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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Os inocentes de bem e a injustificabilidade do fascismo, por Eliseu Venturi, doutorando e mestre em Direitos Humanos e Democracia.


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“[...] o valor de verdade é inútil, tem sempre um duplo emprego; a verdade é o nome que nós damos às nossas opções, das quais não desistimos; se o fizéssemos, declararíamos decididamente que são falsas, tanto respeitamos a verdade; mesmo os nazistas a respeitavam, pois eles diziam que tinham razão: não diziam que estavam errados. Poderíamos ter respondido a eles que estavam enganados, mas para que serviria isso? Não estavam no mesmo comprimento de onda que nós, e, além disso, é platônico apontar como falsidade um tremor de terra”.  (VEYNE, Paul)

As tentativas de justificação do neofascismo e a “mea culpa” causal
Uma avalanche de elocuções de senso comum busca “explicar” o neofascismo, o que é compreensível pela velocidade do fenômeno, assim como, de modo mais deletério, tentam também “justificá-lo”.
Usam-se, propositadamente, os verbos entre aspas, primeiro, porque as “explicações” mencionadas não advém de estudos metodologicamente controlados, enquanto que as “justificativas”, ora foco deste texto, mostram-se simplesmente insustentáveis em todos os planos democráticos legítimos sobre os quais se possa abrir a questão.
Mescla de antirresistência com um confuso e generalizado sentimento de dever de “mea culpa”, termo viralizado para lamúrias que parecem deduzir algum dia ter havido governo perfeito, governo sem críticas ou possibilidade política irrepreensível no cooptado cadáver da “terrae brasilis”, tais justificativas apenas refletem uma insana busca de razões ao injustificável – no caso, o neofascismo.
Não há “mea culpa” porque não há apagamento, ou perdão, ou esquecimento, ou qualquer antecedente que se coligue à explicação ou justificação do subsequente que o seja “fascismo”. A questão não é se há sobre o que se autocriticar, ou mesmo sobre o que se pedir desculpas: isto, obviamente, há de sobre, por diversos agentes. O que não há é o nexo de causalidade mesmo para os efeitos que se pretende obter com tal enunciação. Fascismo não é política, é infrapolítico. Mal é discurso, é ajuntamento de palavras e ajuntamento de pessoas.
Injustificável, indesculpável, impassível de isenção de responsabilidade, inrreabilitável: impassível de inocência. Fascismo ou neofascismo não admitem tolerância, não admitem condescendência, não admitem desculpas, não se justificam nem eticamente, nem moralmente, nem juridicamente e, tampouco e muito menos, contingencialmente, como se tem pretendido, a quatro ventos, fundamentar. Nunca. De modo algum. E, sobretudo: por causalidade alguma.
Trata-se, então, de imprimir os mesmos efeitos do fascismo violento a esta oposição? De modo algum. A reduzir estes elementos a uma política de ódio? Também não. De compreender a intolerância democrática do mesmo modo que procede a intolerância fascista? Novamente, não. A cultura democrática possui seus pontos de intolerância no sentido de que estas práticas fascistas justamente não se albergam na legitimidade, posto que contrárias às bases da existência democrática, de modo que o efeito é sígnico: paira sobre esta intolerância a marca do ilegítimo, que antecede o ilegal, o inconstitucional e o inconvencional. É um anterior ético do jurídico. É ainda mais grave. E um grave que não se traduz em punição, como sugeriria uma visão infantilizada do Direito punitivista. Espera-se muito mais maturidade do cidadão. E este é o problema.
Uma disputa que parecia “esquerda-direita” com alguma formação “centro” facilmente diluída se agigantou em uma disputa democracia e fascismo, fazendo ficar evidente as justificações morais que as pessoas podem apreender para suas decisões. E, neste movimento, muita gente se viu assustada com a possibilidade de escolhas de algumas outras pessoas por quem tinham afetos e admiração. Sim, há muitas relações de identidade, identificação e valoração positiva do grotesco, e isto revela dimensões corroídas do caráter que podem ser muito dolorosas de evidenciar.
