Num duríssimo editorial, a Folha de S. Paulo, da família Frias, protesta contra condução da Câmara dos Deputados por Eduardo Cunha (PMDB-RJ); "Nos tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso do que tem sido a tradição brasileira", diz o texto; jornal também critica a forma como se faz a reforma política; "o cidadão assiste a tudo sem sentir que foi consultado"; na era Cunha, Câmara se transforma em "picadeiro pseudorreligioso", diz a Folha.
Mas que ninguém se engane: A Folha não fez seu artigo por uma súbita conversão à razão, mas por saber muito bem que a queda do Brasil nas sandices fundamentalistas e ultra-reacionárias das bancadas da Bíblia e da Bala são uma ameaça mais séria aos capitalistas e seus interesses ditos "liberais" que o da fantasioso "comunicação" do país. Ou, como bem esclarece Fernando Brito sobre o alinhamento do jornal dos Frias a Geraldo Alckmin para 2018,
"Os “modernos” da Folha, mais perfeita tradução da “para-elite ” que se forma em torno do dinheiro, não poupam dureza no texto, ao dizer que o parlamento caminha para “transformar-se numa espécie de picadeiro pseudorreligioso” e chama os seus a reagir, apelando aos “setores políticos moderados se veem quase compelidos a conciliar-se com a virulência ideológica”.
Vejamos agora, uma apresentação do editoral da Folha contra Cunha e, depois, o texto integral publicado pelo jornal dos Frias
Extraído do Brasil 247
247 – Prática rara na Folha de S. Paulo, o editorial de página inteira foi utilizado neste domingo para que o jornal explicitasse sua posição contra o atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
No texto Submissão, a Folha, conduzida por Otávio Frias Filho, bate duro no parlamentar fluminense. "O ativismo legislativo que se iniciou com a gestão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na Câmara dos Deputados, e que Renan Calheiros (PMDB-AL) não deixou de seguir no Senado, possui o aspecto louvável de recuperar para o Parlamento um padrão de atuação e de debate por muito tempo sufocado", diz o texto. "Essa aparência de progresso institucional se acompanha, porém, dos mais visíveis sintomas de reacionarismo político, prepotência pessoal e intimidação ideológica."
"Nos tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso do que tem sido a tradição constitucional brasileira", avança a Folha.
O jornal também questiona a forma como se tem feito a reforma política. "Eduardo Cunha atropelou as próprias instâncias institucionais ao impor ideias como a do distritão na pauta de votações", diz o texto. "A toque de caixa, questões intrincadas como a do financiamento às campanhas eleitorais sofreram apreciações seguidas, e nada comprova mais a precipitação do processo do que o fato de que, em cerca de 24 horas, inverteram-se os resultados do plenário."
Numa frase que resume o circo, a Folha afirma que o "cidadão assiste a tudo sem sentir que foi consultado".
Qual é o resultado disso? "No meio dessa febre decisória, há espaço para que o Legislativo comece a transformar-se numa espécie de picadeiro pseudorreligioso, onde se encenam orações e onde se reprime, com gás pimenta, quem protesta contra leis penais duras e sabidamente ineficazes", diz o texto. "Os inquisidores da irmandade evangélica, os demagogos da bala e da tortura avançam sobre a ordem democrática e sobre a cultura liberal do Estado; que, diante deles, não prevaleça a submissão."
Segue o editorial da Folha de São Paulo
Submissão
Num futuro não muito distante, a aliança entre grupos políticos moderados e fundamentalistas religiosos obtém expressiva vitória eleitoral. Logo se estabelece, num país de tradições laicas e liberais, o predomínio da repressão, do obscurantismo e do preconceito.
Em "Submissão", polêmico livro de Michel Houellebecq recém-traduzido no Brasil, imagina-se o domínio de certa "Fraternidade Muçulmana" sobre o Estado francês.
O Brasil por certo não é a França retratada nesse romance, e se o fanatismo de alguns grupos traz perigo à sociedade ocidental, não há sinais de sua atividade em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Brasília.
Um espírito crescente de fundamentalismo se manifesta, contudo, em setores da sociedade brasileira –e, como nunca, o Congresso Nacional parece empenhado em refleti-lo, intensificá-lo e instrumentalizá-lo com fins demagógicos e de promoção pessoal.
