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domingo, 10 de julho de 2016

A neoliberal sucuri que vai engolindo o ensino no Brasil, por Sérgio de Castro Gonçalves


Todos, e não só os defensores do elitismo golpista, somos pautados pela imprensa: pensamos, se não como ela quer, pelo menos sobre o que ela quer.

Somos envolvidos pelos movimentos truculentos da Polícia Federal, consorciada com os jovens procuradores, ou até pelo drama familiar de Eduardo Cunha.

Mas os movimentos em torno da Kroton, esses, embora noticiados, não recebem espaço e atenção maiores.

Certo é que uma das inúmeras operações promovidas pela PF envolveu a prisão dos proprietários da Universidade Estácio de Sá, acusados de apropriação de recursos produzidos pela emissão de debêntures.

No final das contas, as negociações, envolvendo a simples venda do ensino no Brasil, transformando-o em mercadoria formatada por grandes empresas multinacionais, mereceram alguma atenção?

O que foi contado: numa das inúmeras operações da PF, proprietários da Universidade Estácio de Sá foram presos, sob suspeita (suspeitas, nos tempos que correm, justificam prisões, conduções coercitivas e quaisquer outros desrespeitos aos direitos do cidadão).

E o comportamento antiético dos senhores educadores daquela universidade mostrou-se como interessante e útil, associando-se à prática de “propinas”, envolvendo os gestores de fundos de pensão, como a Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, gestores nomeados pelo governo do PT.

O que não foi contado: a Estácio vinha fazendo uso repetido de lançamento de debêntures, um tipo de capitalização regulado por lei, mas que na maioria dos casos envolve aspectos antiéticos.

Além disso, a aquisição da mesma Estácio vinha sendo objeto de disputa por algumas das grandes empresas comerciantes de ensino, não apenas planejada pela Kroton.

A Polícia Federal e o Ministério Público acompanhavam tudo isso? Agiram com correção, embora afoitamente?

O que mais merece atenção em toda essa trama é a Kroton, com suas origens em Belo Horizonte, onde surgiu em 1966, como Curso Pitágoras, tendo à sua frente Walfrido dos Mares Guia, que ao mesmo tempo assumia pessoalmente não menos notável peso político.

Na década de 1980, surgiu a oportunidade de trabalhar no Iraque e na Mauritânia, onde o Pitágoras dirigiu unidades escolares que possuiam mais de mil alunos brasileiros que se encontravam naqueles países. Em princípio dos anos 90, a já então Rede Pitágoras explorava o ensino básico, em pouco tempo somando mais de 106 escolas.

No início dos anos 2000 e com a mudança do marco regulatório do setor de educação, surgiu a primeira Faculdade Pitágoras, em associação com a Apollo, com sede no estado do Arizona, nos Estados Unidos.

Tal parceria durou até 2005, quando a Apollo decidiu vender sua participação aos fundadores.

O ano de 2007 ficou marcado pela abertura de capital do Pitágoras na BM&F Bovespa, com o nome Kroton Educacional, possibilitando a consolidação de uma fase de grande expansão e desenvolvimento da companhia.

Já em 2009, a Kroton recebeu um novo aporte financeiro de um dos maiores fundos de private equity do mundo, a Advent International, que a partir de então compartilharia o controle da companhia com os sócios fundadores.

Em 2010, a Kroton efetuou a maior aquisição do setor de educação superior do Brasil ao comprar a IUNI Educacional.

Em 2013, um novo recorde, com a incorporação da Anhanguera, pelo valor de R$ 6,8 bilhões, formando-se então a maior empresa no ramo do comércio do ensino.

O Cade — Conselho Administrativo de Defesa Econômica — aprovou a operação, mas definindo como exigência a venda do grupo Uniasselvi e mais alguns ativos.

As transações foram feitas com a assessoria dos bancos Itaú e Pactual. Interessaram-se o Carlyle Group e a Vinci Partners.

O Carlyle Group (NASDAQ: CG) é uma firma de private equity fundada em 1987 por Stephen L. Norris e David M. Rubenstein.

Tem sede em Washington D.C. e filiais em diversos lugares do mundo. É uma das principais empresas de Leveraged Buyout (LBO) do mundo.

O grupo é administrado por uma equipe de antigo pessoal do governo americano, incluindo o seu presidente Frank Carlucci, ex-vice-diretor da CIA antes de se tornar secretário da Defesa.

O Carlyle e a Vinci Partners dispuseram-se então a investir R$ 1,1 bilhão na compra de ativos da Kroton.

No momento em que se incorporava a Anhanguera, Marcos Piva desabafava com todos os motivos: “Guardada a sete chaves como todo negócio que envolve ações na Bolsa de Valores, a aquisição da Anhanguera pela Kroton foi tratada pela grande imprensa como fato relevante, o que é, e como fusão, o que não é. Numa só canetada, ditada pelo interesse econômico, a educação brasileira foi elevada à mesma categoria de distribuidora de combustíveis e produtos alimentícios”.

