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sexta-feira, 12 de abril de 2019

Jurista Lênio Streck: Supremo não precisa salvar o mundo; basta respeitar o Direito!


 "Nosso abismo é tão grande que, orwellianamente, sinto-me na responsabilidade de reafirmar o óbvio. É triste quando a realidade impõe que nossas pretensões tenham de ser tão banais. Tão óbvias. Mas, como dizia Darcy Ribeiro, Deus é tão treteiro... que ainda precisamos dessa classe de gente, os cientistas... para desvelar as obviedades do óbvio."

Do Consultor Jurídico, Conjur:

Resumo: O óbvio do óbvio: Se o STF existe para atender às maiorias, não precisamos de ministros.
Wittgenstein dizia que a filosofia é a sinopse de trivialidades. Não vou tão longe quanto o austríaco, mas minha coluna de hoje honra sua concepção. Não estou aqui para construir uma casa; só quero arrumar um dos quartos. Um dos quartos. Estou aqui para trazer de volta algumas trivialidades. Nosso abismo é tão grande que, orwellianamente, sinto-me na responsabilidade de reafirmar o óbvio. É triste quando a realidade impõe que nossas pretensões tenham de ser tão banais. Tão óbvias. Mas, como dizia Darcy Ribeiro, Deus é tão treteiro... que ainda precisamos dessa classe de gente, os cientistas... para desvelar as obviedades do óbvio.

Em minha coluna anterior — na qual de novo tive de reafirmar a obviedade de que, em uma democracia, x deve ser lido como x —, sustentei que, “ainda que estivesse certo, o ministro Barroso estaria errado”. Com isso, quis rebater a sua tese de que se o STF não "corresponder aos sentimentos da sociedade" acabaria por "perder sua legitimidade".

O que o ministro Barroso quer dizer, naturalmente, é que, se o STF não reforçar o entendimento em favor da execução antecipada da pena, estará desmoralizado perante a sociedade. Só que não é só isso. É mais grave: ele acaba por dizer que é nada mais que natural que seja assim e, pior, que a legitimidade da Suprema Corte está subordinada à aprovação moral(ista) das maiorias. De fato, isso é grave. E é por isso que retomo o ponto.

E retomo o ponto não como um ataque pessoal. Já que vivemos em tempos de reafirmar o óbvio, assim o faço: tenho profundo respeito pelo ministro Barroso. Ele sabe disso desde os tempos do Grupo Cainã, do qual participávamos junto com Canotilho, Jacinto Coutinho, A. Nunes, Scaff, Lada, Fachin, Eros Grau e tantos outros.

É exatamente por respeitá-lo que me sinto na obrigação cívico-epistêmica de dizer clara e diretamente quando — e quanto — penso que ele está errado. E quão deletério para a democracia isso pode ser. E é exatamente por acreditar em Barroso quando ele diz ser um democrata que penso ser necessário que se diga quando, talvez sem querer, o ministro acaba por reforçar um dos grandes perigos que assombram nossa já frágil democracia: a emotivização (do velho emotivismo condenado por MacIntyre) do Direito.

Chega uma hora em que é necessário parar, colocar a bola no chão, e dizer: “Esperem aí, paremos um minuto. Olhemos bem para o que temos feito, para o caminho que temos tomado, e reflitamos se é mesmo desejável que seja assim”. Acostumar-se com o absurdo pode ser perigosíssimo, porque paramos de ver o absurdo como absurdo. Esqueça que o errado é errado e o tempo faz com que ele pareça certo aos olhos de todo mundo.

Quando foi que virou normal, e aceita, a tese de que a legitimidade de um Supremo Tribunal esteja atrelada ao que as pessoas pensam politicamente sobre ele? Isso está rebatido até mesmo na metáfora das correntes de Ulisses e o canto das sereias. Quando foi que se normalizou que um ministro da própria Suprema Corte diga que ela deve corresponder aos sentimentos da sociedade, se a Constituição é um mecanismo contramajoritário?

É muito simples. Primeiro: “Sentimentos da sociedade”? O que é isso? Quer dizer que só há pluralismo quando interessa? Que homogeneização ad hoc é essa? Quando foi que os sentimentos da sociedade se tornaram assim tão convergentes de modo a apontar à mesma direção? E existiria um “sentimentômetro” para medir esses sentimentos?

