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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Na era Biden, por causa de Bolsonaro e Salles o Brasil pode virar marginal climático. Texto de Solange Reis

 

Na nova fase da política externa para meio ambiente e clima, Biden promete não só fazer o dever de casa, como apontar o dedo para os países que negligenciarem o combate à mudança climática


Ilustração: Aïda Amer/Axios. Foto: Win McNamee/Getty Images
do Observatório Político dos Estados Unidos – OPEU
Por Solange Reis*

Donald Trump levou quase quatro anos para realizar o que Joe Biden precisará de poucas semanas para desfazer. Depois de assumir a presidência, em 20 de janeiro, o democrata necessitará de somente 77 dias para tornar os Estados Unidos novamente signatários do Acordo de Paris. E Biden já anunciou que não pretende esperar nem um minuto além.

A readesão tem objetivos práticos e simbólicos para sua agenda. Será o primeiro passo para avançar uma política que o presidente eleito garante ser a mais progressista da história do país, além de uma espécie de abre-alas para seu plano de energia e clima. A ideia ampliada é plantar bases sólidas para a transição futura para uma economia baseada em energia limpa. Outro objetivo é recuperar a imagem internacional dos Estados Unidos, que foi muito prejudicada pelo conjunto de medidas anticlimáticas do atual presidente Donald Trump.

Na nova fase da política externa para meio ambiente e clima, Biden promete não só fazer o dever de casa, como apontar o dedo para os países que negligenciarem o combate à mudança climática. Dadas as atitudes do atual governo brasileiro, é provável que o Brasil venha a seja o primeiro a ser exposto.

Biden, o ambientalista?

Atrás apenas da China, os Estados Unidos são responsáveis por 15% das emissões globais. Juntos, os dois países correspondem a 45% do total mundial. A importância americana também deriva de sua capacidade de influência sobre outros países e de financiamento de projetos ambientais. Por tudo isso, a readesão ao Acordo de Paris significará um reforço de peso no combate à mudança climática.

Sobretudo quando Biden promete destinar Us$ 2 trilhões para um plano de infraestrutura e de energia limpa, com o intuito de zerar as emissões até 2050. O projeto é inspirado no Green New Deal (Novo Acordo Verde), uma proposta de lei democrata e bicameral de autoria do senador Ed Markey (D-MA) e da representante Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY), também conhecida como AOC.

Uma das etapas planejadas por Biden, que se autointitula “pioneiro da mudança climática”, implica tornar o setor de geração de energia livre de emissão de carbono até 2035. Outras medidas incluem o estímulo ao uso de carros elétricos e a regulamentação de novos padrões de eficiência energética para residências e comércios. No final da campanha presidencial, o democrata chegou a dizer que faria a transição para além do setor de petróleo. A fala repercutiu mal nos estados produtores, obrigando o então candidato a retificar que não acabaria com a indústria de energia fóssil, mas com os subsídios e incentivos destinados ao setor.

Segundo o programa do presidente, serão assinadas ordens executivas a partir do primeiro dia de governo para acelerar essa transição. Outra certeza é quanto a retomar o papel da Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês), que atuou mais como detratora desde que Trump assumiu a Casa Branca. Um dos nomes mais fortes para assumir o Departamento de Energia é o físico nuclear Ernest Muniz. Sua participação no conselho de diretores da Southern Company, segunda maior termoelétrica do país (em número de consumidores), gera ceticismo entre os ambientalistas e as alas progressistas do Partido Democrata. Muniz não deverá ter, porém, dificuldade de ser confirmado por um eventual Senado majoritariamente republicano.

Caso seja bem-sucedido no pacote proposto de energia e clima, de fato, Biden terá implantado a agenda ambiental mais avançada de um presidente americano. O caminho não será nada fácil, sendo esperada a resistência por parte dos democratas mais conservadores e ligados aos lobbies de energia tradicional. Quanto aos republicanos, mesmo os moderados como Mitt Romney, já disseram que não permitirão a aprovação do Green New Deal.

Pegadas de Trump

Trump sempre defendeu sair do acordo climático. Durante quase todo seu mandato, a intenção esbarrava nas complexas regras do Acordo de Paris, que permitem a renúncia de um signatário somente três anos após a adesão. Essa é uma salvaguarda planejada pela equipe negociadora de Barack Obama para evitar que um governo sucessor desfizesse facilmente o compromisso.

Como o acordo entrou em vigor em 2016, Trump teve de esperar até 2019 para comunicar a saída. Além disso, havia uma carência de mais 12 meses posterior à notificação. O prazo total foi cumprido somente no último dia 5 de novembro, quando o republicano finalmente pôde formalizar a retirada.

Ainda que seja por uma margem ínfima, o Partido Republicano tem boas chances de liderar o Senado no governo Biden. Mesmo que ganhem a maioria da Casa — se resolvidas as disputas excepcionais que deverão durar até janeiro — os republicanos não conseguirão impedir o retorno ao Acordo de Paris, que depende somente do Poder Executivo. Mas os senadores republicanos, se preservada a maioria, terão competência para barrar algumas propostas democratas. É o caso da taxação de emissões de carbono, tal como o fizeram no caso da lei Waxman-Markey, em 2010. A resistência do partido à transição para uma economia de energia limpa é antiga, tendo sido bem ruidosa no governo Obama, que tentou implementar algumas políticas ambientais mais transformadoras.

