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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

O nefasto discurso autoritário de quem desdenha das lutas travadas pelas minorias, por Daniel Braga, Promotor de Justiça


   "O presente texto não tem a pretensão de lançar mão de teses sociológicas, seja pelos limites naturalmente impostos a publicações como esta, seja pelos limites intelectuais do autor, que formação nenhuma possui nesta área do conhecimento, o que não invalida, nada obstante, o local de fala de um promotor de Justiça profundamente inquieto e receoso da violência historicamente praticada no Brasil e no mundo contra grupos vulneráveis."

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Por Daniel Braga
30 de janeiro de 1965. Os negros de muitos Estados americanos ainda não tinham garantido o direito ao voto. Vítimas de uma truculência policial desmedida, de um sistema educacional excludente e de um sistema de saúde pública inexistente, estavam no limite. Movimentos e passeatas anunciavam-se para os meses seguintes. Em março, as marchas de Selma a Montgomery (Alabama). Em agosto, os tumultos de Watts (Los Angeles). Todos reprimidos com brutal violência pelas forças policiais, resultando em mortes e milhares de feridos.
 
Nesta data, uma música alcançou o primeiro lugar das rádios americanas. A Change Is Gonna Come (“uma mudança virá”), de Sam Cooke, projetou-se imediatamente ao status de hino da América negra. Cooke já estava morto. Havia sido assassinado no mês anterior por um gerente de hotel na Califórnia, o que incrementou a simbologia de sua voz ecoando em todos os lares americanos naquele ano de sofrimento e luta. O ano em que 14 tiros tiraram a vida do ativista Malcolm-X. O ano em que o presidente Lyndon B. Johnson sancionou a lei do voto, assegurando aos negros, pela primeira vez na história daquele país, o acesso ao sufrágio universal.
 
29 de maio de 1983. O economista e professor universitário colombiano Marco Antônio Heredia Viveiros entrou no quarto de sua esposa durante a madrugada e lhe desferiu um tiro de espingarda nas costas. Meses depois, tentou eletrocutá-la no banheiro de casa. Sobrevivendo aos atentados contra a sua vida, Maria da Penha Maia Fernandes ficou paraplégica, dando início a um longo e doloroso processo de responsabilização criminal de seu algoz. Antônio Viveiros iniciou o cumprimento de sua pena somente em 2002, 19 anos e 6 meses depois de condenar Maria da Penha a viver o resto da vida presa a uma cadeira de rodas.
 
12 de junho de 2016. Omar Saddiqui Mateen, jovem de origem afegã, armado com uma pistola e um rifle, invadiu a boate Pulse, em Orlando, estado da Flórida, conhecida por ser uma das casas noturnas mais emblemáticas da comunidade LGBT nos Estados Unidos. Antes de morrer na troca de tiros com a polícia, Omar pôs fim à vida de mais de 50 pessoas, ferindo outras dezenas.
 
Em entrevista concedida ao canal de TV NBC, o pai do atirador esclareceu as suas razões: "isto não tem nada a ver com a religião", disse Seddique Mateen. Acrescentou que seu filho ficou transtornado, mais ou menos dois meses antes da chacina, quando viu dois homens se beijando durante uma viagem a Miami.
 
Agosto de 2017. Índios da etnia flecheiros, que viviam isolados no Vale do Javari, área fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Peru, foram brutalmente massacrados por garimpeiros ilegais que atuam na região. Os corpos das vítimas, que incluíam mulheres e crianças, esquartejados e jogados no rio Jandiatuba. As investigações policiais, com o acompanhamento do Ministério Público Federal, ainda não foram concluídas.
 
O que as tragédias acima guardam em comum? Tendo ocorrido em circunstâncias de tempo e espaço completamente distintas, é possível compreendê-las como parte de um mesmo processo histórico e social de preconceito e exclusão?
 
O presente texto não tem a pretensão de lançar mão de teses sociológicas, seja pelos limites naturalmente impostos a publicações como esta, seja pelos limites intelectuais do autor, que formação nenhuma possui nesta área do conhecimento, o que não invalida, nada obstante, o local de fala de um promotor de Justiça profundamente inquieto e receoso da violência historicamente praticada no Brasil e no mundo contra grupos vulneráveis.
 