O grande problema dos tempos atuais não é o estereotipado “tempos sombrios”. São tempos de extrema clareza, e a violência, o desgosto e o desespero advém justamente desta clareza toda evidenciada nas falas, nas adesões, nas alianças e, mesmo por debaixo dos rostos que encarnam a bondade, todo o sadismo da exclusão de direitos alheios. A luz cortante e seca e mostra o perfil, a silhueta, as opções, as valorações: a justificativa de decisão e a evidência de um desconfortável juízo de valor. É isto que as pessoas precisam administrar, agora, por todos os lados. "As clear as an azure sky of deepest summer. You can rely on me, Fred", como diria o ultraviolento Alex DeLarge, de “Laranja Mecânica”.
Alegar que o neofascismo se explica ou justifica pelos erros do governo anterior ou suas identidades ideológicas equivale a uma falha formal de raciocínio. Algo como, hipoteticamente, se justificar a tortura ou a pena de morte a um criminoso confesso, como se o crime justificasse uma pena cruel, desumana ou degradante – aliás, como se no plano institucional quaisquer políticas pudessem se dar legitimamente neste sentido. O problema deste raciocínio que pretende extrair normatividade de pretensos fatos é que se trata de olhar para o lugar errado com a intenção errada, seja pela falta de causalidade, seja pela desconexão com escolhas políticas e compromissos institucionais anteriores.
Assim, o primeiro ponto claro é que não há justificativa ou razão que se pretenda dar ao neofascismo que possa ser admissível diante do nefasto legado histórico (mundial ou nacional), por um lado, nem que encontre, no Direito, qualquer forma de legitimação. Estas razões são epistemológicas e políticas.
Suspendamos, por um instante, o envolvimento de partidos no debate, centrando-se, então, no teor material das pretensas argumentações fascistas em curso – posto que as alegações deste campo sequer poderiam se considerar “discurso” ou “argumentação”, seja por sua irracionalidade, seja pela rechaçabilidade de seu conteúdo material. O que estas pessoas estão falando e o que tem falado é o foco, não quem elas são, ou de onde (contexto, vinculação) elas falam. E o que as pessoas que aderem a este discurso têm a responder – e não o fazem, em razão de impossibilidade lógica e ética.

Um campo semântico, uma ordem de desvalores, um corpo de sentidos para repulsa ou adesão
Chamemos de fascismo, neofascismo, antidemocracia, ou discurso ou política do ódio. Ou, ainda, aquele modo específico de compreender a política com desprezo aos direitos humanos, às políticas de reconhecimento e de diferença, com apego ao autoritarismo, ao militarismo, ao racismo, à ditatura (seja estatal, seja do mercado), ao Estado teológico. Aquele gosto pela discriminação negativa, aquele prazer sádico da tortura em privar o outro da vida e reduzir-lhe à insignificância.
Chamemos aquela força que sacrifica sem pudor as minorias (tanto física quanto simbólica e juridicamente), que se regozija na intensificação das vulnerabilidades, que inverte polos de agressor e vítima, que se endeusa no posto da moralidade-moralismo mequetrefe, por mais contraditórios que sejam valores e práticas nas vidas privadas dos defensores, e que condena o mundo e a diversidade a partir de si; que tem pânico moral da multiplicidade e, ainda mais, da singularidade.
Chamemos aquele híbrido de nacionalismo de ajuntamento com um populismo de seletivismos classistas pontuais, com triunfo do discurso ideológico quando o sujeito milionário assume, então, a feição de povo em busto de gesso, um povo bem seleto e determinado, diga-se.
Chamemos aquele híbrido emulsificado por mentes inscientes e robôs, por “nós” de redes que proliferam absurdos apenas assimiláveis por subjetividades completamente desorganizadas e desestruturadas, em um nacionalismo também de aparência, calcado em símbolos nacionais esclerosados e que ignora a existência de uns tantos brasis nas regiões, nas diversas línguas portuguesas que se fala, estes brasis dentro dos brasis em caleidoscópios de cores que a noção antiquíssima de “nação” simplesmente faz evanescer, junto com a Constituição esmorecente.
Chamemos de fascismo este fascismo mesmo, sem grandeza, apenas delineado em tepor, mesclado com entreguismo neoliberal e precarização do trabalho, juntando decrépita economia renovada a outras medidas homofóbicas, misóginas, anti-ambientais, e que evidenciam o desprezo pelos direitos e pela cultura da sustentabilidade integral (ser humano, economia, meio ambiente, animais, direitos, sociedade), seu ataque e sua destruição.
