos ter algum futuro enquanto Nação é preciso lembrar quem e o que somos, procurar identificar o que queremos, o que é realmente importante, visando nossa defesa e segurança frente a um mundo instável e ameaçador.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político. 

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