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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

EUA: Democracia, entre o cinza e o escuro, sem escolha. Artigo de Tatiana Carlotti

 

Crônica em Washington, às vésperas de uma eleição em que não há saída real. Vencerá a candidata da guerra perpétua ou o da ameaça fascista? Nas ruas, poucos parecem se importar. Mas os bilionários tomaram partido, e evita-se o voto negro

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No próximo 5 de novembro, a maior potência militar (US$ 886 bi para gastos militares), econômica (PIB de US$ 28,6 tri) e cultural (US$ 9 bi só em bilheterias) vai eleger “o seu” ou “a sua” presidenta em uma das mais acirradas e imprevisíveis disputas eleitorais nos Estados Unidos. Frente aos empates técnicos de cada sondagem registrada desde que Kamala Harris entrou no páreo contra Donald Trump, ninguém ousa cravar um resultado.

Com a aproximação das eleições, os republicanos apelam para um perigoso neofascismo, vide o comício de Trump na Madison Square Garden, domingo passado (27), promovendo uma agenda que reverbera um individualismo extremo, um profundo ódio à esquerda, uma misoginia escancarada e o racismo incrustado contra os “não-brancos”, além da xenofobia de carga explosiva. Em suma: a “sopa de ódios” que aquece as frustrações em meio “cada um por si” de um sistema mais e mais disfuncional, pelo menos, para a imensa massa “não-bilionária” do planeta.

Os democratas, por sua vez, apoiam-se nos argumentos e prometem a generalização de oportunidades hoje (e nem sempre) restritas à classe média e acesso a direitos básicos como saúde e moradia. Também apelam para “o bom senso” enquanto financiam um inominável genocídio de crianças e famílias inteiras em Gaza, que se expande aos demais países do “eixo do mal” no Oriente Médio; além de acenarem para a continuidade da guerra contra a Rússia na Ucrânia.

Em meio ao belicismo democrata e ao neofascismo republicano, a população estadunidense que se autodenomina “americana”, encontra-se profundamente polarizada, como mostrou na última sexta-feira, dez dias antes do pleito, a pesquisa divulgada pelo New York Times cravando exatos 48% em ambos os candidatos. A sondagem também apontava um contingente de 15% de indecisos e, após esta pesquisa, as demais que saíram, com pequenas variações, também indicam empate técnico.

Considerando, também, que as pesquisas são apenas acenam tendências, na medida em que a definição do presidente é realizada por uma maioria de delegados, a única certeza até agora, ante a impossibilidade de se cravar um resultado, é de confusão e judicialização do processo eleitoral pela turba republicana caso perca as eleições.

Vale lembrar que, em 2020, quando Trump se negou a aceitar a derrota (a primeira desde 1992 de um candidato-presidente à reeleição nos EUA), Joe Biden o vencia com uma margem expressiva: 81 milhões de votos e com o apoio de 306 delegados do Colégio Eleitoral. Na época, Trump obteve 74 milhões de votos e contou com apoio de 232 delegados.

Naquele ano, houve uma participação considerada recorde nas urnas – a maior desde 1900! – em um país onde o voto é facultativo. Neste ano, a considerar os votos já encaminhados pelo correio e os números da votação antecipada, a expectativa é de uma alta participação. Em Michigan, por exemplo, 1,5 milhões de eleitores já anteciparam seu voto em uma semana, e a soma dos que enviaram sua decisão pelo correio ultrapassa (a uma semana do pleito) vinte e três milhões.

Inversamente, a movimentação eleitoral não acontece nas ruas. O clima eleitoral, em particular nos estados como Nova York e na própria Whashington (D.C.), é ameno onde as colorações partidárias estão mais definidas, nos dois casos com a prevalência do azul (democrata) sobre o vermelho (republicano).

Por aqui, por exemplo, apesar da polarização, da ameaça trumpista e da possibilidade de muita gente simplesmente deixar de votar, ninguém usa adesivos de campanha, não há santinhos distribuídos nas ruas e muito menos aquele xingamento acalorado no cruzamento das grandes avenidas. Com Harris na liderança em pelo menos 18 pontos à frente de Trump, na “Big Apple” (NY) pelo menos, as caveiras de Halloween ganham – e de longe – das plaquinhas eleitorais.

Foi preciso caminhar um bocado em busca da imagem abaixo:

Estados pêndulos, onde a eleição acontece

As eleições, no entanto, acontecem com força nos chamados estados pêndulos, ou swing states, onde permanecem indefinidas as tendências de votação num ou noutro partido, porque o sistema eleitoral da considerada “maior democracia do mundo”, além de não direto e facultativo, também é essencialmente bipartidário. É nestes estados – Nevada, Arizona, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia, Carolina do Norte e Georgia – que estão acontecendo investimentos milionários e onde, de fato, a campanha eleitoral ganha as ruas.