Chamemos de fascismo aquela anti-alteridade na contramão das constatações da cultura no novo mundo inaugurado após 1945: as origens do presente, segundo Hans Ulrich Gumbrecth, e cuja cultura dos direitos humanos mais uma vez é arruinada e destruída naquilo que já tivera de novo e florescente diante dos horrores da Segunda Guerra Mundial.

Inocência
Nem todo eleitor (sua vó, seu pai, seu “crush”, seu professor de Direito) do candidato que sustenta diversas alegações de cunho fascista pode ser tomado por fascista. Parece uma consideração correta, até certo ponto. E é bem corrente, em nome de uma onda de apaziguação social que, como sempre, acoberta as latências e aquece ainda mais os ânimos. Ao mesmo tempo em que uma tendência de equalização e igualmento dos distintos: “ah, são dois extremistas em disputa”. Ledos enganos, iníquas comparações.
Aliás, uma acusação político-jurídica tão grave, “você é fascista”, poderia facilmente assumir ares de leviandade. O mesmo se for outra expressão similar, “neofascismo”, ou, ainda, nazista ou termos afins.
Os tempos são outros, e pura e simplesmente remeter-se à história é anacrônico, assim como apelar às identidades íntegras seria ilusório. Não existem identidades totalizadas, embora várias revelem tendências e intensidades a se considerar. As tecnologias do ego mudaram também.
Estaríamos diante da possibilidade de nominar, portanto, apenas grupos como os “skinheads” ou outras comunidades de extrema-direita organizada, por exemplo, em grupos de aplicativos (no que teríamos problemas graves atualmente).
Fato apenas é que a natureza dos discursos e das práticas da parcela dos eleitores inocentes, as pessoas de bem preocupadas com o futuro do país regido por Deus Supraconstitucional, ou nem isso, permite tal qualificação negativa, em diferentes intensidades. É a estrutura da valoração que revela a intimidade do caráter, e não são estandartes verde e amarelo que podem mascarar isto.
E este já parece ser um problema suficiente: há intensidades, há modulações de adesão à prática destes preceitos políticos. Mas são adesões, adesões que no final das contas culminam na maior escolha eleitoral possível: a eleição mesma. Parece relevante?
Em um exemplo exagerado: não precisa o sujeito construir um campo de concentração para ser considerado fascista, ou usar uniformes históricos e sair mundo afora, mas se o fizer, provavelmente será. Obviamente estas atitudes tornam o sujeito fascista, em uma acumulação de práticas e adesão a símbolos e a discursos; é uma construção progressiva cuja teleologia está posta na partida. Mas não é uma relação de necessidade, é apenas a construção de uma identidade forte e cercada.
Mas, então, e aquelas pessoas de bem, cuja afinidades discursivas são preocupantes e contraditórias com outros sistemas que dizem adotar (religiões, no geral, ou campos científicos, como o Direito), por um lado, e, por outro, democraticamente mais efetivo, são intoleráveis; estas não seriam fascistas, em um estado de inocência cívica, ou apenas seriam mais um ponto do espectro da diversidade político-moral?
A segunda questão tem resposta clara: não são mais um ponto do espectro da diversidade. São um antiponto do espectro, uma negação da democracia. Ao menos daquela democracia calcada em direitos. Direitos de minorias, direitos de criminosos, direitos de todos, aliás. As pessoas de bem se julgam insuscetíveis ao crime, dada sua megalomania moral insuflada. Se julgam insuscetíveis às minorias, embora várias pertençam ou virão a pertencer a esta categoria: ou estariam rejuvenescendo? Ou são todos homens?
Outro ponto é se as pessoas estariam, então, motivadas pela repulsa a um partido, sentimento este legítimo a despeito das razões e da percepção formada para tanto. Embora tivesse mais de dezena de opções no primeiro turno, fizeram sua escolha, provavelmente pelo cálculo do voto útil-voto perdido em candidato sem projeção. Seja qual for a causalidade, escolheram o discurso mais fascista visto na história contemporânea do Brasil.
Alternativamente, as pessoas estão desejosas de mudança; outra postura legítima, embora arriscada, pois a promessa de mudanças “para melhor”, além de imprecisa, é repleta de potenciais de retrocesso e, no mais, pode mostrar a perda de situações positivas que antes sequer se percebia. Seja qual for o desejo, escolheram o discurso mais fascista visto na história contemporânea do Brasil.