Uma Suprema Corte, leitores, existe exatamente para fazer valer a Constituição em face das vontades da maioria. Porque, como bem disse Dworkin, democracia não é (só) maioria; a regra da maioria não tem valor intrínseco. O majoritarianismo pode, afinal, ser... antidemocrático.

Vejam: se o ministro Roberto Barroso estiver certo, e sua tese for levada a sério, ele está declarando a própria inutilidade da Corte. Porque, ora, se o Supremo lá está apenas para atender às vontades flutuantes da maioria, não precisamos de ministros. O Supremo já não serve pra nada. Substituamos o STF por uma urna (ou pelo Data Folha), e resolvamos tudo por plebiscito. Já chegamos na época em que prender ou não virou questão de opinião mesmo, então simplifiquemos o processo. Pronto.

Alguém dirá que estou exagerando. Certo. Mas será que estou exagerando tanto assim? Vejamos: Deputados ameaçando fechar o Supremo com um soldado e um cabo. Discute-se fortemente a revisão histórica de que 64 não foi golpe. Pior de tudo: vê-se dia a dia o reforço da tese de que um Supremo Tribunal tem sua legitimidade vinculada à aprovação subjetiva dos jurisdicionados. Mas, ainda pior, é a notícia, veiculada pelo jornalista Ricardo Noblat (aqui), de que generais pressionaram-ameaçaram o Supremo face ao julgamento da presunção da inocência. Tremo só em pensar nisso... Você não, leitor?

Parafraseando o genial Roberto Bolaño, durante um segundo de lucidez, percebemos que enlouquecemos. Mas depois esse segundo de lucidez, dizia Bolaño, às vezes vem um supersegundo de superlucidez, no qual percebemos que esse cenário é nada mais que um resultado lógico das nossas vidas.

É isso. Parece loucura, mas tudo isso é nada mais que o resultado daquilo a que nós próprios demos causas.

Direito virou questão de opinião. Emotivizamos tudo. E se isso parece loucura, e é, é também nada mais que fruto de nossa fraqueza institucional, nosso deserto epistêmico, nossa memória fraca, nossa covardia, nossa doutrina complacente (que já não doutrina), nossa recusa a chamar as coisas pelos seus nomes. Somos o país do assassinato que vira suicídio, do golpe que vira movimento, do empregado que vira colaborador, do Tribunal contramajoritário que vira plebiscitário.

Wittgenstein, faço aqui aquilo que você (permita-me a intimidade) disse ser o papel do filósofo. Eis uma sinopse da trivialidade: a legitimidade de uma Suprema Corte está subordinada ao Direito, e é o Direito que corrige os problemas das maiorias, e não o contrário.

Orwell, faço aqui aquilo que você disse ser nosso papel em tempos de abismo. Eis uma reafirmação do óbvio: Direito não é questão de opinião.

Vejam, eu não estou pedindo demais. Não quero que o Supremo Tribunal salve o mundo.

Mas não estou pedindo de menos. Eu quero que o Supremo Tribunal respeite o Direito, e não capitule em face das ameaças. Espero que o STF desminta, logo, as notícias de que está sendo pressionado. Não quero que o STF salve o Brasil; quero apenas que o Brasil não sucumba face a uma inércia do STF, guardião da Constituição.

A crise institucional é agravada se as instituições não respeitarem a si próprias. Ministros, desembargadores, juízes, PGR: nós precisamos de vocês. Não cedam. Não cedam às maiorias, mas também não cedam à própria barbárie interior da modernidade. Lutamos muito para que o poder fosse filtrado pelo Direito. Onde a lei disser x, leiam x. Não é a democracia que assegura o Direito; é o Direito que garante a democracia. Sem Direito, não há democracia. Óbvio isso, pois não? Deus é tão treteiro...

Esqueça que o errado é errado e o tempo faz com que ele pareça certo aos olhos de todo mundo. Mas só vai parecer. O errado continua errado.

Porque na verdade, na verdade mesmo — e verdades existem —, assassinato é assassinato, golpe é golpe, inconstitucionalidade é inconstitucionalidade, constitucionalidade é constitucionalidade, empregado é empregado. Toga é toga, jipe é jipe.

E o Supremo, que deve ser contramajoritário? Esse pode acabar virando plebiscitário. Só depende dele próprio, e depende de nós, do respeito que temos por nós próprios e do apreço que temos pela democracia.

Disse!

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
No ConJur

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