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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Günter Frankenberg e o estudo do caso brasileiro envolvido na Exceção, por Fábio de Oliveira Ribeiro



  "O pavor de que a normalidade política poderia levar à uma distribuição de renda maior e mais justa, produzindo tanto a perda de status da classe média (refiro-me aqui especificamente aos juízes e procuradores) quanto a redução do controle exercido sobre o Estado pela elite econômica tradicional foi capaz de produzir severas deformações no sistema constitucional brasileiro. Foram elas que possibilitaram tanto o golpe de 2016 quanto a eleição fraudulenta de Jair Bolsonaro com disparos massivos de Fake News."


Frankenberg e o estudo do caso brasileiro, por Fábio de Oliveira Ribeiro
Do GGN:
Quando ganhou sua primeira eleição presidencial, Lula disse que a esperança venceu o medo. A derrota temporária da esperança nesse momento me parece evidente.
“O medo devora a razão. E quando isso acontece, apocalipse, medos e estado de exceção podem entrar em curto circuito.” (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 190).
O pavor de que a normalidade política poderia levar à uma distribuição de renda maior e mais justa, produzindo tanto a perda de status da classe média (refiro-me aqui especificamente aos juízes e procuradores) quanto a redução do controle exercido sobre o Estado pela elite econômica tradicional foi capaz de produzir severas deformações no sistema constitucional brasileiro. Foram elas que possibilitaram tanto o golpe de 2016 quanto a eleição fraudulenta de Jair Bolsonaro com disparos massivos de Fake News.
O instrumento utilizado para consolidar o Estado de Exceção foi um espetáculo de ilegalidades grotescas cometidos tanto pelo MPF quanto pela Justiça Federal, TRF-4, STJ e STF. Conduzido por um juiz parcial que se beneficiaria da eleição de Bolsonaro, o processo do Triplex que resultou na condenação e prisão injusta de Lula cumpriu seu objetivo político. Consumado o crime político-processual, a culpa ou não de Lula se tornou irrelevante. O processo do Triplex não para em pé, como disse Gilmar Mendes, mas ele já fez um cadáver: o art. 1º, da CF/88.
Uma observação didática precisará ser, entretanto, inscrita na lápide do Estado de Direito ou na certidão de nascimento do novo Estado de Exceção. O art. 1º, da CF/88 não foi sacrificado com um só golpe de tacape. Os juízes precisaram desferir vários golpes no sistema legal para atingir seu principal objetivo político. O primeiro e mais terrível foi a legitimação do grampo criminoso da presidência da república realizado a mando de Sérgio Moro. O áudio vazado, em que Lula disse que os "ministros do STF estão acoelhados", comprova que o medo já havia devorado a razão dos juízes no momento em que eles impediram Dilma Rousseff de nomear Lula Ministro para contornar a crise.
Os outros golpes de tacape desferidos no art. 1º, da CF/88 são bem conhecidos: a legitimação judiciária da fraude do Impeachment sem crime de responsabilidade; a condenação de Lula porque não recebeu nem a posse do imóvel que lhe foi atribuído pelo MPF em razão da convicção de que ele praticou atos inespecíficos para beneficiar uma construtora; a manutenção desta condenação absurda pelo TRF-4 e a prisão do ex-presidente antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória ao arrepio da CF/88; a rejeição de vários HCs impetrados contra a prisão e, é claro; o desprezo à decisão válida e eficaz proferida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU garantindo a Lula o direito de se candidatar e de fazer campanha eleitoral.  
A politização evidente do Direito Penal e a ação evidentemente parcial daqueles que deveriam aplica-lo de maneira isenta e rigorosa impediu o principal líder do PT de se candidatar. Foi assim que uma quadrilha ou bando de juízes conseguiu limitar a soberania popular e frustrar as esperanças democráticas nutridas pela esmagadora maioria dos brasileiros que pretendiam reconduzir Lula à presidência.
