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quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Xadrez dos primeiros dias do governo militar, por Luis Nassif




"Vamos transplantar a velha ordem romana para o caso brasileiro. A próxima fase sugere um sistema de poder desequilibrado, com o estamento militar se sobrepondo ao político e ao jurídico." - Luis Nassif


Do GGN:





Passo 1 - juntando as peças do jogo


Vamos juntar algumas peças dos discursos de posse e das declarações do novo governo Jair Bolsonaro.
* Sua promessa de extirpar o socialismo e o marxismo do país.
* A proposta de unificar a Nação.
* A proposta do Ministro das Relações Exteriores de abrir a estrutura do Itamarati a não diplomatas.
* A proposta do Ministro da Educação de transformar as escolas municipais em escolas militares.
* A entrega da demarcação das terras indígenas, dos quilombolas e o manejo florestal aos ruralistas do Ministério da Agricultura.
* As promessas de enxugamento radical do Estado e de abertura comercial.
* O tratamento conferido à imprensa no dia da posse.
* O anúncio de caça às bruxas em cargos de confiança e a nomeação de nomes fieis à causa, conforme explicação de Onix Lorenzoni, o pecador absolvido por Sérgio Moro.
* A inclusão de quadros militares em várias áreas da administração, incluindo a Caixa Econômica Federal.
* Na posse do Ministro da Defesa, Bolsonaro deixou escapar que houve articulações com o general Eduardo Villas Boas, comandante-chefe das Forças Armadas, que estimularam sua candidatura. Ou seja, o Poder Militar e o Poder Jurídico se juntaram para manter Lula fora do jogo e viabilizar a candidatura Bolsonaro.
* As declarações de Paulo Guedes sobre a reforma da Previdência, colocando como fator de iniquidade os benefícios para o Judiciário e para a alta administração pública.

Passo 2 - as conclusões iniciais

As conclusões que se tiram:
Conclusão 1 - o que se configura pela frente não é o despotismo, isto é, o governo despótico de um indivíduo, uma família ou grupo. O poder, agora, está com as altas patentes militares, que se veem imbuídas de uma missão salvacionista. É poder que veio para ficar. O salvacionismo consiste em matar o mal pela raiz, interferindo em todos os sistemas que permitem a propagação do socialismo e da corrupção. Portanto, não é discurso restrito a Bolsonaro.
Conclusão 2 -  No tocante às relações externas, há clareza sobre o chamado interesse nacional.  A racionalidade militar impedirá tolices fundamentalistas de Bolsonaro, como a adesão incondicional a Israel e aos Estados Unidos.
Conclusão 3 - Em relação ao quadro interno, há sintonia com o pensamento de Bolsonaro. Acredita-se piamente na ameaça vermelha, no marxismo nas escolas, nos barbudinhos comunistas do Itamaraty.
Quando se fala em coesão nacional, portanto, não se está pensando em conciliação em torno de objetivos maiores, admitindo a pluralidade de ideias, só possível dentro de um quadro de normalidade democrática. Persegue-se a coesão excludente, na qual só caberão os homens bons, que se unirão no combate aos pervertidos.

Passo 3 - a estratégia de legitimação

Na fase inicial do governo Bolsonaro, há alguns fatores de legitimação pela racionalidade:
1. Atualmente, os militares no governo atuam como um freio às pirações do fundamentalismo-religioso da família Bolsonaro.
2. Atuam como uma barreira aos negócios engendrados pela ala dos financiadores de Bolsonaro. A indicação de militares para o Ministério da Infraestrutura e para a presidência da Caixa Econômica Federal, por exemplo, foi vista com alívio por quem acompanha os jogos de lobbies na área pública.
3. Depois do completo abandono da área de segurança, pelos ex-Ministros José Eduardo Cardoso, Alexandre de Moraes e Torquato Jardim-Roberto Jungmann, por justiça reconheça-se que a reestruturação do Ministério da Justiça, por Sérgio Moro, pelo menos no papel, mostra uma retomada dos conceitos originais do Plano Nacional de Segurança. Permanecem as ameaças de uso político do Ministério e do COAF, mas que não afeta a base de apoio de Moro.
4. Um discurso surpreendentemente cidadão do Ministro Paulo Guedes, sobre a reforma da Previdência, explicitando de forma corajosa uma realidade, em geral, escondida pelo pensamento liberal (https://goo.gl/CRUjuh):  “A Previdência é uma fábrica de desigualdades. Quem legisla tem as maiores aposentadorias. Quem julga tem as maiores aposentadorias. O povo brasileiro, as menores”. Das palavras aos fatos, há várias montanhas a serem escaladas.
Os dois pontos centrais de legitimação do novo militarismo, portanto, são a volta do crescimento e a segurança pública.
Antes de voltar ao caso brasileiro, algumas lições da história.