Os democratas estão mobilizando mais de 2.500 pessoas em 353 escritórios nessas regiões para, entre outras atividades, bater de porta em porta e ajudar os eleitores a votarem. A tarefa é crucial, em particular, após os estados republicanos terem proposto uma série de medidas de restrição de votos, cerca de 400 leis estaduais em 47 estados, segundo a União Americana pelas Liberdades Civils (ALCU).

A ideia dos republicanos foi conter o boom da participação dos eleitores, em particular os mais pobres e, portanto, de tendência democrata, registrada durante as eleições presidenciais de 2020. Boa parte dessas leis foram implementadas em 2022, durante as eleições de meio de mandato para o Congresso, as midterms. Como nos EUA cada estado tem a sua própria legislação eleitoral, e por aqui inexiste um Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regendo e coordenando todo o processo, a possibilidade do governo Biden de conter esse movimento foi nula. O que não o impediu de reclamar.

De modo geral, são pequenas medidas, porém mortais para a participação popular em um país onde o voto não é obrigatório. Obrigar as pessoas a entregarem os votos presencialmente ou somente aceitar que familiares o façam, por exemplo, atrapalhou a participação dos eleitores cadeirantes, de idosos moradores em abrigos, da população de rua. Exigir documentos com fotos para votar pelo correio. Reduzir o tempo para a votação e até os locais de depósito das cédulas, contribuindo para o aumento das filas. Todas essas medidas aconteceram na Georgia, onde Trump perdeu por pouco para Biden, em 2020.

Além dos democratas, os republicanos estão investindo pesado nestes estados, criando comitês – Super Political Action Committees (SuperPAC), que vêm recebendo investimento graúdo de instituições privadas. É o caso do Future Coalition PAC, do Duty to America PAC e do America PAC, criado pelo “mega-bilionário” Elon Musk com um fundo de US$ 75 milhões. O bilionário foi publicamente convidado para participar de um eventual governo Trump.

Segundo apuração do The Guardian, entre julho e outubro, o herdeiro sul-africano já investiu, somente em anúncios para a campanha do magnata: US$ 201 mil no X, mais de US$ 3 milhões na META (Facebook e Instagram) e US$ 1,5 milhões no Google. Todos esses anúncios são dirigidos para as populações e às necessidades destes estados decisivos.

Musk, que tão bem sabemos o que pensa da Justiça brasileira, vem participando como cabo eleitoral de Trump e se divertindo – como uma espécie turbinada de Silvio Santos – em ofertar cheques gigantescos em comícios e anunciar sorteios de US$ 1 milhão por dia, até a eleição, para quem assinar a petição do American PAC. Sua presença, embora ele não tenha dito nada com nada, foi um dos pontos altos do comício de Trump.

Foram muitas horas de fila, em meio à turbe trumpista e sob a vigilância dos “snipers” – dois em cada um dos prédios que circundavam o Madison Square Garden – antes de começar o palavrório republicano. Não, não foi no mesmo Madison Square Garden que, em 1939, abrigou o desfile nazista em solo americano (as imagens são chocantes, confira aqui). O nome é o mesmo, o prédio é novo, mas o fascismo, com seu discurso de ódio, a substituição do argumento pelo slogan, a performática da testosterona e a perigosa tese do “inimigo interno” estavam sim por lá.

E a massa, que acompanhei tão proximamente na fila, aplaudiu para valer os animadores do circo trumpista – um misto de humoristas, coaches, bilionários dopados – e os políticos republicanos, além de funcionários e familiares do magnata, que tentaram cravar o slogan “New York is Trump country” [Nova York é o país de Trump] no coração de um estado essencialmente democrata e que há 40 anos não elege nenhum presidente republicano.

Tirando uma ou outra figura com toda a tarimba de animador partidário, dentro do cercadinho trumpista onde passei a tarde e a noite no domingo passado, o que vi foi o povo e, em particular, um povo de imigrantes: indianos (todos homens contra Kamala), hispânicos (muitas mulheres – acima dos 40 – fãs de Trump), mais rapazes do que moças (em particular, judeus, brancos e negros).

Pelo menos onde fiquei, a incidência de homens prevaleceu sobre as mulheres. Nenhum bilionário no cercadinho, só gente que trabalha e que bateu efusivas palmas com os slogans de coaching durante o evento. Ao me pedir para desligar o gravador, um rapaz alto, branco e de óculos grossos me disse que Trump vai alavancar a economia em vez de ficar gastando dinheiro com os imigrantes miseráveis que entram pelas fronteiras.