“Na teoria e na prática, Estado de Direito e estado de exceção contraem relações distintas. Estas são determinadas de forma decisiva pela perspectiva do pensamento, se ele se baseia na regra ou na exceção. Em cada uma dessas perspectivas estão inseridos medos específicos, em relação à onipotência estatal (perspectiva 1) ou no abuso dos poderes especiais (perspectiva 2) que, por seu lado marcam representações diferentes, centradas no Estado ou na Constituição. Os medos de uma situação emergencial que não pode ser solucionada pelo direito normal apontam o caminho para o direito de necessidade do Estado escrito ou não escrito. Os medos do abuso desse direito sugerem um agnosticismo jurídico-excepcional ou uma fixação e uma limitação constitucional dos poderes para situações excepcionais.” (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 191)
Assim que ganhou a eleição, Jair Bolsonaro anunciou que o protagonismo político do Judiciário havia chegado ao fim. Algumas semanas depois, Dias Toffoli disse que é hora dos juízes se retirarem da arena política. A esperança democrática produz esperança, tranquilidade e felicidade. O medo só consegue produzir medo, instabilidade e infelicidade.
Nesse ponto é inevitável perguntar qual será a técnica de Estado empregada pelo novo governo? A de Hobbes, a de Locke ou a de Foucault?
“Hobbes concebe a relação entre soberano e súditos constituída mediante contratos de favorecimento recíproco como uma relação geral de poder. O direito da soberania e o medo do ‘subterfúgio do direito que induz à insurreição (Hobbes, 1889, II parte, cap. 8) obstruem seu caminho para a construção de um Estado de direito, ao menos, razoavelmente substancial. Com seu acordo de investidura do soberano, os membros individuais de uma sociedade, como súditos, não conseguem obter senão a condição de membros da associação estatal e a proteção dessa associação. Em contrapartida, abrem mão tanto de uma parte de sua liberdade quanto de seu direito a tudo, inclusive o direito de resistir em nome da segurança, contanto que o Leviatã cumpra seu encargo de proteção. Sobre ‘violações do direito’ cometidas pelo soberano ou que a ele possam ser imputadas, eles não se podem queixar, já que lhe concederam amplos poderes. Pois: volenti non fit iniuria (ibdem, cap. 2(3) e cap. 5 (2); idem, 1984, cap. 21). À sombra do poder soberano sobre a vida e a morte, resta a eles a liberdade de fazer aquilo que o soberano não regulou e, se for preciso, de negar obediência. No âmbito daquilo que é regulado, as leis civis ligam inelutavelmente os ouvidos dos súditos aos lábios do soberano." (Hobbes, 1984, ca. 21). (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 29)
“Em Locke e depois dele, as variantes do paradigma liberal, na forma da lei geral, deslocam o direito para a posição de autoridade central. O rule of law e o Estado de Direito impõe barreiras da Constituição e das leis ao “lawful government” (Locke) ou ao “authoritative and limited government” como situação normal. Pela primeira vez, o paradigma liberal disseca o contraste entre um Estado legal de liberdade e um estado de exceção de arbitrariedade do poder soberano, deslocando assim para o segundo plano o poder do soberano ainda visível em Hobbes. Na continuidade da evolução do paradigma liberal, essa constituição da normatividade é expressa nas fórmulas da “força normalizante do normativo” ou da “força fática do contrafático” (Heller, 1963, p. 251 e ss, Habermas, 1985, p. 242)
Com essa construção de uma situação normal legal, o método legislativo de técnica de Estado assume a função primordial. A ele é dada a missão de realizar a transição do exercício pessoal do poder para o exercício impessoal do poder, ou seja, mediado pela lei. Ele dissolve os laços de fidelidade com os monarcas e tenta, senão eliminar, ao menos manter sob controle o fator subjetivo do poder político – a arbitrariedade autoritária; é justamente isso que significa a máxima reconhecidamente genial de um government of laws and not of men na tradição constitucional estadunidense.” (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 32/33)
