Os estudos indeferidos versam, em sua maioria, sobre gênero, sexualidade e política
Por Amanda Miranda — Newsletter Passando a Limpo
A Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação de Santa Catarina (Fapesc), principal órgão de fomento à ciência no estado, foi alvo de uma representação feita pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) ao Ministério Público após se recusar a financiar pesquisas que haviam sido contempladas com recursos para bolsas de mestrado e doutorado. Os estudos versam, em sua maioria, sobre gênero, sexualidade e política.
“Os motivos para o indeferimento tiveram como base critérios opacos, genéricos e dissociados da natureza universal dos Editais”, pondera o documento assinado pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, e remetido ao Ministério Público de Santa Catarina. A denúncia da entidade se refere a três editais lançados pela Fapesc — todos regidos por uma mesma resolução: a de que a seleção e indicação de bolsistas seria de responsabilidade dos Programas de Pós-Graduação contemplados, observados os seus requisitos específicos.
Isso significa que, uma vez selecionados pelos editais, os programas teriam autonomia para conceder as bolsas a partir dos seus critérios. Porém, o que aconteceu na prática foi diferente. “Ao longo do mês de agosto, alguns PPGs contemplados nos editais receberam correspondência da Fundação recusando o aporte de recursos para os/as bolsistas indicados, argumentando falta de ‘correlação direta entre os temas dos projetos e o desenvolvimento regional do Estado'”.
A Fapesc recusou o financiamento de uma pesquisa que se propõe a estudar o que foi o movimento e quem eram as mulheres manifestantes contrárias ao presidenciável Jair Bolsonaro nas eleições em 2018. Também disse não à investigação que trataria do turismo LGBT em Florianópolis. Pesquisa sobre pedagogia dissidente do teatro com crianças foi outra das consideradas “sem correlação” com os projetos do Estado.
Segundo a representação, pelo menos 16 propostas de pesquisas de universidades públicas tiveram o financiamento recusado. Eles “têm, em comum, relação com o campo de estudos de gênero e sexualidades e suas intersecções com estudos sobre movimentos sociais e ativismos, direitos humanos, vulnerabilidade social, direitos reprodutivos, saúde pública e coletiva”, aponta a SBPC.
Em setembro, a SBPC já havia manifestado sua preocupação sobre o que chamou de “critérios não acadêmicos adotados pela Fapesc”. “Vários projetos foram descartados, por razões políticas. Por isso mesmo, a SBPC expressa sua convicção de que a Fapesc deva rever tais critérios, não tomando nenhuma decisão que não esteja baseada em razões solidamente científicas”.
Dinheiro chega em instituições particulares
Além dos editais para a concessão de bolsas aos programas de pós-graduação, a Fapesc também tem editais temáticos e universais para o financiamento de pesquisas acadêmicas. Um deles, cujo resultado final foi divulgado na terça-feira, 29 de outubro, foi voltado exclusivamente para instituições particulares do estado e que integram a Acafe, associação de universidades comunitárias.
Entre os contemplados, há financiamento previsto para estudos em direitos humanos, políticas públicas e educação, o que mostra que tais temas não são excluídos automaticamente pelos avaliadores e que não deixam de ter “correlação direta” com o “desenvolvimento regional do Estado”.
Um edital exclusivo para mulheres também teve seu resultado divulgado em setembro. O único trabalho com a temática de estudos de gênero e misoginia foi indeferido. A proponente também é pesquisadora de uma universidade pública. Estudos sobre política e educação, por outro lado, também foram contemplados.
Nota de repúdio
O Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina, citado na representação da SBPC como um dos maiores centros interdisciplinares de estudo da área no Brasil e na América Latina, se pronunciou sobre o tema por meio de uma nota de repúdio assinada em setembro.
“Entendemos que a censura a temas relativos a gênero e sexualidades ou a temas políticos vai contra a liberdade de cátedra, e contra o livre desenvolvimento da ciência. Os estudos sobre inovação científica mostram justamente que a diversidade é extremamente favorável à inovação. Além disso, a própria FAPESC destaca a importância dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, que contemplam de forma muito clara as pautas dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e meninas, bem como da democracia e os direitos políticos”, alegaram no texto.
Orçamento para fomento à pesquisa
Segundo o portal da transparência do governo de Santa Catarina, o fomento à pesquisa via Fapesc tem orçamento de mais de R$ 176 milhões, dos quais R$ 67,4 milhões foram liquidados. Para bolsas, haveria mais de R$ 40 milhões além do que já foi pago.
Para 2025, o projeto de lei orçamentária enviado pelo governo à Assembleia Legislativa prevê um valor de R$ 52,4 milhões para o pagamento de bolsas. O montante é maior do que o inicialmente previsto para 2024, mas menor do que a cifra atualizada ao longo do ano.
Fapesc se posiciona por nota
A fundação ignorou quatro questionamentos enviados pela reportagem, mas respondeu um deles, em forma de nota, justamente sobre a denúncia da SBPC quanto ao corte das bolsas.
A instituição informa que os projetos não foram contemplados por não apresentarem alinhamento com os objetivos descritos no primeiro parágrafo dos editais: “a descrição clara de que visam promover o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação em Santa Catarina”.
Além disso, reforça que houve “análise rigorosa” por um “Comitê Permanente de Acompanhamento”, que “constatou que os temas propostos não atendem às diretrizes estabelecidas, por não priorizarem temas relacionados com a inovação”. Questionados sobre quais seriam os critérios utilizados na avaliação, preferiram não responder. A Fapesc também informa, na nota, que os Programas de Pós-Graduação das instituições poderão substituir os projetos não admitidos até janeiro de 2025.
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