Com a vitória de Trump, em 2016, houve um grande retrocesso para o clima e o meio ambiente. Usando de retórica negacionista e muitas medidas provisórias, Trump desmontou várias políticas de seu antecessor e outras até mais antigas. Abusando de desregulamentações, enfraquecimento da Agência de Proteção Ambiental e incentivo ao setor de energia tradicional, o republicano prometeu alcançar o “domínio americano da energia”. Uma estratégia que cabe perfeitamente sob o lema “Make America Dirty Again”.

‘Rebranding’

Nos últimos quatro anos, os Estados Unidos não apenas andaram para trás na questão climática, como prejudicaram sua imagem de liderança externa. Isso não significa que o país tivesse uma agenda anterior totalmente alinhada com os defensores do clima. Mesmo a equipe de Obama impôs muitas dificuldades nas discussões multilaterais, exigindo dividir as responsabilidades e os custos com as potências emergentes. Mesmo assim, Obama assinou o Acordo de Paris e conseguiu burlar o veto do Senado ao considerar o compromisso como um acordo, e não como um tratado.

Apesar de estar preocupado com o aquecimento global, os Estados Unidos de Biden têm um objetivo estratégico para readerir ao Acordo de Paris. Trata-se de tentar alcançar a liderança da União Europeia e, agora também, da China. Em setembro, o governo chinês lançou um plano ousado para zerar as emissões até 2060. E a UE espera chegar nesse ponto dez anos antes da China. O que está em jogo, portanto, não é só a temperatura na Terra, mas o poder americano em uma área determinante para a atual fase de transição capitalista.

Incêndios perto de Bumbalong, sul da capital australiana, Camberra, 1o fev. 2020 (Crédito: Rick Rycroft/AP)
Brasil e Austrália: marginais climáticos

Outra coisa que Biden garante fazer é “identificar e expor os marginais climáticos”. Em seu programa de governo, o democrata propõe criar um Relatório Global de Mudança Climática, classificando o desempenho de cada país individualmente. Essa é uma péssima notícia para alguns aliados, como a Austrália, e para países que já entram com o pé esquerdo na relação com o novo governo, como é o caso do Brasil.

Embora seja signatária do Acordo de Paris, e a despeito da trágica queimada que a assolou no último verão, a Austrália não definiu prazos para zerar as emissões. Segundo o primeiro-ministro Scott Morrison, o país fará apenas o que for de interesse nacional. Dessa forma, o liberal entra na contramão da história e relega a Austrália à vexatória posição de único país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a não traçar metas de nulificação das emissões.

O Brasil já foi considerado um país promissor no combate ao aquecimento global. Em 1992, hospedou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, popularmente conhecida como Eco-92. A partir daquele momento, cresceram os esforços multilaterais no mundo para reverter a mudança climática. Entre 2005 e 2012, o país projetou sua imagem como potência climática benigna, ao fazer uma campanha para reduzir o desmatamento em até 80%. Naquele período, manteve um posicionamento proativo nas negociações internacionais para o clima, sabendo equilibrar a necessidade de agir com a de distribuir responsabilidades entre as economias centrais e as demais. Atuando nas duas pontas, o Brasil ganhou respeito nos fóruns internacionais.

Essa imagem começou a ser afetada negativamente já no governo Temer, mas foi com Jair Bolsonaro que o Brasil passou de protetor do clima a vilão. Com as políticas anticlimáticas do ministro Ricardo Salles, é muito possível que o Brasil encabece a lista de marginais climáticos na era Biden. No primeiro debate com Trump, Biden criticou o Brasil pelo desmatamento na Amazônia.

No Acordo de Paris, em 2015, o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento ilegal até 2030. Mas o que se obteve desde a eleição de Jair Bolsonaro foi exatamente o contrário. Entre agosto de 2018 e julho de 2019, a Amazônia sofreu o maior desmatamento desde 2008, ou 34,4% a mais do que no mesmo período do biênio 2017-2018.

Saliva e pólvora

As mais recentes atitudes de Bolsonaro tampouco ajudarão a melhorar a imagem brasileira no que diz respeito ao clima e às relações diplomáticas com os Estados Unidos. No dia 10, sem se referir diretamente a Biden, o presidente brasileiro mandou um recado repleto de analogias, entrelinhas e subterfúgios.

“Assistimos há pouco um grande candidato a chefe de Estado dizer que se eu não apagar o fogo na Amazônia, levanta barreiras comerciais contra o Brasil. Como é que nós podemos fazer frente a tudo isso? Apenas na diplomacia não dá. Porque quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas tem que saber que tem. Esse é o mundo”, disse Bolsonaro.

Com Trump derrotado, e sem outros aliados ideológicos em Washington, Bolsonaro dialoga muito mais com seu eleitorado radical e apoiador de Trump do que com o governo eleito. A torcida dos brasileiros que repudiam o governo Bolsonaro é para que Biden encare a ameaça do ex-capitão da mesma maneira como reagiu à fala do atual secretário de Estado americano, Mike Pompeo.  Ao mencionar as acusações de fraude eleitoral feitas por Pompeo, Biden resumiu sua opinião em uma boa gargalhada.

Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

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