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sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Onde fica a sua Jerusalém? Entendendo o fundamentalismo atual, por Christian Dunker



Precisamos entender que o novo fundamentalismo brasileiro se inscreve em uma história e um tempo no qual a mesma doença se alastra.
Palestinos em ponto de ônibus localizado no muro da Cisjordânia, em Al-Ram, localizado na periferia de Jerusalém. 12 set. 2013; Foto: Uriel Sinai.

do Blog da Boitempo

Onde fica a sua Jerusalém?

por Christian Ingo Lenz Dunker

Hanan nasceu nos EUA, mas há 40 anos decidiu emigrar para Israel onde vive até hoje em uma pequena área na Cisjordânia ocupada. Há seis anos ele percebeu que estava cego, pois durante todo esse tempo ele nunca havia conversado com um Palestino sequer. Procurou entre os vizinhos, deu carona para todos que encontrou pelo caminho, tudo sem sucesso. Por meio do Facebook ele descobriu o ponto de encontro mais próximo onde pessoas falavam árabe. Aproximou-se lentamente, mas quando viu estampadas na jaqueta de um deles as palavras “Seeds for Peace” [Sementes para a paz], achou que podia estar diante de um terrorista. Deu a mão para um deles. Logo depois, escuta uma história que menciona a cidade onde um amigo morreu, vítima de um ataque do Hamas. Vai lavar a mão pois sente que pode estar contaminado.
Temos aqui uma experiência bem brasileira. Medo de pessoas com quem nunca falamos. A descoberta desconfortável do tamanho de nossas bolhas e condomínios. Representações imaginárias sobre negros, mulheres pobres ou comunistas. Aproximações e reaproximações que confirmam preconceitos. Mas ainda nos falta o capítulo da curiosidade e da persistência.
Estamos doentes. Viramos racistas treinados para responder, não para escutar. Foi por isso que resolvemos montar este lugar, uma espécie de Centro de Saúde Mental onde palestinos e judeus pudessem se encontrar numa terra de ninguém.” Estamos num pequeno cubículo de madeira, ao meu lado direito um jovem pastor evangélico, do outro um rabino aposentado, ambos moram no Rio de Janeiro. Pensamos: o Brasil é aqui.
Neste momento entra Nur, um rapaz de uns 30 anos. Ele pertence a uma geração de palestinos que cresceu sob a segunda Intifada. Durante 13 anos não conseguia entrar em Belém para ver sua família. Vindo de uma área na qual nasceram 82% dos homens bomba que agiram em Israel, ele também perdeu amigos em ataques. Escutando seu relato, percebemos a dinâmica perversa das profecias autorrealizáveis: trate alguém sistematicamente como um potencial terrorista, tenha medo dessa pessoa, bloqueie sua mobilidade, prive-a de educação, mate alguns de seus amigos e vejam só, ela começa a ficar com raiva, com medo e a se comportar… como terrorista. Aliás, um terrorista incrivelmente parecido com aquele que você já tinha dentro da sua cabeça. O tratamento que Nur e Hanan inventaram para essa doença imaginária de efeitos bem reais consistiu simplesmente em colocar as pessoas junto em um espaço onde podiam conversar. A única condição: o lugar onde aconteceriam as reuniões  teria de ser um pedaço de terra que fosse ou de ninguém ou de todos.
Saímos de lá para outro lugar mítico: Jerusalém. Ali de novo a mesma conversa, mas agora multiplicada. O muro das lamentações é dividido. Há uma parte reservada para homens, outra para mulheres, e ainda uma terceira (a área igualitária), onde uma centena de rabinos reformistas podem realizar casamentos, ainda que não reconhecidos (nem pelo Estado, nem pelos religiosos ortodoxos). A luta entre judeus sionistas de esquerda e de direita segmenta-se ainda mais quando somamos os ricos, descendentes de europeus (Asquenazes) de um lado e os judeus emigrados do norte da África e de outras partes pobres do Oriente Médio, como o Iêmen. Ora, seria preciso um inimigo muito forte para unir todas essas diferenças. Esse inimigo foi construído por meio da suposição da unidade dos “árabes”. Desta maneira, divisões seculares e milenares, que incluem cristãos árabes, Beduínos, refugiados de Golã ou desconectados de Gaza, o conflito entre Hamas e Autoridade Palestina, tudo isso torna-se uma única unidade. Quanto mais “nossa” divisão interna se aprofunda e se segmenta mais precisamos desesperadamente de um sólido inimigo.
