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quarta-feira, 10 de abril de 2019

Heloísa, filha do ex-astrólogo e mentor de Bolsonaro e filhos, Araújo e Wintraub, Olavo de Carvalho, revela à revista Época alguns pontos do obscurantismo do pai



Do Contexto Livre, citando entrevista da repórter Cleide Carvalho com Heloisa, filha de Olavo de Carvalho, para a Revista Época:

Heloísa, filha do ideólogo Olavo de Carvalho, fala da infância desassistida, da relação conflituosa com ele e das antigas convicções religiosas do pai, que agora são negadas

Heloísa e o pai, Olavo de Carvalho, em foto dos anos 90.
"Hoje ele se diz católico desde criancinha, mas foi muçulmano
e levou todos os quatro filhos, minha mãe a as esposas dele
na época para o islamismo"
Foto: Reprodução/Facebook
Aos 49 anos, Heloísa de Carvalho Martin Arribas mora numa casa simples e aconchegante em Atibaia, com árvores e flores pelo quintal.

Professora de artesanato, saiu do anonimato em 2017, quando escreveu "Carta aberta a um pai". O texto relata parte da infância dela e dos irmãos, período marcado pela ausência do pai, o ideólogo de direita Olavo de Carvalho, guru do governo de Jair Bolsonaro. Heloísa o acusa de não a ter enviado à escola.

Carvalho, ainda segundo a filha, teria colocado a família para morar nos fundos da Escola Júpiter, onde dava cursos de astrologia, enquanto usava a casa da frente para se relacionar com a nova esposa. Em entrevista a ÉPOCA, Heloísa fala sobre o relacionamento com o pai e sobre a mágoa em relação ao abandono intelectual — ela foi alfabetizada pelo Mobral, antigo programa do governo de alfabetização de adultos. 

Você tinha um relacionamento ruim com seu pai? 

Eu sempre tive contato com meu pai. Todas as férias, quando dava, ia passar uns dias na casa dele no Rio ou em Curitiba. Mesmo depois de 2005, quando ele foi para os Estados Unidos, falávamos por e-mail, telefone, WhatsApp. Essa distância que meu pai diz que existe entre nós nunca existiu. Sempre tivemos contato. É apenas uma maneira de ele dizer "não sei da vida dela", "é uma filha que coloquei no mundo e perdi". Uma forma para justificar a falta de responsabilidade como pai, como não ter mandado os filhos para a escola. Não é nada disso que ele fala. Fico pasma de os meus irmãos dizerem que quem mente sou eu.  

Vocês tiveram uma criação religiosa?  

Teve épocas em que rezávamos antes das refeições, mas minha mãe rezava porque era obrigada. Isso não durou nem um ano e não íamos mais à missa. Quando fui morar com meu pai e a Silvana, a segunda esposa dele, frequentávamos uma igreja na Mooca de vez em quando, mas também não durou. Acordar cedo nunca fez parte da vida do meu pai. Às vezes, chegávamos atrasados à missa por ele perder a hora. Hoje ele se diz católico desde criancinha, mas foi muçulmano e levou todos os quatro filhos, minha mãe a as esposas dele na época para o islamismo. Chegou a ter três esposas muçulmanas ao mesmo tempo. Não batizou nenhum dos quatro filhos do primeiro casamento. Dos outros casamentos não sei, mas nunca ouvi falar em madrinha ou batismo. Ele me casou no islamismo. Eu optei por ser católica e, em 2015, depois de adulta, fui batizada.  

Por que ele foi morar nos Estados Unidos? 

No começo eu não entendia. Acompanhava ele pelo Facebook de vez em quando. Via as publicações, os ataques, mas sempre me mantive neutra. Quando começou a união com a campanha do Jair Bolsonaro, vi que a coisa era maior do que eu imaginava. Lembro de coisas do passado, das amizades que ajudaram ele a chegar onde chegou. Dos Estados Unidos ele tem condições de atacar as pessoas. É uma forma de falar o que quer sem ser atingido ou processado. Xinga e ofende todo mundo. Mas quem tem condição financeira de processar Olavo de Carvalho com ele morando lá? É caro, tem carta rogatória, tradução juramentada. Custa tempo e dinheiro. Eu mesma o processaria. Meu pai disse que fui presa em briga de bar, que sou usuária de drogas. Fora a questão do abandono intelectual que sofri na infância e me causa grande transtorno até hoje, com deficiência muito grande na escrita. 