Portanto, é preciso falar das minorias. É preciso compreender sua natureza e significado. É preciso ir além do senso comum, para só então se aventurar a algum julgamento, sempre limitado e parcial, sobre suas dores, apelos e reivindicações muitas vezes malcompreendidas por um bem identificado setor da sociedade que não experimenta a hostilidade na pele. É preciso, antes de tudo, empatia.
 
A “Senhora Morte” nos deixou órfãos de Saramago, mas o único representante da língua portuguesa a ser condecorado com um Prêmio Nobel de Literatura sempre terá a nos ensinar, como na obra O Homem Duplicado: “o senso comum é demasiado comum para ser senso”. Persigamos, então, este eterno compromisso: o de ser senso.
 
O que são, então, minorias? Comumente, pessoas mal informadas — ou mal intencionadas — tratam das minorias como se estivéssemos diante de um conceito matemático. Cenário mais grave se revela quando a fala conceitualmente pervertida parte da boca de uma personalidade pública, como políticos, com um potencial de alcance e convencimento muito maiores.
 
“A minoria tem que se curvar à vontade da maioria”, disseram certa vez. Diatribes como esta incidem num duplo erro de premissa. Primeiro, o de ignorar que o princípio democrático é essencialmente contramajoritário, resguardando-se, como na Constituição brasileira de 1988, o direito de grupos menores de pessoas independentemente da vontade da maioria. Caso contrário, não há democracia.
 
Segundo, e o que nos interessa na presente reflexão, o de estimar o sentido de minoria a partir de uma compreensão algébrica, contabilizando-se o “número de cabeças” existentes em cada lado dos espectros políticos em choque, a fim de decidir pela proteção, ou não, de grupos vulneráveis.
 
Nada mais falacioso. É certo que não há um consenso absoluto sobre o significado do termo. Correto afirmar, outrossim, que no mais das vezes as minorias de fato representam um menor número de indivíduos dentro de determinado contexto social. Distinguem-se, porém, pela situação de vulnerabilidade que experimentam em face da cultura dominante, variável no tempo e no espaço, isto é, histórica e geograficamente.
 
Destarte, as minorias podem ser identificadas pela grave situação de anomia (ausência de norma) vivenciada na sociedade à qual pertencem. Ou lhes falta norma positivada para a garantia de seus direitos e interesses, ou essas normas existem no seu aspecto formal, mas não são efetivadas. De qualquer modo, suportam um processo cultural de exclusão e marginalização, não raro com resultados trágicos, como os anunciados nas narrativas que compuseram os primeiros parágrafos do texto.
 
Indene de dúvidas que, como acima afirmado, a alocação de grupos sociais neste conceito depende diretamente da situação histórica e social em que vivem. Os judeus não podem ser considerados minoria em Israel, mas certamente não se lhes pode negar essa qualidade nos mais diversos rincões do mundo para onde seguiram depois da diáspora. Exemplo mais claro de total anomia foi a experimentada pelos judeus que sofreram os horrores do Holocausto.
 
Os índios, de igual modo, não podem ser entendidos como minoria no continente americano que precedeu ao aportamento das esquadras espanholas em 1492. Contudo, todo o processo de invasão, escravização, perseguição e morte a eles impostos pelos colonizadores europeus desde então os relegou a uma grave situação de anomia e vulnerabilidade em suas próprias terras.
 
Importante ter em mente, pois, que apenas o entendimento das condicionantes históricas de marginalização social podem explicar o preconceito e a violência, simbólica ou real, suportados pelas minorias. Sem essa compreensão, estaremos fadados à repetição irrefletida de um senso comum demasiado comum (para ser senso) nos discursos mais conservadores: o de que as minorias não mais precisam de normas protetivas e ações afirmativas que lhes garantam o resgate de sua vitimização histórica.
 
No Brasil, não é possível compreender o racismo sem a escravidão; não é possível entender o machismo longe da cultura amplamente patriarcal; nem é possível refletir sobre a homofobia fora da cultura predominantemente judaico-cristã. A história não desaparece com o raiar do dia nem seus efeitos se esvaecem com o virar de poucos anos. Os erros do passado, mormente quando perpetrados por longo período, deixam sempre a sua herança deletéria para as gerações presentes, que se não bem os interpretar estará fadada a repeti-los.
 
