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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

As pegadas da ultradireita na negociata das vacinas

 


Novos depoimentos à CPI da Covid envolvem Flávio Bolsonaro, o reverendo Amilton, coronéis do ministério da Saúde e instituto ligado ao “gabinete do ódio”. Negacionismo e corrupção andaram de mãos dadas no governo do “capitão”

OFF LABEL MAIS FÁCIL

A Câmara aprovou ontem à noite o texto-base de um projeto de lei que permite ao SUS receitar e aplicar remédios com indicação de uso diferente das aprovadas pela Anvisa – o famoso uso off label. Segundo o documento, o uso precisa apenas ter sido recomendado pela Conitec (a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), e deve haver evidências científicas sobre eficácia, efetividade e segurança da administração da droga no novo contexto. Apesar da aprovação por 277 votos a 177, houve bastante polêmica e a votação dos destaques (mudanças no texto) foi adiada para agosto, após o recesso parlamentar.

O maior problema apontado pelos deputados contrários é o esvaziamento da Anvisa em detrimento da Conitec. São 13 os membros dessa Comissão responsáveis pelas decisões; sete deles são representantes de secretarias do Ministério da Saúde, e os demais são de outros órgãos e entidades, como o Conselho Federal de Medicina, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o Conselho Nacional de Saúde e a própria Anvisa. As deliberações devem ser aprovadas preferencialmente por consenso, mas, quando ele não existe, podem acontecer por maioria simples.

Por isso – e considerando que a a discussão ocorre em um governo que pressiona deliberadamente pelo uso de drogas off label na pandemia –, há o receio da inclusão de drogas no SUS por razões políticas.

“Está tirando essa competência de uma agência técnica para julgar competências científicas, de produtos técnicos, e passa isso para uma comissão cujo governo de plantão tem a maioria isolada dessa comissão. Não podemos votar a toque de caixa um projeto que entrega para o governo de plantão a decisão sobre evidências científicas”, alertou o deputado e ex-minitro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP). Talíria Petrone (PSOL-RJ) foi na mesma linha: “Pode abrir a possibilidade para que o governo de ocasião, a partir de uma maioria que tem agora, mude a composição da Conitec e decida qual medicamento é eficaz ou não. Isso é perigoso“.

MUITOS CORONEIS

O representante oficial no Brasil da Davati Medical Supply, Cristiano Carvalho, depôs ontem à CPI, complicando ainda mais a já emaranhada trama que coloca sob suspeita a compra de vacinas. Segundo ele, a empresa não procurou o Ministério da Saúde: foi procurada. “Quando puder me retorne, sou Roberto Ferreira Dias do Ministério da Saúde”. Essa mensagem, de 3 de fevereiro, teria sido o primeiro contato da história entre a pasta e a Davati, que não mantinha negócios com o ministério

Ainda de acordo com essa versão dos fatos, também não foi a Davati que foi atrás do PM Luiz Paulo Dominghetti, mas o policial que se apresentou, em fevereiro, dizendo ter uma “parceria” com a ONG Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula. O reverendo, por sua vez, teria recebido aval do governo federal para tratar da compra de vacinas. Em entrevista ao Estadão semanas atrás, o CEO da Davati Herman Cárdenas também foi nessa linha e disse que Dominghetti virou representante da empresa “a pedido” do Ministério da Saúde. A intermediação de Dominghetti e do reverendo Amilton entre Davati e ministério foi classificada pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), como “absolutamente nova”.

Enquanto isso, segundo Cristiano Carvalho, Dias continuava lhe mandando mensagens. Essa insistência deu base às promessas de Dominghetti e o representante da Davati passou a ver a história como uma oportunidade.

Carvalho declarou que nessas conversas Dias nunca mencionou propina. Mas que a situação foi relatada por Dominghetti, que usou o eufemismo “comissionamento extra” de US$ 1 por dose. De acordo com o representante da Davati, a proposta partiu do “grupo do Blanco”, em referência a pessoas ligadas ao coronel Marcelo Blanco, que até janeiro tinha sido subordinado a Dias no Ministério da Saúde, mas em fevereiro já tinha saído da pasta e aberto empresa de representação de insumos hospitalares. O coronel tinha uma posição “dúbia”, definiu Carvalho, porque, “parecia atuar como se ainda estivesse” no ministério.

Ele disse ainda que, na primeira vez que foi ao ministério, em 12 de fevereiro, participaram da reunião o reverendo Amilton, Dominghetti e nada menos do que quatro coronéis: Elcio Franco (então secretário executivo da pasta), Marcelo Pires (acusado pelos irmãos Miranda de fazer pressão no escândalo original, da Covaxin), Cleverson Boechat Tinoco Ponciano (coordenador-geral de Planejamento do ministério que também aparece no caso Covaxin) e Helcio Bruno presidente do Instituto Força Brasil. “São muitos coronéis e elcios“, brincou Carvalho.

O Instituto Força Brasil é uma entidade bolsonarista que tem como vice-presidente o empresário Otávio Fakhoury, e já esteve nos holofotes no inquérito das fake news que investiga o gabinete do ódio. De acordo com o depoimento de ontem, seria também o braço utilizado pela Senah para chegar ao alto escalão da Saúde. 

Segundo o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o Força Brasil patrocina um conjunto de contas em redes sociais como a página Crítica Nacional, que propagou notícias falsas sobre o uso de máscaras e a vacina da Pfizer.