Quanto mais sólido o inimigo mais consistente a minha identidade. Aqui há dois caminhos: ou reforçamos dramaticamente um dos lados e, depois da vitória, passamos a apaziguar o ressentimento, ou então optamos por tratar o ressentimento antes e adiamos o uso da força. Os dois caminhos, contudo, passam pelo reconhecimento de uma perda fundamental – a perda de um lugar do qual nos acreditamos donos e que é a última coisa que queremos renunciar.
Ocorre que a última coisa que ambos parecem estar dispostos a fazer é criar este espaço de todos e de ninguém chamado Jerusalém. É por isso que a posse, o uso e a propriedade deste lugar é ao mesmo tempo a disputa por um lugar imaginário e um ponto de alienação máxima da disputa política.
“Quem mandou matar Marielle?” No muro da faixa de Gaza.
O método Nur-Hanan, promissoramente exportável para o Brasil, compõe-se de duas condições e uma experiência. A primeira condição é reconhecer a divisão interna. Suspender a ilação de que “os judeus” pensam assim e “os árabes” pensam naturalmente o oposto e simétrico. Por isso a esquerda não é o idêntico invertido da direita. É a relação que é imaginária, não os termos eles mesmos. Daí o esforço de romper com a lógica patriarcal  segundo a qual se dois estão brigando um deles começou e os dois estão errados. Eles não estão nem igualmente errados nem igualmente certos porque eles não são de saída duas posições comparáveis. A comparação é o termo de chegada, não o de saída. O problema aqui é que cada particular reativo apresenta-se como um falso universal, e é por isso que ele apregoa a inexistência ou insuficiência de todo e qualquer universal.
A segunda condição é a produção de um espaço de indeterminação. Dentre os candidatos estão espaços públicos como universidades, escolas, museus, imprensa e tribunais. O erro aqui é imaginar que esses espaços deveriam ser neutros e imparciais. Eles não são, nunca foram e seriam apenas de maneira perspectiva ou em progresso. O importante não é que sejam celestialmente isentos, mas indeterminados. Ou seja, que eles suspendam a relação de propriedade e apossamento, que é a raiz das identidades patológicas e motivo pelo qual elas surgem sempre como reações defensivas. É a lógica de reconhecimento que é simbólica, não os seus agentes ou instâncias. Caso contrário, ficaremos nos segmentando cada vez mais em um infinito ruim feito de fronteiras supostamente apaziguadoras entre religião e política, entre ideologia e ciência, entre mouros e cristãos, entre corruptos e puros, entre nós, a “família”, e eles, os “outros”. O segundo problema é que isso não é inútil porque no fundo somos todos iguais e tudo se reduz ao jogo sujo da luta de todos contra todos pelo poder. Isso é inútil porque somos diferentes. O universal é que só existem exceções.
Finalmente, dadas essas duas condições, seria necessária uma experiência de “realidade”, representada aqui pela convivência, pelas palavras ou pelas histórias contadas de lado a lado na experiência aqui relatada no “West Bank” (nome dado pelos palestinos à Cisjordânia ocupada).
Precisamos aprender com Israel. Precisamos entender que o novo fundamentalismo brasileiro se inscreve em uma história e um tempo no qual a mesma doença se alastra. Precisamos aprender a descobrir do que é feita e onde está a Jerusalém de cada um de nós – esse ponto de segurança e garantia de nossas identidades que só serve para nos garantirmos contra um mundo em complexa contradição real. E quando encontrar a sua Jerusalém local, íntima ou pessoal, examine bem se o que você vai fazer é uma cruzada, uma divisão interna cheia de fronteiras militarizadas que se multiplicam ao infinito ou um lugar que deve ser literalmente enunciado em inglês, com toda sua ambiguidade: “no man’s land”.
***
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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