Da Carta Capital:
E o espiritismo se faz povo
Caberá ao novo movimento espírita entender seu papel de ferramenta, de mero auxiliar que facilita a conquista da consciência social
A partir do claro entendimento do objetivo transformador das propostas espíritas, não no sentido individual, mas coletivo, porque, como já dito, não é possível transformar-se sem a transformação de toda a sociedade, o que se propõe é a mudança da atuação do movimento espírita no sentido de se tornar instrumento na busca das mudanças da sociedade desigual e injusta em que se vive.
E isso é radical e revolucionário, pois não se parte da proposta de evangelização, no sentido clássico, apartada do contexto vivido por todos, que pretende apenas formar prosélitos de classe média e experienciar a prática da caridade como simples doação aos pobres, como se esses fizessem parte duma outra realidade, dum outro mundo.
Os ensinos de Jesus e dos espíritos que auxiliaram Kardec são recursos valiosos que podem, e devem, compor um mosaico de ações que promovam a construção da autoconsciência transformadora do povo, pois um povo alheio à sua realidade social, econômica e ambiental e à sua identidade jamais conseguirá dar passos no sentido da superação de suas mazelas e dificuldades. Portanto, se se pretende verdadeiramente promover a transformação proposta nos ensinos evangélicos e espíritas, é preciso antes de tudo atuar no sentido de possibilitar ao povo a elaboração de sua autoconsciência, ou seja, o foco do novo movimento espírita dever ser o trabalho de conscientização.
E aqui não há nenhuma pretensão de protagonismo nessa tarefa, pois a conscientização é uma conquista de determinado grupo ou de toda a sociedade. Ela não é algo dado por um terceiro, mas construída a partir da própria realidade em que se vive, pois só quem a vive é capaz de dela tomar consciência. Caberá, portanto, ao novo movimento espírita entender seu papel de ferramenta, de meio, de instrumento, de mero auxiliar que facilita a conquista dessa consciência social.
Os núcleos espíritas desse novo movimento devem, preferencialmente, estar vinculados a comunidades populares, de trabalhadores, para, junto com eles –e jamais para eles–, promover atividades e reflexões, com o apoio indispensável dos ensinos evangélicos e espíritas, que contribuam para a construção da consciência crítica de todos os envolvidos.
Portanto, não haveria espaço nessa nova proposta de ação-reflexão[3] para palestras evangélicas alienantes ou reuniões de estudos de caráter ortodoxo. Isso porque não há uma doutrina a ser ensinada, não há um fiel a ser conquistado, mas uma tarefa de construção de consciência coletiva a ser feita por meio das transformadoras propostas espíritas, já que o que se objetiva não é um profitente espírita, mas um indivíduo liberto e consciente.
“E percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas e pregando o evangelho do reino, e curando todas as enfermidades e moléstias entre o povo.” Mt 4, 23.
Reuniões e estudos devem então se pautar pelo diálogo e pela participação de todos. E qualquer reflexão de caráter espiritual deve partir da realidade concreta em que vive a comunidade que se insere o núcleo espírita. Muitas reflexões, diálogos e estudos espíritas podem ser feitos a partir das condições concretas da vida do povo, como as dificuldades das relações de trabalho, as condições objetivas do bairro em que se vive, a moradia, as dificuldades enfrentadas pelas famílias trabalhadoras no acesso à educação e à saúde, os problemas enfrentados por negros, mulheres e LGBTs da comunidade, a violência urbana, as drogas etc. E, a partir da análise desse contexto socioeconômico e da reflexão dos textos espíritas, será possível encontrar não só o consolo proposto por esses textos, mas a força para transformar a situação concreta, que é o valor maior dos ensinos evangélicos.
Esses novos núcleos espíritas devem também promover incansavelmente a auto-organização em todos os sentidos. Primeiro, a auto-organização do trabalho, motivando o trabalhador a participar de cooperativas, movimentos sociais, organizações de bairro e sindicatos profissionais, mostrando que é por meio da luta coletiva que se conseguirá transformar a realidade, jogando por terra o discurso hegemônico e falacioso da meritocracia individual. Segundo, é preciso também fazer com que o próprio núcleo espírita seja auto-organizado, que a própria comunidade dirija e decida os rumos desse novo movimento espírita. A classe média, maioria dentro do movimento espírita, precisa abdicar de seu protagonismo e ser mero instrumento da promoção da participação popular na organização desses novos núcleos.
Por fim, as atividades de caridade material, necessárias dentro das comunidades pobres onde vive o povo trabalhador, devem-se nortear pela reflexão e decisão conjuntas e pelo auxílio mútuo. Ou seja, é a leitura da realidade concreta, feita com a participação de todos, que deverá pautar as ações a serem tomadas por todos, incluindo obrigatoriamente a própria comunidade. Não há simplesmente doação de itens sem que toda a comunidade participe da definição de suas necessidades e da própria atividade de auxílio mútuo. Portanto, não é apenas um doar alienante, mas uma ação que constrói relações coletivas e promove a consciência libertadora.
As propostas espíritas trazem consigo esse poder transformador revolucionário. O que se precisa é colocá-lo em ação. Essas propostas foram trazidas há mais de cento e sessenta anos por uma miríade de espíritos como ferramenta de auxílio nesse processo que, como se sabe pela lei de evolução, ocorrerá de qualquer forma, “conosco, sem nós ou contra nós”[4]. E o que aqui, pois, propõe-se é que se coloque o movimento espírita a favor desse processo, mudando o triste rumo em que hoje se encontra.
Notas:
[1] Paráfrase da décima-primeira tese sobre Feuerbach, de Karl Marx.
[2] Conforme Paulo Freire em “Pedagogia do oprimido”.
[3] Frei Inocêncio Engelke, em carta pastoral à pequenina cidade mineira de Campanha, em 1950, mostrando sua preocupação sobre a ausência da Igreja Católica no processo de libertação do povo camponês.
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