E como lidar com a responsabilidade moral e cívica de, adotem-se quais forem as justificativas fracas que se adotem, aderir ao discurso, este sim, de claro matiz neofascista? Não se fala de pessoas, “este ou aquele é um fascista”, mas sim de ideias e, a partir destas, a corroboração de práticas, políticas e, sob uma visão formalista, “valores”. Propriamente, anti-valores que determinam justificações falhas de decisões estapafúrdias, em um encadeamento retrocedente de problemas morais.
Bem, sua avó, seu pai ou seu professor de Direito não são fascistas, mas as opiniões deles são o que, então? Humanistas? Afins a uma ética do cuidado? Revolucionárias? Parece difícil encontrar em tais opiniões qualidades políticas afins aos valores e objetivos históricos postos no contra-horror dos direitos humanos pós-Segunda Guerra.
Quando o sujeito toma uma decisão, esta é antecedida por julgamentos morais. Julgamentos morais que, em uma democracia, devem ser não apenas justificáveis como moralmente relevantes.
A escolha destes eleitores de bem, assim, se revela carcomida nos julgamentos morais, o que vai ainda pior, pois cedem a cultura democrática diante de questões como corrupção, desejo de mudança, repulsa por um partido.
Tomam partes pelo todo e elidem a democracia. Abusam do direito do voto pelo voto irrefletido, irresponsável, leviano e irracional. Admitem o ódio a grupos sociais em nome da economia. Admitem a violência em nome da propriedade. Admitem a ruptura com o direito e com a ordem democrática em nome de “standards” que sequer têm sido atacados nas últimas décadas (a família, a probidade, a liberdade, tudo isso enquanto valor político e jurídico não apenas é defendido como potencializado e fomentado formalmente na última década). É preciso que a crítica seja acompanhada de honestidade intelectual e justiça histórica.  
Esta série de admissões de elementos e contravalores neofascistas não encontra argumentação, nem justificação racional plausível. Há muito tempo esta inviabilidade destas práticas no campo de uma ética comunicacional do discurso é uma questão bem elaborada na Filosofia do Direito, na Filosofia Política, no Direito Constitucional e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, e em experiências internacionais que precisam enfrentar as ondas neofascistas.
Esta impossibilidade intelectual, contudo, é o que aproxima o discurso do fascistóide e celebrado Professor Doutor em Direito ao discurso do telejornalista policial punitivista, o que une o policial civil ao Magistrado, ou o que une sua inocente avó a algum Ministro do Supremo Tribunal. Pode ser também o que una seu pai e sua mãe a qualquer outra pessoa que investiu um dinheiro em produtos da CBF em torno de outras pessoas no ajuntamento neofascista.
São estas amarras compreensivas e valorativas que fazem com que todo esse grupo de notáveis, ao final de um projeto político escrito em tópicos de PowerPoint, aponham sua assinatura no projeto do ódio às diferenças e da devastação neoliberal. Podem não ser neofascistas com registro em carteira e, afinal, acusar alguém tão peremptoriamente realmente é algo difícil. Mas aderem, corroboram, votam. Em termos práticos, é difícil concluir que sejam outras coisas. Inocentes.
Contudo, há uma série de valorações envolvidas que permitem algum grau de questionamento e de constrangimento. Qual a responsabilidade moral dos inocentes, incapazes de argumentar e cindidos nos mesmos mantras?
O ônus argumentativo do fascista, assim, só pode se assentar no negacionismo, por um lado, e no showcase de falácias por outro. Não há, portanto, argumentação ou justificação moral racional das escolhas. Daí os ataques pessoais serem indispensáveis, assim como as generalizações e a linguagem bronca.
Aquela parcela da população que, ao olhar em si o fascismo alinhado na imagem no espelho trincado, encontra conforto para sua irracionalidade e para a maldade que precisou defrontar saindo da própria boca. O álibi moral universal da corrupção, que exonerou os brasileiros de qualquer responsabilidade eternamente, afinal o crime se concentrou em um ponto do universo (com partido e endereço), somou-se à justificação universal das motivações do eleito.
Água perfeita para lavar as mãos.
Pólvora suficiente para a explosão programada.
Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.
¹ Disponível em: < https://www.wikiart.org/en/joan-miro/the-bull-fight>. Acesso em: 21 out. 2018.
² VEYNE, Paul. Acreditaram os gregos nos seus mitos? Lisboa: Edições 70, 1983. p. 145.

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