A Kroton é o braço educacional da Adviser, um dos maiores fundos globais de investimento, especializado no ditado popular “quem pode, manda, quem tem juízo, obedece”.

Atualmente, é empresa de capital aberto, atuando em todos níveis escolares, tais como: pré-escolar, ensino primário e secundário, ensino secundário para adultos, vestibular, cursos livres, educação superior e pós-graduação entre outros.

A Kroton tem mais 1,5 milhão de estudantes em 127 campi e 726 polos divididos entre 11 marcas educacionais que estão distribuídas em todos os estados brasileiros.

A empresa também está envolvida na distribuição, atacado, varejo, importação e exportação de livros didáticos e revistas, entre outras publicações.

Além disso, licencia produtos pedagógicos relacionados com a escola.

A empresa opera 21 campi com a marca Pitágoras; 10 com a marca Unic; 5 com a marca Unopar; e 10 mais com as marcas Unime, Ceama, Unirondon, Fais, Fama e União em 10 estados brasileiros.

Ela também opera 804 escolas associadas no Brasil sob a marca Pitágoras, bem como 5 escolas parceiras no Japão e 1 escola parceira no Canadá.

O agigantamento do que nasceu Pitágoras e hoje é Kroton nunca poderá ser entendido, se não posto ao lado da carreira política de Walfrido Mares Guia, que possivelmente terá sido a maior e a mais sinistra “eminência parda” na História do Brasil.

Em 1994 foi eleito vice-governador de Minas Gereais, acumulando a Secretaria de Planejamento, com o que coordenou o esquema corrupto de concessão de incentivos fiscais, o mais corrupto já promovido no País — instalação da Mercedes-Benz em Juiz de Fora.

Foi o inspirador e coordenador do “mensalão mineiro”. Coordenador da campanha de Ciro Gomes em 2002. Com a vitória de Lula, tornou-se seu ministro do Turismo e depois ministro da Secretaria de Relações Institucionais.

Manteve-se próximo de Aécio Neves e do PSDB. E coordenou em Minas Gerais a campanha de Dilma Rousseff. Com mais de 70 anos, livrou-se em 2014 de condenação penal no processo que envolveu o governo de Minas Gerais no chamadomensalão tucano.

Tendo sempre acesso assegurado ao poder, Walfrido Mares Guia foi o beneficiário maior do Fies — Fundo de Financiamento Estudantil —, que passaria a ser, embora planejado como esquema para democratização do ensino superior, não mais do que o Proer – Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, dos tempos de Fernando Henrique Cardoso — das empresas negociantes de ensino.

Através do Fies instituições de ensino superior, mal avaliadas pelo próprio Ministério da Educação, com investimentos muito grandes, e ameaçadas de inviabilização, puderam sobreviver e prosseguir na sua marcha para o infinito, atraindo alunos financiados pelo Estado.

O Fies adequou-se em tudo aos objetivos e interesses das empresas privadas de ensino, contemplando cursos de menor relevância para o país (Direito, Administração), financiando os cursos de filhos de famílias de classe média e com grande concentração nos Estados mais ricos da Federação.

Em 2010, as três maiores empresas de ensino superior listadas em bolsa valiam 7 bilhões de reais. Hoje, elas são quatro — e valem 35 bilhões de reais.

A partir de então, o Estado, através do Fies, programa de financiamento para estudantes universitários em instituições particulares, apresentava um projeto e alto apelo popular, mas que, enfatizando-se, foi se transformando em sustentador das empresas de negócios de ensino, que investiram cada vez mais.

Na verdade, o governo tem sido um importante incentivador dessas instituições através dos programas que subsidiam com recursos públicos a oferta privada de educação.

De acordo com informações da assessoria de imprensa das empresas, hoje 63,2% dos alunos da Kroton e 46,9% dos da Anhanguera na modalidade presencial estudam via Financiamento Estudantil (Fies) e cerca de 10% são oriundos do Programa Universidade para Todos (Prouni), ambas iniciativas do governo federal.

Para o professor Roberto Leher, o processo de monopolização e financeirização da educação, do qual a fusão da Kroton com a Anhanguera é exemplar, é mais uma evidência de que a política de subsídios públicos à educação privada não visa democratizar a educação, como se costuma anunciar.

“Antes de tudo, é preciso observar um elemento histórico”, diz, explicando que o argumento de que é preciso garantir acesso aos milhões de jovens que hoje não conseguem chegar ao ensino superior é o mesmo que foi utilizado pela ditadura empresarial-militar para justificar a expansão da educação superior.

“Era preciso democratizar e isso seria feito por meio da iniciativa privada para que os ‘pobres’ alcançassem o nível superior”, lembra, destacando que isso estagnou as instituições públicas naquele momento.

Agora, com a incorporação da Estácio, criou-se a maior empresa privada de negócios de ensino superior no mundo, com 1,6 milhão de alunos.

Depois dela, a Ser Educacional, com 150 mil alunos.