Outro rapaz, negro e estudante de Direito, garantiu que com Trump, os Estados Unidos terão mais empregos, porque ele cortará as taxas pagas pelos empregadores, o que vem dificultando a abertura de trabalho. “Biden só cobra impostos”, frisou. Um pouco mais adiante, num grupo de simpáticas senhoras hispânicas, uma delas me disse que certamente “seria muito bom para os EUA ter uma mulher presidente, mas não Kamala. “Não gosto dela, eu gosto dele e ponto”.

Também poderia comentar sobre um casal de americanos, os dois com o boné MAGA na cabeça, que me disseram, em meio a tantas guerras, que nunca mais votarão nos democratas. A mesma questão veio forte de um estudante de economia, os cabelos de fogo, egresso da Dinamarca. Ele também me esperou desligar o gravador, para dizer que o governo Biden é assassino. E quando o questionei se o fascismo de Trump também não era, ele respondeu: “é tudo bobagem para conseguir voto”.

Infelizmente, não me pareceu bobagem a fala contra as minorias que consegui observar tão de perto naquela fila. Tampouco a agonia que, confesso, foi crescendo conforme as pessoas riam das piadas preconceituosas de Tony Hinchcliffe, que chamou Porto Rico de “ilha flutuante de lixo no meio do oceano” e disse que nós, latinos, gostamos de fazer bebês.

Ou quando o amigo evangélico de Trump, David Rem, chamou Kamala de “anticristo” e “diabo”. Quando Grant Cardone, investidor imobiliário, criticou as taxas de Biden e afirmou que Kamala e seus “cafetões” destruirão a América – sim, ele a chamou de “prostituta”. Ou diante da forma misógina como J. D. Vance, senador de Ohio, referiu-se à inteligência de Kamala, que cursou a Howard University e a Universidade da Califórnia, foi procuradora-geral da Califórnia, senadora da República, vice-presidente da República e está prestes a se tornar a primeira mulher presidenta dos Estados Unidos.

Camiseta misógina da campanha republicana que vem sendo vendida nos comícios de Trump, com os dizeres “Diga não à prostituta. Vote Trump!”

A agonia aumentou diante do inacreditável aplauso da plateia repleta de imigrantes depois que Trump – que divagou um bocado em suas considerações – prometer o maior programa de deportação da história dos Estados Unidos para deixar o país mais seguro, batendo na tecla perigosa do inimigo interno.

Como não pensar em Modi, o taxista indiano de riso fácil e sobrancelhas grossas que me ajudou a chegar até o estádio?

Há cinco anos em Nova York, ele aguarda a liberação do green card [visto de permanência] para poder trabalhar, sem pressão e sem medo, no país. Só depois de muita insistência, ele me disse que preferia Trump a Kamala, não por causa dela, filha de mãe indiana, mas por causa do Biden, “os dois são a mesma coisa”.

Modi acredita piamente que com Trump, o documento sai. “Biden atrapalhou muito”, balança a cabeça, “Trump não, ele faz. É um empresário”.

Enquanto isso, na Pensilvânia…

No corpo a corpo com os eleitores da Filadélfia, na Pensilvânia, onde disputa o voto dos indecisos no estado, Kamala apresentava para o eleitorado hispânico e negro, um programa de redução das desigualdades, prometendo oportunidades, emprego e ajuda ao pequeno comerciante.

“Sei que famílias negras têm 40% menos probabilidade de serem donas de uma casa. Parte da minha política beneficiará a todos, mas estou ciente de que precisamos dar às pessoas a oportunidade de ter uma casa própria, que é a oportunidade de construir riqueza intergeracional. Meu plano inclui uma assistência para os compradores pela primeira vez de um imóvel de US$ 25.000, para ajudá-los a dar o primeiro passo para a casa própria”.

Ela prometeu, também, um crédito tributário infantil de US$ 6.000. “É o que vai ajudar os pais jovens que desejam criar seus filhos, mas nem sempre possuem os recursos. Vai ajudá-los a pagar pelos cuidados infantis, comprar um berço, uma cadeirinha para as crianças no carro. Quando fizemos o Crédito Tributário Infantil pela última vez, reduzimos a pobreza infantil negra pela metade. São essas coisas que pretendo fazer, com foco no que podemos fazer e que comprovadamente funciona”, disse a uma rádio local.

A ver o apelo que mais moverá a escolha dos americanos. Enquanto a incerteza paira, um breve compilado, publicado pela Forbes nesta terça-feira (29 de outubro), de várias pesquisas locais nos estados pêndulos. Os números correspondem às primeiras sondagens citadas pela reportagem:

Pennsylvania
Harris 48%, Trump, 48%

Michigan
Harris 51%, Trump 46%

Wisconsin
Harris 50%, Trump 47%

Nevada
Harris 51%, Trump 47%

Arizona
Trump 51%, Harris 47%

Georgia
Trump 51%, Harris 46%

North Carolina
Trump 50%, Harris 48%

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