Luiz Gonzaga, Davi, Pedro, Leilah, Heloísa e Percival, os filhos de Olavo de Carvalho no aeroporto de Curitiba, na despedida dele em 2005, quando mudou-se para os EUA Foto: Acervo pessoal
Luiz Gonzaga, Davi, Pedro, Leilah, Heloísa e Percival, os filhos de Olavo de Carvalho no aeroporto
de Curitiba, na despedida dele em 2005, quando mudou-se para os EUA
Foto: Acervo pessoal

Seu pai tinha dinheiro para viver nos Estados Unidos? 

Ele foi em 2005, ajudado pelo Guilherme Almeida, um dos herdeiros do Grupo CR Almeida. Meu pai morava em Curitiba e, um dia, me ligou: "Dá para vir para cá? Preciso falar com você urgente". Eu já morava aqui em Atibaia, trabalhava durante a semana e, nos fins de semana, fazia “bico” como caixa numa pizzaria para complementar a renda. Sempre trabalhei muito para me sustentar. Então eu fui. O Guilherme Almeida mandou três carros blindados para levar a gente até o aeroporto e pagou o almoço de despedida, com umas 40 pessoas. Uma vez meu pai falou que recebeu US$ 40 mil de um amigo para se estabelecer nos Estados Unidos. Imagino que tenha sido dele. 

Você falou recentemente que viveu numa comunidade islâmica com seus pais. Como foi isso? 

Foi em 1985, quando meus irmãos foram morar com ele numa casa no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Eu tinha 16 anos e morava com uma tia aqui em Atibaia. Tinha começado a estudar. Fazia jazz, jogava vôlei. Minha mãe veio e disse que estavam ela, meu pai e meus irmãos morando todos juntos — só faltava eu. Qual o filho de pais separados que não quer ver todo mundo junto? Até briguei com minha tia para ir. Mas, quando cheguei lá, não era uma casa normal. Era uma casa onde viviam umas 30 pessoas. Pelo menos 12, fora a minha família, moravam lá. Ele estava numa seita islâmica e todo mundo se converteu. Era uma comunidade, com rezação o dia todo, um monte de regra preconceituosa. 

Que tipo de regra? 

Tinha de sair na rua de véu, com saia comprida até o tornozelo e mangas compridas. Era proibido falar qualquer tipo de palavrão. Também era proibido ter contato com homossexuais ou prostitutas. Todas as sextas-feiras íamos a uma mesquita na Avenida do Estado [importante via da capital paulista]. Ele dizia que muçulmano não namora, só casa. Me apaixonei por um aluno dele. Eu tinha 16 anos e o rapaz, que é o pai do meu filho, tinha 18. Casamos e ficamos juntos durante seis anos. Vivemos na comunidade por uns dois anos. Depois meu pai brigou com todo mundo e a seita acabou, desmantelou. Primeiro fui morar com a minha avó materna. Depois minha tia nos chamou para morar aqui em Atibaia. Eu voltei a estudar e ele também. Nos separamos, mas mantemos a amizade. Ele tem urticária só de ouvir falar em Olavo de Carvalho.  

Você diz que não estudou, que foi alfabetizada no Mobral. Seus pais eram contra a escola? 

Não é que proibissem, mas nunca deram importância. Quando a gente ia à escola, não tinha material, roupa, uniforme. Nessa época, eu era criança. Morávamos na Zona Norte de São Paulo e ele chegou até a matricular a gente numa escola particular chamada Recanto da Petizada. Mas não pagava. Eu voltava da escola levando o boleto de cobrança para casa. Também não pagava perua para levar para a escola. Não tinha como ir. Só consegui me alfabetizar mesmo quando me matriculei no Mobral, incentivada por minha tia, que era professora.  

Quando você deixou de morar com seus pais para morar com sua tia?  

Minha mãe e meu pai se separaram e eu fiquei primeiro morando com ele e a Silvana, a segunda esposa dele. Eu tinha uns 11 anos e a Silvana havia tido a minha irmã Inês, que era um bebê ainda. Silvana não era boa dona de casa. Eu vivia jogada, sem comida pronta, roupas limpas ou ajuda para estudar. Às vezes, tinha de comprar cartolina para levar para a escola e eu não achava nem meu pai nem ela para pedir dinheiro. Ficava sem o material. Morria de vergonha. Tinha uma amiguinha que morava no mesmo prédio que eu e que estudava na minha classe. Quando dava, ela dividia o material comigo. Tenho muita saudade dela, mas nunca mais a encontrei. Só sei o primeiro nome dela: Irina. A única lembrança que guardei foi uma foto nossa. Eu com o cãozinho dela e ela com meu gatinho, tirada pela Silvana, no prédio onde morávamos, na Rua Tutoia.  