Levantamento da CM Consultoria mostra que a fusão das duas companhias forma uma empresa de R$ 27,2 bilhões em valor de mercado.

A sucuri, também conhecida como anaconda, arigbóia, boiaçu, boiçu, boiguaçu, boioçu, boitiapóia, boiuçu, boiuna, sucuriju, sucurijuba, sucuriú, sucuruju, sucurujuba e viborão é uma cobra sul-americana da família Boidae, pertencente ao género Eunectes. Tem a fama de ser uma cobra enorme e muito perigosa.

A Kroton mostra sua vocação, jibóia que vai devorando o sistema de ensino no Brasil. Seu tamanho desproporcional sugere que, com o tempo a passar, o Ministério da Educação revele sua inutilidade, podendo ele mesmo ser incorporado, como “serviço de secretaria” da Kroton.

Não se trata, é óbvio, de problema que afete a ordem econômica, ameaça de monopólio, a ser verificado e impedido pelo Cade. Agora, repete-se a mesma manobra já executada quando da aquisição da Anhanguera.

O Cade, ao exigir da Kroton que venda partes de seu império, age praticamente como corretor e colabora na execução do projeto de Mares Guia: a internacionalização do império que ele construiu.

Afinal, há um mercado de proporções consideráveis no País e há a garantia de apoio do Ministério da Educação, através do Fies. O Brasil tornou-se a Pátria amada das grandes empresas que fazem da Educação um conjunto de atos de comércio.

A aquisição da Estácio revela a confiança que os empresários do ensino depositam no mercado representado pelo Brasil.

No que dependa do Governo Interino, há bom motivo para isso.

O MEC vai sendo não só esvaziado, mas ridicularizado, com a assessoria de um ator-feitor de pornografias. As Universidades Federais vão sendo postas a pão e água, enquanto o Fies agirá a todo vapor.

Tudo isso combina com as diretrizes, que apontam para o esvaziamento do ensino de ciências humanas, Filosofia e Sociologia. O Brasil trata hoje, em 2016, de pensar como se pensou em 1955: para Juscelino Kubitschek, o ensino brasileiro era prejudicado pelo excesso de humanidades.

Agora, sob a ótica do neoliberalismo mal implantado no Brasil, mas que procura a sua confirmação no menor prazo possível.

A tentativa de apressamento do processo foi feita, com a convocação de Mangabeira Unger ao Ministério e a elaboração do slogan da Pátria Educadora. Como algo não foi suficientemente bem feito, Mangabeira Unger foi implodido.

O Plano de Metas reservou timidamente 2,5% dos investimentos previstos para Educação, com um Ministério que, em cinco anos, foi ocupado por oito políticos. A ditadura civil-militar procurou limitar-se à “educação moral & cívica”, que deveria transmitir aos “paisanos” algo de competência e patriotismo.

Já na “democracia consentida”, praticada desde 1985, experimentou-se o projeto de Paulo Renato Souza, que previu o aviltamento da universidade pública, para que se abrissem espaços para a iniciativa privada.

Lula ocupou-se na Educação com ministros incompetentes, exceção a Fernando Haddad, ministros adestrados para a política de corredores e de ajustes com os interesses econômicos.

O que deveria merecer a atenção de todos: o processo de aviltamento do ensino no Brasil, o que marcará gerações, fazendo-as atontalhadas.

Caminhamos a passos firmes para um conjunto de poucas grandes empresas de comércio, vendendo os seus produtos, e para isso contando com o apoio do Estado.

Qualidade de ensino passa a ser utopia, miragem de quem atravessa um imenso deserto.

Hoje já há a prova provada disso.

De acordo com dados do MEC, a rede privada emprega 32% dos professores-doutores, embora seja responsável por 75% dos alunos matriculados em cursos de graduação. As empresas não se dispõem a pagar a doutores e não pretendem assumir custos de pesquisa e aperfeiçoamento do corpo docente.

Nesse momento, quando a Estácio é entregue, porteira-fechada, à Kroton, a preocupação dos professores não se restringe à possibilidade do desemprego, mas está voltada para o aviltamento dos salários.

Nas palavras diretas de um desses professores: “Hoje, os professores do Rio ganham, por hora-aula, em torno de R$ 50, no caso de professor auxiliar, em torno de R$ 53, no caso professor assistente, com pós-graduação; R$ 57, no caso de quem tem mestrado; e R$ 60, para professores com doutorado. Na Unipli (que pertence à Kroton), em Niterói, eles pagam de R$ 25 a R$ 30.”

Não se considerem os números absolutos, eventualmente desatualizados, mas que se faça a comparação em percentuais.

Afinal, como justificar gastos com o ensino universitário: a melhor escola é a escola da vida, não é assim? Pesquisa e desenvolvimento, oras, que afinal vivemos no mundo globalizado, e as multinacionais trarão de suas matrizes tudo isso já pronto, mastigado e digerido.

Sergio de Castro Gonçalves foi editor do material didático do Anglo (antes de sua venda para a Abril).
No Viomundo

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