“Foucault, em sua busca por todas expressões, e especialmente, pelas expressões sutis do ‘poder disciplinar’, distingue-se obrigatoriamente da elaboração pós-hobbesiana da teoria do direito e da teoria do Estado nas sociedades ocidentais, que desloca para a posição central, em um primeiro momento, o poder real, mais tarde, seu equivalente funcional – o Estado soberano – e, por fim, o Estado de Direito. Foucault, todavia, condena não apenas os monarcas absolutistas enquanto pessoas centrais e corpos vivos da soberania, como também a fixação liberal na legitimidade e, por conseguinte, a concentração teórica na justificação e na delimitação do poder. Segundo ele, essa concentração, ao ocupar-se do jurídico, suplanta a soberania fática e as suas consequências. Para expor a ‘realidade da soberania’ em seu aspecto secreto e brutal, bem como o direito que produz relações de soberania e que está a serviço delas não apenas de modo instrumental, como ferramenta, segundo o modelo Locke, Foucault assume o ângulo  de visão dos súditos, cuja vida é normatizada e submetida a regulações estatais segundo a lógica de um cálculo securitário.”(Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 37)
“As características do método Foucault como técnica de Estado estabelecida e praticada sobressaem-se pelo fato de o foco ser dirigido para as estratégias de controle indireto da conduta admitidas nas redes do poder de controle disciplinar dos regimes de governabilidade iliberal. Em vez de um contrato de garantia do território e das fronteiras nos moldes hobbesianos ou de um contrato social liberal, vê-se nas análises de Foucault (2005, p. 140), ao menos em seus estudos mais tardios, o contrato de segurança que autoriza o Estado a intervir:
‘Quando o andamento normal da vida cotidiana é interrompido por um evento extraordinário, singular, o direito deixa de ser suficiente. Daí a necessidade de intervenções que, a despeito de seu caráter extraordinário e extralegal, não se afiguram como arbitrariedade ou abuso de poder, mas como expressão da assistência [...] Essa assistência onipresente é a face que o Estado oferece aos seus cidadãos.” (Técnicas de Estado – Perspectivas sobre o Estado de Direito e o Estado de Exceção, Günter Frankenberg, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 37/38)
Sob a batuta de Bolsonaro o Estado de Direito não pode ser e não será reconstruído. Muito pelo contrário, tudo indica que ele vai expandir o Estado de Exceção. Tendo chegado ao poder através do assassinato do art. 1º, da CF/88, o novo tirano brasileiro não pode recorrer ao princípio democrático para consolidar e exercer o poder. É previsível um aumento exponencial da coação política/policial e da violência estatal criminosa. Há mais ou menos 20 anos Jair Bolsonaro prometeu matar 30 mil esquerdistas. Há pouco tempo o filho afirmou que o novo governo vai prender 100 adversários políticos.
Bolsonaro foi eleito por 1/3 dos eleitores. Ele não pode exigir submissão absoluta, vassalagem ostensiva e lealdade pessoal de 2/3 da população brasileira. Mesmo que queira se impor como um governante absoluto ele não poderá recorrer ao método Hobbes. Além disso, se desafiar os centros de poder político, econômico e midiático que não gravitam em torno dele o futuro tirano cairá facilmente.
O método Locke será inevitavelmente rejeitado por Jair Bolsonaro. Ele é autoritário demais para acreditar nos benefícios de um governo de leis e não de homens. O desprezo que ele devota ao Congresso Nacional ficou bem evidente quando ele nomeou um general para frear as demandas parlamentares e impor a vontade dele ao Parlamento. O respeito à vitaliciedade e à inamovibilidade dos juízes será a principal fonte de tensão entre ele e o Judiciário.
Hannah Arendt disse que a política só existe no espaço delicado voluntariamente criado por pessoas desiguais. Esse espaço pode ser expandido (método Locke), pode ser reduzido ou limitado (método Foucault) ou pode ser destruído (método Hobbes). O Judiciário recorreu ao método Foucault para enterrar o art. 1º, da CF/88. Bolsonaro provavelmente tentará fazer uso dele. Entretanto, ninguém sabe como o tirano irá reagir quando começar a sofrer pressões políticas internas e externas ao tentar massacrar índios, quilombolas e sem-terras para realizar sua utopia antiecológica-escravocrata em favor dos ruralistas. 
À medida que a resistência da sociedade ao autoritarismo dele aumentar o drama constitucional brasileiro se tornará mais e mais evidente (e um caso a ser estudado por constitucionalistas como Günter Frankenberg). Uma coisa é certa: ao contrário do que disse Dias Toffoli a judicialização da política não terminará com a posse de Jair Bolsonaro. O mais provável é que esse fenômeno se torne maior e menos palatável para os próprios juízes, pois a construção da tirania ou a reconquista da democracia somente se darão com um prejuízo político para eles.

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