Por isso tão perigoso e nefasto é o discurso que desdenha das lutas sociais travadas pelas minorias, taxando-as de “coitadismo”. É consabido que os discursos políticos, por si sós, não carregam armas, mas indubitavelmente legitimam quem as porta. Até onde se sabe, Hitler não deu nenhum tiro na Segunda Guerra Mundial, exceto o que tirou a própria vida, tampouco Carl Schmitt, o teórico político e filósofo alemão ligado ao nazismo, é reconhecido por ser um dos carrascos que derramavam Zyklon B nas pavorosas câmaras de gás.
 
Qualquer pessoa minimamente comprometida com a democracia e com o respeito aos direitos humanos precisa ter profundo cuidado com as falas discursivas desdenhosas e generalizantes das demandas encabeçadas por grupos vulneráveis. Mais uma vez, a história ensina a quem dela quiser extrair conhecimento. Martin Luther King era “acusado” de comunismo simplesmente por defender o direito dos negros à igualdade, e as sufragistas inglesas eram taxadas de terroristas e autoritárias (parece piada) por lutarem pelo acesso feminino ao voto, à cidadania. Já estávamos no século XX...
 
Como se vê, a fórmula de desmerecimento, desprezo e diminuição dos movimentos sociais por meio de discursos difamatórios é antiga e generalizada. Por essa razão, qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência. O movimento LGBT foi pejorativamente apelidado de “gayzista”, o movimento negro de “coitadista”, o movimento feminista de “feminazi”, e a valsa segue.
 
Assim a história se repete, havendo quem embarque nessas falácias maliciosas e difamatórias. Os exageros naturalmente cometidos por estes levantes — sim, exageros existem e são próprios do ser humano — são imediatamente fermentados, alimentados e trabalhados à exaustão para que sejam a prova definitiva de que as minorias por trás deles almejam senão benefícios e vantagens no lugar de proteção e redenção de sua anomia.
 
Ocorre que, enquanto a valsa toca na casa grande, a senzala morre. Enquanto as legítimas reivindicações das minorias são encaradas como “coitadismos”, para deixar longe das políticas estatais a efetiva promoção de seus direitos e a criação de uma ambiência democrática de respeito e tolerância, os frequentadores da boate Pulse, os índios flecheiros do rio Jandiatuba e Maria da Penha Maia Fernandes continuarão senão um brevíssimo capítulo de um livro sem fim, e a canção de Sam Cooke permanecerá uma promessa irrealizável.
 
Enquanto houver quem jocosamente reclame pelo reconhecimento do “dia da consciência branca”, do “dia do homem” e do “dia do orgulho hétero”, demonstrando pernicioso desconhecimento da realidade histórico-social na qual está inserido, a própria Constituição Federal de 1988, apelidada por Ulisses Guimarães de “Constituição Cidadã”, não passará de uma promessa do porvir, pois lá está inscrita, em várias passagens, ainda que com palavras outras, o compromisso inarredável do Estado brasileiro com a promoção dos direitos das minorias, que decerto não incluem os homens brancos e heterossexuais.
 
O cuidado com o lado fraco de qualquer relação, notadamente das relações de poder que se desenvolvem em sociedade, diz mais sobre caráter que sobre ideologia. Alguns consensos precisam ser fixados qualquer que seja a orientação ideológica sustentada. O respeito aos direitos humanos e a proteção das minorias não são caminhos políticos, mas o próprio fim da política, o objetivo último do Estado Democrático de Direito.
 
Que para cada discurso de ódio tenhamos uma resposta altruísta; que para cada ato de violência tenhamos outro de alteridade, na certeza de que estes são os únicos caminhos capazes de nos conduzir à verdadeira libertação social. Que cultivemos, sobretudo, a empatia necessária à compreensão de demandas que não são nossas — sem deixar de sê-lo, pois a democracia não se fatia.
 
Libertemo-nos, enfim, dos grilhões do egoísmo e da ignorância, pois ainda carecemos de uma verdadeira alforria, ampla, geral e irrestrita, que nos permita enxergar e sentir para além de nossos muros. Como Machado de Assis nos alertou há mais de 100 anos, gritando para surdos, em Esaú e Jacó (1904): “a abolição é a aurora da liberdade; emancipado o preto, resta emancipar o branco”.
 
Daniel Braga Bona é promotor de Justiça do Pará e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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