A segunda mulher dele era como? 

A Silvana é de família bem rica. Foi criada com empregada e mordomo. Quando a coisa apertava, ela saía correndo com a Inês para a casa do pai ou da avó dela. Ficava lá o dia todo. Só aparecia quando meu pai estava em casa. Nessa época, ele dava cursos de astrologia, viajava muito para o Rio, e eu ficava sozinha no apartamento, que era do pai dela. Um dia, minha tia foi levar minha mãe para me visitar e eu pedi para morar com minha tia. Eu tinha uns 12 ou 13 anos. Foi bom. Voltei a estudar, fazer esportes, ter amigos, casa, comida e roupa limpa. Foi com a minha tia que aprendi a me cuidar e cuidar de uma casa. Foi com a minha tia que fui estudar no Mobral. 

Seus pais continuaram morando com seus irmãos? 

Meus pais viviam num tal de separa e volta. Acho que ele morou com a gente até antes de o Davi nascer. Davi é o mais novo. Depois não me lembro mais de eles morarem juntos. Ele aparecia, dormia uma ou duas noites e sumia. Foram anos assim até ele montar a Escola Júpiter de Astrologia. Depois de várias namoradas, ele começou a namorar com a Silvana, até que ela engravidou e eles passaram a morar juntos. Foi nessa época que a minha mãe tentou suicídio e foi internada por ele num hospício. Eu fiquei morando com ele e a Silvana. E meus irmãos foram morar com a minha avó materna. 

E sua mãe? Nunca falou para você estudar? 

Os dois sempre foram ligados a religião, astrologia e ocultismo. Não estavam nem aí. Viravam a noite fumando, tomando café, fazendo "filosofia". No dia seguinte, minha mãe não acordava, não tinha café da manhã, nada. Sabe quando seu pai trabalha, ganha uma nota, vai para o restaurante com a família inteira e, no dia seguinte, vem a companhia energética e “corta” a luz pois ele não pagou? Essa foi a infância que eu tive. Ele também ia para restaurantes caros com os alunos, pagava a conta de todos, e, no dia seguinte, cortavam a água da minha casa. Não foi uma nem duas vezes que aconteceu isso. Foram muitas. Fora os despejos. Não passamos necessidade porque a família da minha mãe sempre deu amparo. Minha avó materna atravessava da Vila Guilherme, onde ela morava, até o Jardim Brasil [bairros da Zona Norte de São Paulo] para fazer a xepa da feira e ter comida para as crianças — eu e meus irmãos. Remédio, médico, era tudo na base da amizade. Quando ficava doente, nos levavam num médico amigo do Olavo. Meu pai trabalhou como jornalista na Revista Médica e conheceu o Dr. Paulo. Ele acabou sendo o pediatra da gente, uma pessoa com quem mantenho um pouco de contato até hoje. 

Seus irmãos estudaram? 

Meus irmãos, filhos da mesma mãe que eu, não têm o ensino fundamental. Sou a primogênita dele — a mais velha. Minha mãe se casou com ele em 1968 e fez separação de corpos nos anos 80. Em 2005, Olavo fez o divórcio porque precisava ir embora casado para os Estados Unidos. O Luiz estudou até a quarta série, o Tales até a terceira e o Davi até a segunda. Eu estudei porque fui morar com minha tia, que era professora. Fiz o Mobral e, em 2005, entrei num curso de Direito aqui em Atibaia. Demorei sete anos e meio para me formar porque tinha dificuldades. Os professores nunca perguntaram, mas achavam que eu tinha algum tipo de problema cognitivo. Eu não contava que tinha feito Mobral, supletivo. Não fui alfabetizada. Morria de vergonha. Eles acabavam dividindo a nota entre prova escrita, trabalho e apresentação. Teve uma prova que escrevi terra com um erre só. Na prova escrita eu ia mal, na apresentação dava show. Meus irmãos do segundo casamento dele — a Inês e o Percival — tiveram escola boa. Estudaram na escola da madrasta da mãe deles, com pedagogia Waldorf, classe com no máximo 10 crianças. Fizeram USP, são bem estudados, mas graças à mãe deles. Meus irmãos do terceiro casamento dele — a Leilah e o Pedro — moram com ele nos Estados Unidos. A Leilah faz faculdade e o Pedro foi ser  mariner  [fuzileiro naval dos Estados Unidos]. 

Sua divergência com o seu pai começou quando? 