Passo 4 - os militares e a política

Montesquieu, o pai da ciência jurídica, o pensador que imaginou o sistema de “freios e contrapesos” na democracia, desenvolveu seus estudos a partir da análise da glória e decadência do Império Romano, na obra “Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência”.
Dois fatores ajudaram na coesão da nação.
O primeiro, a democracia romana, a divisão do poder, do qual o Povo participava do processo legislativo e da escolha dos Magistrados. E, com os poderes se fiscalizando, havia mais preocupação com o bem-estar da população, com o fortalecimento do conceito de Nação e com a busca da legitimação que fortalecesse a coesão interna.
A ideia aglutinadora era o da expansão infinita do Império Romano. As conquistas asseguravam aos militares a propriedade de terras e aos cidadãos a entrada de mais riquezas, com o controle de novas rotas de comércio.
Com a concentração de poder, que começa com a era César, cai a legitimidade do Senado e do Judiciário. Entra-se em um período de grande segurança interna, agravada pela violência militar, da qual o exemplo mais atrabiliário eram os centuriões; e pela insegurança jurisdicional, com os julgamentos dependendo da corrupção ou intimidação dos juízes. É o início da decadência.
E, aí, comprova-se a máxima de Montesquieu: “Todo homem que tem poder é levado a abusar dele”.

Passo 5 - o caso brasileiro

Vamos transplantar a velha ordem romana para o caso brasileiro. A próxima fase sugere um sistema de poder desequilibrado, com o estamento militar se sobrepondo ao político e ao jurídico.
A lógica militar não comporta a presença do déspota - individualmente ou em grupos. O governo autoritário só se legitima, perante a tropa, se houver a alternância de mando.
Assim como no caso romano, trata-se de um modelo que só se sustenta pela expansão do império, distribuição das benesses e perspectiva, de militares que estão de fora, de, em algum momento, ser aceito no baile.
No caso brasileiro, não significa a conquista de outros países, mas a ampliação do controle do Estado. Conquistam-se mais territórios na máquina, abre-se espaço para a colocação de mais companheiros.
Trata-se de uma lógica de grupo, inexorável, que independe das melhores intenções manifestadas no começo do processo.
Essa dinâmica fará com que, cada vez mais, se amplie a influência militar na máquina pública.
A lógica militar, com sua disciplina e normas, é incompatível com formas difusas de organização política e econômica. No caso da política, na fluidez e nas formas de articulação da democracia. No caso da economia, da auto-regulação dos mercados. Faz parte da formação militar procurar manter todos os fatores sob controle.
Em breve, os fatos atropelarão o discurso do livre mercado.
Mas a permanência, ou não, no poder, dependerá do que entregarem à população.

Passo 6 - os desafios para a militarização

Tome-se a reforma da Previdência. O discurso de Paulo Guedes tem legitimidade, senso de justiça. Mas, colocado em prática, significaria um rompimento radical com o estado patrimonialista. E parte desse Estado é elemento integrante do governo Bolsonaro.
Vamos repetir sua declaração, por surpreendente: “Quem legisla (os políticos) tem as maiores aposentadorias. Quem julga (o Judiciário) tem as maiores aposentadorias”. E onde entram os militares? Segundo o general Hamilton Mourão, o verborrágico vice-presidente, é necessária uma conversa com o Supremo (para mostrar o peso do Judiciário no orçamento), mas o custo das Forças Armadas não pode ser visto como privilégio, mas compensação pela vida dura nos quarteis. Mas como ficariam as aposentadorias herdadas por filhas de militares? E a lógica do militar passar para a reserva com aumento do soldo, na forma de promoção?
Faz parte de quem se torna poder, exerce-lo em sua plenitude.
Será difícil para Guedes atingir seus objetivos abrindo essa exceção para os militares. Significaria se indispor com peças essenciais do sistema de poder que levou Bolsonaro à Presidência, tendo o principal avalista do sistema – os militares – sem legitimidade para tratar do tema.
Caso falhe essa entrega, sempre restará o álibi intemporal da guerra. Portanto, a saída política para qualquer impasse será caçar os suspeitos de sempre.



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