O ativismo legislativo que se iniciou com a gestão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na Câmara dos Deputados, e que Renan Calheiros (PMDB-AL) não deixou de seguir no Senado, possui o aspecto louvável de recuperar para o Parlamento um padrão de atuação e de debate por muito tempo sufocado.
Essa aparência de progresso institucional se acompanha, porém, dos mais visíveis sintomas de reacionarismo político, prepotência pessoal e intimidação ideológica.
Tornou-se rotineiro, nos debates do Congresso, que este ou aquele parlamentar invoque razões bíblicas para decisões que cumpre tratar com racionalidade e informação.
Condena-se a união homoafetiva, por exemplo, em nome de preceitos religiosos e de textos –não importa se a Bíblia ou o Corão– que podem muito bem ser obedecidos na esfera privada, mas pouco têm a contribuir para a coexistência entre indivíduos numa sociedade civilizada e plural.
Muitas religiões pregam a submissão da mulher ao homem, abominam o divórcio, estabelecem proibições a determinado tipo de alimento, condenam o consumo do álcool, reprovam o onanismo, legislam sobre o vestuário ou o corte de cabelo.
Nem por isso se pretende, nas sociedades ocidentais, adaptar o Código Penal a esse tipo de prescrições, dos quais muitos exemplos podem ser encontrados no texto bíblico. Sobretudo, não é função do Estado legislar sobre a vida privada.
Ainda assim, num evidente aceno a parcelas crescentes do eleitorado, uma verbiagem religiosa toma conta do Congresso.
Nos tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso do que tem sido a tradição constitucional brasileira.
O conservadorismo sem dúvida é forte no Brasil; a pena de morte, a redução da maioridade penal, a rejeição ao aborto e à liberação das drogas têm apoio em larga parcela da população –e diante de tais assuntos, naturalmente, cada pessoa tem o direito de se posicionar como lhe parecer melhor.
Mas nossa sociedade também é, felizmente, mais complexa do que pretendem os mais conservadores.
A tradição do sincretismo religioso, da liberalidade sexual, do bom humor, da convivência com pessoas vindas de todos os países e das mais diversas culturas, a prática do respeito, da cortesia e do perdão constituem elementos tão cultivados na identidade brasileira quanto o que possa haver –e indiscutivelmente há– de autoritário e violento em nosso cotidiano.
O debate entre essas forças contraditórias é constante e, a rigor, interminável. Não combina com o açodamento das decisões que, em campos diversos, têm sido tomadas na Câmara dos Deputados.
Seria equivocado criticar seu presidente por ter finalmente posto em votação algo que se arrastava há anos nos labirintos da Casa, como a reforma política. É inegável, entretanto, que Eduardo Cunha atropelou as próprias instâncias institucionais ao impor ideias como a do distritão na pauta de votações.
A toque de caixa, questões intrincadas como a do financiamento às campanhas eleitorais sofreram apreciações seguidas, e nada comprova mais a precipitação do processo do que o fato de que, em cerca de 24 horas, inverteram-se os resultados do plenário.
Uma espécie de furor sacrossanto, para o qual contribui em grande medida o interesse fisiológico de pressionar o Executivo, alastra-se para o Senado. No susto, acaba-se com a reeleição e se altera a duração dos mandatos políticos. O cidadão assiste a tudo sem sentir que foi consultado.
No meio dessa febre decisória, há espaço para que o Legislativo comece a transformar-se numa espécie de picadeiro pseudorreligioso, onde se encenam orações e onde se reprime, com gás pimenta, quem protesta contra leis penais duras e sabidamente ineficazes.
Setores políticos moderados se veem quase compelidos a conciliar-se com a virulência ideológica dos que consideram a defesa dos direitos humanos uma complacência diante do crime; dos que consideram a defesa do Estado laico uma agressão contra a fé; dos que consideram a racionalidade ocidental uma forma de subversão, e as conquistas do iluminismo uma espécie de conspiração diabólica.
Os inquisidores da irmandade evangélica, os demagogos da bala e da tortura avançam sobre a ordem democrática e sobre a cultura liberal do Estado; que, diante deles, não prevaleça a submissão."
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