Foi depois do filme O jardim das aflições [que retrata as ideias e o cotidiano de Carvalho e que foi lançado em 2017]. Comecei a ver uma briga pela internet entre os diretores do filme. O diretor de fotografia [Daniel Aragão] começou a falar coisas no Facebook e entrei em contato com ele para saber o que tinha acontecido. Ele estava sendo sacaneado. A questão não era dinheiro, era o reconhecimento do trabalho. Falavam do filme, mas omitiam o nome dele. Eu falei que ia interceder por ele e liguei para o meu pai. Meu pai disse para eu não me meter, que era melhor eu me calar. Perguntei por que era melhor eu me calar e ele falou: "Era o que me faltava, uma puta vagabunda se envolver com um maconheiro vigarista para me foder". Bateu o telefone na minha cara, me bloqueou no Facebook e no WhatsApp. Aí resolvi começar a falar o que sei sobre o lado que o Olavo esconde. Esse lado agressivo, maldoso, violento com as pessoas. É um lado que somente quem convive com ele já viu ou sabe. 

Você citou numa carta pública, em 2017, que a reação de seu pai em relação a sua defesa do Daniel Aragão parecia surto. O que são esses surtos? 

Quando ele fica nervoso, ele surta, com gritos, murros na mesa, muitos palavrões e grosserias com quem está por perto. Isso acontece quando ele se sente provocado ou ameaçado. Diz que a culpa é dos outros; nunca é dele. Uma vez, na casa da Bela Vista, logo depois que ele foi expulso da seita do Frithjof Schuon, ele ficou surtado, com mania de perseguição. Dizia que queriam matá-lo. Ficava paranoico, colocava tranca nas portas e janelas. Dizia que estava sendo vigiado e andava armado pela casa. Eu morava lá e não via nada de estranho. Acho que era tudo coisa da cabeça dele. 

Seu pai chegou a ficar internado? Você sabe algo sobre esse período?  

Sim. Eu tinha entre 5 e 7 anos, não sei exatamente. Fui duas ou três vezes visitar ele na clínica. Não podíamos entrar na casa, então ficávamos na área da piscina, que por sinal era enorme, com um belo jardim. Era uma clínica particular em regime comunitário, coisa bem diferente para aquela época. 

O que seus irmãos fazem hoje? 

Quando meu pai foi embora para os Estados Unidos, o Luiz e o Davi se mudaram para Curitiba e o Luiz herdou as aulas do meu pai. Há uns três anos, pelo que sei, fundaram um instituto e hoje só dão aulas, consulta astrológica e orientação espiritual pela internet. O Luiz hoje vive na Romênia. Ouvi dizer que virá para o Brasil este ano encontrar com os alunos. O Davi ajuda a conseguir alunos, a divulgar os cursos. O Tales é muçulmano e é o único que assume isso publicamente. É chefe de uma  tariqa  [confrarias esotéricas islâmicas, da corrente contemplativa e mística do Islã], tem duas mulheres e se mudou com elas para o Paraguai. O Luiz também faz parte da  tariqa , mas não diz publicamente. Na prática, todos vivem da marca Olavo de Carvalho e propagam a mesma filosofia. Eles nunca foram ligados em política, mas, de repente, viraram todos bolsonaristas. Pior! O Luiz fez campanha para o Bolsonaro nas redes sociais, mas nem foi votar. Depois das eleições, vi que ele estava com o título de eleitor cancelado por não ter ido votar. 

Você não permaneceu adepta da seita muçulmana. O que sabe dela? 

É difícil explicar. Trata-se de uma seita islâmica ligada ao sufismo. Entendem que todas as religiões, de alguma forma, se fundem para elevar a espiritualidade. Por isso, algumas  tariqas  recebem pessoas que não são muçulmanas, mas nem todas. Existem várias pelo mundo. Meu pai hoje tem essa fachada de católico tradicional, mas eu e meus irmãos não fomos sequer batizados na Igreja Católica e a única religião que meu pai fez a gente seguir foi o islamismo. As práticas são exercícios de respiração e muita oração em árabe, onde sacodem a cabeça para entrar em transe e ficam repetindo frases do Alcorão incessantemente, tudo sempre em árabe. Na nossa casa do bairro da Bela Vista, ele até montou uma sala especial apenas para essas orações. Era toda decorada com quadros com dizeres do Alcorão, tudo escrito em árabe. Eu nunca aprendi uma frase em árabe. Fui obrigada a me converter ao islamismo e, assim que deu, pulei fora daquilo e da convivência na mesma casa com meu pai. Foi meu meio de escapar da doutrinação religiosa.

Cleide Carvalho
No Época

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