Em nota, o Força Brasil afirmou que seu principal interesse na reunião do dia 12 de fevereiro era fazer lobby pela vacinação privada

E MUITOS INTERMEDIÁRIOS

A Davati não tinha à mão nenhuma das 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca cuja venda seus representantes negociaram com o governo brasileiro em fevereiro e março deste ano. A afirmação é do CEO da empresa, Herman Cardenas, em entrevista à Folha.

De acordo com ele, havia “uma promessa de alocação das vacinas” feita por outra empresa cuja identidade ele não revela por suposto “sigilo contratual”. Essa empresa, sim, teria contato com a AstraZeneca. A Davati, diz, seria uma “facilitadora do negócio” entre a tal empresa e o governo federal, mediante uma comissão que Cardenas não revela de quanto seria. 

Segundo o empresário, Cristiano Carvalho seria apenas um vendedor autônomo que representou a empresa apenas nesta tentativa de negociação — e que criou site e e-mail da Davati no Brasil sem o seu conhecimento. Ele teria sido indicado por outro coronel, Glaucio Octaviano Guerra. 

Uma reportagem da Agência Pública puxou a ficha de Guerra, que é irmão de policiais com histórico de acusações de corrupção e ligações com a família Bolsonaro. Um desses irmãos, Glauco, chegou a ser preso no ano passado na Operação Mercadores do Caos, suspeito de integrar esquema de desvio de verbas na aquisição de ventiladores pulmonares pelo governo do Rio. Esse mesmo Glauco ajudou a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na tentativa de anular provas no caso da rachadinha. Ele, que era auditor aposentado da Receita, disse que teve seus dados acessados ilegalmente pela Receita. Esses dados, porém, foram acessados em uma investigação de enriquecimento ilícito.  Glauco foi demitido por improbidade administrativa, e teve a aposentadoria cassada.

E como só tem gente boa nessa história, durante seu depoimento ontem, Cristiano Carvalho admitiu que pediu indevidamente auxílio emergencial de R$ 600 no ano passado – não sem antes negar que tinha sido ele a solicitar o benefício.

ORÇAMENTO SECRETO E ELEIÇÕES

O Congresso aprovou ontem o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2022. Duas polêmicas cercaram a votação. 

Depois de muita discussão, os parlamentares resolveram triplicar os recursos destinados ao fundo eleitoral, que vai disponibilizar R$ 5,7 bilhões para as campanhas no pleito do ano que vem. Segundo o Valor, esse adicional veio de recursos que estavam destinados a emendas de bancadas regionais, e seriam destinados para saúde, educação e infraestrutura.

A maioria também aprovou a continuidade do orçamento secreto, ou seja, as emendas que chegam ao Executivo assinadas pelo relator-geral do Orçamento (RP9) e servem para contemplar negociações entre o governo federal e a base aliada. 

PRODUZIDA NA CHINA

A China pretende usar a vacina da BioNTech como reforço para quem recebeu imunizantes de vírus inativado (como a CoronaVac), segundo fontes ouvidas pelo Caixin, site que cobre negócios e mercado financeiro no país. 

O produto em questão é a Comirnaty, a mesma vacina produzida pela Pfizer, mas a história não tem nada a ver com essa multinacional. Ainda em março do ano passado, a chinesa Fosun Pharma fez um acordo direto com a BioNTech, investindo US$ 135 milhões para o desenvolvimento da vacina e sua comercialização em solo chinês. Logo em seguida chegou a Pfizer, que comprou os direitos de distribuição da vacina no resto do mundo – mas não na China e na Alemanha.

A matéria do Caixin diz que, enquanto aguardavam autorização regulatória, as empresas iniciaram os preparativos e a instalação da linha de produção em Xangai, que deve ficar pronta em agosto. Segundo o presidente da Fosun, Wu Yifang, até o fim do ano será atingida a capacidade de produção anual de um bilhão de doses.

Ainda não há dados disponíveis sobre a mistura entre Comirnaty e CoronaVac, mas, também de acordo com o texto, a Universidade de Hong Kong está pesquisando isso.

MAIS UMA DOSE

E pesquisadores chilenos que estão testando a CoronaVac na população do país recomendaram ontem a aplicação de uma terceira dose do mesmo imunizante, porque o nível de anticorpos ficou baixo seis meses após a segunda aplicação.

No entanto, a epidemiologista Denise Garret, do Sabin Vaccine Institute, observa que a redução nos anticorpos neutralizantes é esperada, então é preciso ter os dados do estudo para entender o que exatamente os autores acharam preocupante. O trabalho ainda não foi publicado.

Enquanto isso, a Sinovac está começando um ensaio clínico para avaliar os efeitos de um reforço do seu imunizante três meses e cinco meses após a segunda dose.

CHANCES REDUZIDAS

Crianças têm menos risco de morrer por covid-19, mas no Brasil esse risco acabou aumentado por falta de atendimento. Dados do Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19 indicam que até o último dia 11 tinha havido 10.165 casos graves em bebês de até dois anos, com 846 mortes. Só que, de todos os bebês que foram a óbito, 32,5% não tiveram acesso a UTI e 38% não passaram por intubação. Há grandes diferenças entre os estados; em São Paulo, 20% não foram para a UTI; no Maranhão, 56%.

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