Vinte e quatro horas depois da aprovação da reforma trabalhista pelo Senado, a condenação de Luiz Inácio Lula da Silva a 9 anos e seis meses de prisão representa um novo sinal de mudança na situação política -- na mesma direção, produzido pela mesma máquina política.
Em 74 anos de existência, a CLT foi a principal -- ainda que incompleta -- iniciativa dos poderes do Estado brasileiro na construção de um regime de bem-estar social, indispensável às sociedades modernas desde o século passado.
Em 40 anos de vida pública, dos quais oito passados na Presidência da República, Lula fez um governo que, apesar de erros e limites, ajudou a tirar o Brasil do mapa da fome, definiu políticas de redução da desigualdade e abertura de oportunidades aos de baixo. Sob sua ação direta, ou na continuidade do mesmo projeto político que teve sequencia no governo Dilma, o país abriu oportunidades de explorar suas riquezas naturais e conquistou uma posição reconhecida como liderança regional. Passou de oitava a quinta economia do planeta e enfrentou a crise mundial de 2008-2009 com um bem sucedido programa de estímulos ao crescimento, invejado e elogiado no resto do mundo, inclusive pela bíblia do conservadorismo, a revista Economist.
A derrocada da CLT foi uma iniciativa em conflito frontal e direto com a vontade popular. Conforme pesquisa DataFolha, a rejeição de brasileiros à reforma atingiu a proporção de 5 contra 1 em maio. Se o plenário do Senado fosse uma instituição capaz de traduzir esse número, democraticamente, a proposta deveria ter sido rejeitada por larga margem -- seria 60 a 16, na pura matemática -- e não aprovada por 50 a 26.
No país de hoje, Lula não carrega só a esperança popular de quem é considerado o mais popular presidente que nossa República já teve. Também é o líder em todas as pesquisas eleitorais para 2018. Representa a principal oportunidade para reconstruir uma democracia atingida pelo golpe de Estado que derrubou Dilma, na principal ruptura institucional desde o golpe de 64.
Sem fazer qualquer aposta na mitologia dos homens providenciais a quem se tenta atribuir a capacidade de salvar nações a beira do abismo, basta manter contato com nossa realidade política para reconhecer que Lula tem um papel único a desempenhar. Lembrando que os homens e mulheres não escolhem as condições para agir sobre a história e transformar o meio social em que vivem, mas atuam sobre condições dadas, Lula tem um encontro marcado com o programa de ruína econômica, retrocesso social e reversão de direitos que traduzem a herança do governo Temer-Meirelles.
Em mais uma iniciativa para afastar a vontade popular dos centros de decisão política, a sentença de 9 anos e meio, que ainda proíbe o acesso por 19 anos a cargos públicos, representa uma ameaça direta à missão que uma parcela considerável de cidadãos brasileiros -- quem sabe a maioria -- lhe atribui. E isso é o mais grave, o principal.
Desde ontem Lula é um cidadão livre mas condenado, isto é, dependente de uma decisão de Segunda Instância. Juridicamente, seu destino se encontra nas mãos de três magistrados que podem -- mas raras vezes tem exercido esse direito até aqui -- rever a sentença inicial, reparar erros cometidos e até inocentá-lo. Não há prazo para isso acontecer, o que coloca um novo elemento de incerteza e insegurança sobre a natureza das eleições que estão por vir, num ambiente de escombros do regime democrático conquistado a duras penas após 21 anos de ditadura. Nem é preciso dar os nomes de quem se beneficia com uma possível exclusão de Lula da campanha. Para todos os porta-vozes da restauração conservadora, declarados ou camuflados, há mais de uma década Lula é o inimigo principal a abater, o centro de todos os alvos.
Assinada por Sérgio Moro, a sentença de Lula é parcial e injusta. Está longe de refletir uma postura equidistante entre acusação e defesa que se espera de um magistrado. Reflete uma operação que, voltada ao esforço necessário de combate a corrupção, transformou-se num ataque às garantias previstas em toda democracia. Num artigo em que denuncia os tribunais de exceção, o professor e filósofo Roberto Romano, com uma carreira sólida nos meios acadêmicos de São Paulo, sublinha uma das mais deprimentes passagens da política norte-americana para rgistrar: "não esqueçamos os procedimentos macarthistas, nos quais os réus eram punidos antes de os processos chegarem aos magistrados. A lista é infindável. Importa, no entanto, definir (...) o sinal da tirania imposta sem prudência nos golpes: o direito do réu é negado, a sentença vem antes do julgamento." Para o professor " a Operação Lava Jato, apesar de bons êxitos por ela atingidos, traz marcas de golpismo em vários procedimentos de procuradores."
Impossível deixar de recordar um artigo de Sérgio Moro sobre as Mãos Limpas italiana, no qual discute, esclarece e antecipa medidas que seriam realizadas no Brasil -- inclusive uma aliança com uma parcela da mídia, o esforço para "deslegitimar" a classe política a partir de denúncias e vazamentos, a importância das prisões preventivas. O que se lê não é um trabalho jurídico -- mas um plano de trabalho de quem se atribui uma missão política, de regenerar o país.
A decisão contra Lula foi anunciada ao final de uma investigação em torno do célebre apartamento triplex no Guarujá, que, de acordo como uma versão que até hoje não se sustentou em provas, teria servido de para o pagamento de propinas por parte da empreiteira OAS.
Até hoje, a única utilidade comprovada da acusação, na verdade, foi permitir que se questionasse a qualidade da investigação realizada. Em fevereiro de 2016, os trabalhos iniciais de apuração realizados pelo Ministério Público de São Paulo, numa época da vida nacional em que a simples existência da Lavajato não havia chegado aos jornais, foram examinados pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Ali, o relator do caso, Valter Shuenquener, deixou claro que não foram cumpridas as regras necessárias de isenção e imparcialidade que devem garantir, a todo acusado, a presunção da inocência. Numa sentença dura, Shuenquener chegou a fazer referência aos célebres "procuradores de encomenda" do passado -- no plenário, todos sabiam muito bem o que queria dizer com isso.
A partir dessas circunstâncias já comprometedoras, em abril de 2017, a juíza Maria Priscilla Ernandes Oliveira concluiu que se tratava de um caso de "absolvição sumária", inocentando Lula e os demais acusados. Nesta situação, a investigação foi repassada para a força tarefa da Lavajato, onde a denúncia perdeu consistência dia após dia. A última novidade é que está demonstrado que o apartamento -- por anos a fio o grande motivo de disputa entre acusação e defesa -- não é, nunca foi nem poderia ter sido de Lula. A partir de uma investigação feita por conta própria por seus advogados, descobriu-se que desde 2009 o imóvel tornou-se alvo de um "contrato de cessão fiduciária de direitos creditórios" entre a OAS e a Caixa. Pelo contrato, uma prática corriqueira do mercado imobiliário desde a década de 1990, a empreiteira incluiu o tríplex uma operação de captação de recursos financeiros, pela qual não poderia desfazer-se do imóvel sem pagar a Caixa.
"A sentença veio antes do julgamento," como disse o professor Roberto Romano. Alguma dúvida?
Paulo Moreira Leite, em seu blog no 247
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